“Páginas Recolhidas” – Machado de Assis
Resenha Livro - “Páginas Recolhidas” – Machado de Assis –
Ed. Globo
“SERMÃO DO DIABO
(....)
16º Igualmente ouviste o que foi dito aos homens: Não jurareis
falso, mas cumpri ao Senhor os teus Juramentos.
17º Eu, porém, vos digo que não jureis nunca a verdade,
porque a verdade, nua e crua, além de indecente, é dura de roer; mas jurai
sempre e a propósito de tudo, porque os homens foram feitos para crer antes nos
que juram falso, do que nos que não juram nada. Se disseres que o sol acabou,
todos acenderão velas”.
É consensual dentro da crítica literária a opinião segundo a
qual Machado de Assis foi um dos maiores escritores das letras brasileiros.
Muitos não sem razão consideram-no o maior de todos.
Machado de Assis transitou por todos os gêneros literários:
sua primeira obra literária denomina-se “Crisálidas” (1864) e foi livro de
poesia. Escreveu contos, romances, peças de teatros e crônicas de jornal. Mas é
seguro dizer que foi no romance e nos contos donde Machado de Assis galgou a posição de um
artista com uma vocação universal. O que é uma arte com vocação universal?
Trata-se da arte que perdura ao longo do tempo, que é capaz de tocar
intimamente o homem numa dimensão tal que faz com o romance, a pintura, a
escultura, o conto, etc., tenha a mesma vocação de dialogar com pessoas em
diferentes lugares e momentos da história. Machado de Assis é motivo de orgulho
para todos os brasileiros e pode certeiramente ser equiparados a outros
escritores fora do Brasil com vocação universal como Dostoiévski ou Tolstói,
para remetermos a dois exemplos de escritores russos.
É conhecida a divisão da obra machadiana em duas grandes
fases. Uma primeira fase situa-se na chamada 3ª fase do Romantismo Brasileiro.
São deste período romances mais folhetinescos[1],
voltados à abordagem de costumes (e não propriamente à crítica sutil e irônica de
costumes do realismo literário) referentes ao panorama social do Rio de Janeiro.
São desta fase romances como Helena[2]
(1876), a Mão e a Luva[3]
(1874) e Ressurreição[4]
(1872).
É comum escutar certa opinião segundo a qual os romances da
1ª fase de Machado de Assis teriam um valor menor. Aqui há de se ter um certo
cuidado. É certo que com o advento de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) há
um salto qualitativo na obra do autor e Machado de Assis inaugura na literatura
brasileira o realismo literário. Mas seus romances de primeira fase ainda que
não possuam a aguda análise psicológica, a arguta e fina ironia que resvala
frequentemente numa sagaz crítica social, ainda assim, os romances românticos
de Machado de Assis já têm um brilho peculiar do autor: o estilo refinado com
que descreve personagens e ambientes já se observa nos romances de folhetim;
aqueles romances têm o enorme interesse histórico para se adentrar aos
costumes, ao meio burguês de uma sociedade agrário-exportadora que buscava
referências culturais, artísticas e estéticas em França, conquanto convivia com
a contradição da escravidão no fundo do quintal ou mesmo dentro de casa.
Será como, dissemos, com o advento de “Memórias Póstumas de
Brás Cubas” e com a perspicaz ideia de um narrador defunto (ou de um defunto
narrador) que se concretiza o projeto do realismo literário: o fato de Brás
Cubas narrar suas memórias após sua morte livra-o de toda e qualquer vacilação,
constrangimento e preocupação em face dos julgamento dos vivos. Isto propicia
uma narração totalmente franca junto ao leitor, incluindo momentos e passagens
de vida temerárias do próprio Brás Cubas que o confessa sem qualquer pudor, na
própria condição de defunto autor.
E chegamos finalmente à presente obra. “Páginas Recolhidas”
(1899) são, conforme o prefácio do próprio autor, “contos e novelas, figuras
que vi ou imaginei, ou simples ideias que me deu à cabeça reduzir à linguagem”.
O humor, a ironia, o desencontro no amor, o desencanto e um certo pessimismo
fazem com que esta coletânea se situe na segunda fase, a fase do realismo
literário.
