sexta-feira, 30 de setembro de 2016

“Páginas Recolhidas” – Machado de Assis

“Páginas Recolhidas” – Machado de Assis



Resenha Livro - “Páginas Recolhidas” – Machado de Assis – Ed. Globo

“SERMÃO DO DIABO

(....)

16º Igualmente ouviste o que foi dito aos homens: Não jurareis falso, mas cumpri ao Senhor os teus Juramentos.

17º Eu, porém, vos digo que não jureis nunca a verdade, porque a verdade, nua e crua, além de indecente, é dura de roer; mas jurai sempre e a propósito de tudo, porque os homens foram feitos para crer antes nos que juram falso, do que nos que não juram nada. Se disseres que o sol acabou, todos acenderão velas”.

É consensual dentro da crítica literária a opinião segundo a qual Machado de Assis foi um dos maiores escritores das letras brasileiros. Muitos não sem razão consideram-no o maior de todos.

Machado de Assis transitou por todos os gêneros literários: sua primeira obra literária denomina-se “Crisálidas” (1864) e foi livro de poesia. Escreveu contos, romances, peças de teatros e crônicas de jornal. Mas é seguro dizer que foi no romance e nos contos donde  Machado de Assis galgou a posição de um artista com uma vocação universal. O que é uma arte com vocação universal? Trata-se da arte que perdura ao longo do tempo, que é capaz de tocar intimamente o homem numa dimensão tal que faz com o romance, a pintura, a escultura, o conto, etc., tenha a mesma vocação de dialogar com pessoas em diferentes lugares e momentos da história. Machado de Assis é motivo de orgulho para todos os brasileiros e pode certeiramente ser equiparados a outros escritores fora do Brasil com vocação universal como Dostoiévski ou Tolstói, para remetermos a dois exemplos de escritores russos.

É conhecida a divisão da obra machadiana em duas grandes fases. Uma primeira fase situa-se na chamada 3ª fase do Romantismo Brasileiro. São deste período romances mais folhetinescos[1], voltados à abordagem de costumes (e não propriamente à crítica sutil e irônica de costumes do realismo literário) referentes ao panorama social do Rio de Janeiro. São desta fase romances como Helena[2] (1876), a Mão e a Luva[3] (1874) e Ressurreição[4] (1872).

É comum escutar certa opinião segundo a qual os romances da 1ª fase de Machado de Assis teriam um valor menor. Aqui há de se ter um certo cuidado. É certo que com o advento de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) há um salto qualitativo na obra do autor e Machado de Assis inaugura na literatura brasileira o realismo literário. Mas seus romances de primeira fase ainda que não possuam a aguda análise psicológica, a arguta e fina ironia que resvala frequentemente numa sagaz crítica social, ainda assim, os romances românticos de Machado de Assis já têm um brilho peculiar do autor: o estilo refinado com que descreve personagens e ambientes já se observa nos romances de folhetim; aqueles romances têm o enorme interesse histórico para se adentrar aos costumes, ao meio burguês de uma sociedade agrário-exportadora que buscava referências culturais, artísticas e estéticas em França, conquanto convivia com a contradição da escravidão no fundo do quintal ou mesmo dentro de casa.

Será como, dissemos, com o advento de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e com a perspicaz ideia de um narrador defunto (ou de um defunto narrador) que se concretiza o projeto do realismo literário: o fato de Brás Cubas narrar suas memórias após sua morte livra-o de toda e qualquer vacilação, constrangimento e preocupação em face dos julgamento dos vivos. Isto propicia uma narração totalmente franca junto ao leitor, incluindo momentos e passagens de vida temerárias do próprio Brás Cubas que o confessa sem qualquer pudor, na própria condição de defunto autor.

E chegamos finalmente à presente obra. “Páginas Recolhidas” (1899) são, conforme o prefácio do próprio autor, “contos e novelas, figuras que vi ou imaginei, ou simples ideias que me deu à cabeça reduzir à linguagem”. O humor, a ironia, o desencontro no amor, o desencanto e um certo pessimismo fazem com que esta coletânea se situe na segunda fase, a fase do realismo literário.

Tomamos como exemplo o conto “Lágrimas de Xerxes”. Xerxes foi um cruel imperador persa. Certo dia, caiu-lhe a ficha de que as multidões sobre quem governava, “que ali tinha diante de si às suas ordens, não existiria(m) um só ao cabo de um século”. A Lua propõe que as lágrimas do imperador se configurem numa estrela da paixão. Prevalece todavia a opinião do Sol que fará das lágrimas de Xerxes um monumento do sarcasmo – observa-se aqui uma clara alusão ao trágico-cômico, algo que remonta corriqueiramente aos romances realistas e que dizem respeito de uma catarse (purgação) que envolve o riso do trágico.

“FREI LOURENÇO- Não, porque os ventos foram também ao sol, e tu que conheces a lua, não conheces o sol, amiga minha. Os ventos levaram-lhe as lágrimas, contaram a origem delas e o conselho do astro da noite, e falaram da beleza que teria essa estrela nova e especial. O sol ouviu-os e redarguiu que sim, que cristalizassem as lágrimas e fizessem delas uma estrela; mas nem tal como pedia a lua, nem para igual fim. Há de ser eterna e brilhante, disse ele, mas para a compaixão basta a mesma lua com a sua enjoada e dulcíssima poesia. Não; essa estrela feita de lágrimas que a brevidade da vida arrancou um dia ao orgulho humano ficará pendente do céu como astro da ironia, luzirá cá de cima sobre todas as multidões que passam, cuidando não acabar mais e sobre todas as cousas construídas em desafio dos tempos. Onde as bodas cantarem a eternidade, ela fará descer um dos seus raios, lágrima de Xerxes, para escrever a palavra extinção, breve, total, irremissível. Não quero melancolias, que são rosas pálidas da lua e suas congêneres; - ironia, sim, uma dura boca, gelada e sardônica”.

Certamente, esta compilação deverá atrair a atenção do historiador. Além de contos, há o “A Estátua de Alencar”, discurso proferido por ocasião do lançamento da primeira pedra da estátua de Alencar – desde lá, Machado de Assis revela sua admiração pelo autor de “Iracema” para quem olhava quando jovem como quem via Napoleão Bonaparte. Posteriormente, os escritores tornaram-se íntimos com encontros na histórica livraria Garnier; há relatos da experiência de Machado de Assis como redator do “Diário do Rio” informando notícias do Senado, descrevendo grandes e diminutos personagens; e há mesmo uma poética crônica acerca dos acontecimentos da Guerra de Canudos, que Machado de Assis equipara a uma espécie de guerra de corsários, in verbis:

“Crede-me, esse Conselheiro que está em Canudos com seus dous mil homens, não é o que dizem telegramas e papeis públicos. Imaginai uma legião de aventureiros galantes, audazes, sem ofício nem benefício, que detestam o calendário, os relógios, os impostos, as reverências, tudo o que obriga, alinha e apruma. São homens fartos desta vida pacata, os mesmos dias, as mesmas caras, os mesmos acontecimentos, os mesmos delitos, as mesmas virtudes. Não podem que o mundo seja uma secretaria de Estado, com o seu livro do ponto, hora de entrada e saída, e desconto por faltas. O próprio amor é regulado por lei; os consórcios celebram-se por um regulamento em casa de pretor, e por um ritual na casa de Deus, tudo com etiqueta dos carros e casacas, palavras simbólicas, gestos de convenção. Nem a morte escapa à regulamentação universal; o finado há de ter velas e responsos, um caixão fechado, um carro que o leve, uma sepultura numerada, como a casa em que viveu...

Não, por Satanás! Os partidários do Conselheiros lembram-se dos piratas românticos, sacudiram as sandálias à porta da civilização e saíram à vida livre.” (Canção de Piratas – 1894 – Julho).

Já foi dito que a literatura é o retrato da sociedade. Tal tese tem especial validade para Machado de Assis. O escritor fluminense foi um arguto observador da sociedade de seu tempo. Soube observar contradições e por isso é relevante lê-lo com atenção. Esta última observação é válida particularmente para os marxistas brasileiros.  






[1] O folhetim tem origem no jornalismo francês e remete a uma forma de fazer romances cadenciado pela ritmo das publicações jornalísticas. Lembramos que Machado de Assis veio de origem modesta, começou como aprendiz de tipógrafo da Imprensa Nacional. Protegido por Manuel Antônio de Almeida, foi incentivado a prosseguir uma carreira literária que teve início no jornalismo.
[3] Ver Resenha: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2015/06/a-mao-e-luva-machado-de-assis.html

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