Tomamos como exemplo o conto “Lágrimas de Xerxes”. Xerxes
foi um cruel imperador persa. Certo dia, caiu-lhe a ficha de que as multidões
sobre quem governava, “que ali tinha diante de si às suas ordens, não
existiria(m) um só ao cabo de um século”. A Lua propõe que as lágrimas do
imperador se configurem numa estrela da paixão. Prevalece todavia a opinião do Sol
que fará das lágrimas de Xerxes um monumento do sarcasmo – observa-se aqui uma
clara alusão ao trágico-cômico, algo que remonta corriqueiramente aos romances realistas
e que dizem respeito de uma catarse (purgação) que envolve o riso do trágico.
“FREI LOURENÇO- Não, porque os ventos foram também ao sol, e
tu que conheces a lua, não conheces o sol, amiga minha. Os ventos levaram-lhe
as lágrimas, contaram a origem delas e o conselho do astro da noite, e falaram
da beleza que teria essa estrela nova e especial. O sol ouviu-os e redarguiu
que sim, que cristalizassem as lágrimas e fizessem delas uma estrela; mas nem
tal como pedia a lua, nem para igual fim. Há de ser eterna e brilhante, disse
ele, mas para a compaixão basta a mesma lua com a sua enjoada e dulcíssima
poesia. Não; essa estrela feita de lágrimas que a brevidade da vida arrancou um
dia ao orgulho humano ficará pendente do céu como astro da ironia, luzirá cá de
cima sobre todas as multidões que passam, cuidando não acabar mais e sobre
todas as cousas construídas em desafio dos tempos. Onde as bodas cantarem a
eternidade, ela fará descer um dos seus raios, lágrima de Xerxes, para escrever
a palavra extinção, breve, total, irremissível. Não quero melancolias, que são
rosas pálidas da lua e suas congêneres; - ironia, sim, uma dura boca, gelada e
sardônica”.
Certamente, esta compilação deverá atrair a atenção do
historiador. Além de contos, há o “A Estátua de Alencar”, discurso proferido
por ocasião do lançamento da primeira pedra da estátua de Alencar – desde lá,
Machado de Assis revela sua admiração pelo autor de “Iracema” para quem olhava
quando jovem como quem via Napoleão Bonaparte. Posteriormente, os escritores tornaram-se
íntimos com encontros na histórica livraria Garnier; há relatos da experiência
de Machado de Assis como redator do “Diário do Rio” informando notícias do
Senado, descrevendo grandes e diminutos personagens; e há mesmo uma poética
crônica acerca dos acontecimentos da Guerra de Canudos, que Machado de Assis
equipara a uma espécie de guerra de corsários, in verbis:
“Crede-me, esse Conselheiro que está em Canudos com seus
dous mil homens, não é o que dizem telegramas e papeis públicos. Imaginai uma
legião de aventureiros galantes, audazes, sem ofício nem benefício, que
detestam o calendário, os relógios, os impostos, as reverências, tudo o que
obriga, alinha e apruma. São homens fartos desta vida pacata, os mesmos dias,
as mesmas caras, os mesmos acontecimentos, os mesmos delitos, as mesmas
virtudes. Não podem que o mundo seja uma secretaria de Estado, com o seu livro
do ponto, hora de entrada e saída, e desconto por faltas. O próprio amor é
regulado por lei; os consórcios celebram-se por um regulamento em casa de
pretor, e por um ritual na casa de Deus, tudo com etiqueta dos carros e
casacas, palavras simbólicas, gestos de convenção. Nem a morte escapa à
regulamentação universal; o finado há de ter velas e responsos, um caixão
fechado, um carro que o leve, uma sepultura numerada, como a casa em que
viveu...
Não, por Satanás! Os partidários do Conselheiros lembram-se
dos piratas românticos, sacudiram as sandálias à porta da civilização e saíram
à vida livre.” (Canção de Piratas – 1894 – Julho).
Já foi dito que a literatura é o retrato da sociedade. Tal
tese tem especial validade para Machado de Assis. O escritor fluminense foi um
arguto observador da sociedade de seu tempo. Soube observar contradições e por
isso é relevante lê-lo com atenção. Esta última observação é válida particularmente
para os marxistas brasileiros.
[1] O
folhetim tem origem no jornalismo francês e remete a uma forma de fazer
romances cadenciado pela ritmo das publicações jornalísticas. Lembramos que
Machado de Assis veio de origem modesta, começou como aprendiz de tipógrafo da Imprensa
Nacional. Protegido por Manuel Antônio de Almeida, foi incentivado a prosseguir
uma carreira literária que teve início no jornalismo.
[3]
Ver Resenha: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2015/06/a-mao-e-luva-machado-de-assis.html
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