Resenha – “Advertência aos leitores do Livro I d’O Capital” –
Louis Althusser – O Capital – Karl Marx - Livro I – Ed. Boitempo
“Daí um primeiro conselho de leitura: ter sempre em mente
que “O capital” é uma obra de teoria cujo objeto são os mecanismos do modo de produção
capitalista e apenas dele.
Daí um segundo conselho de leitura: não buscar no “Capital”
um livro de história “concreta” ou um livro de economia política “empírica”, no
sentido em que os historiadores e os economistas entendem esses termos, mas um
livro de teoria que analisa o modo de
produção capitalista. A história (concreta) e a economia (empírica) têm outros
objetos.
Daí este terceiro conselho de leitura: ao encontrar uma
dificuldade de leitura de ordem teórica, levar isso em consideração e tomar as
medidas necessárias. Não se apressar, mas sim, voltar para trás, cuidadosa e
lentamente, e não avançar até que as coisas estejam claras. Ter em conta que a
aprendizagem da teoria é indispensável para ler uma obra teórica. Entender que
é andando que se aprende a andar, desde que as condições citadas sejam
escrupulosamente respeitadas. Entender que não se aprende a andar na teoria
logo na primeira tentativa, súbita e definitivamente, mas pouco a pouco, com
paciência e humildade. Esse é o preço do sucesso” ALTHUSSER, Louis.
A publicação do Volume I do Capital pela editora Boitempo significa uma revolução
não só especificamente dentro do mercado editorial mas em face da história das
ideias políticas do Brasil. Até então, o público brasileiro contava com edições
do “Capital V.I ” da Civilização Brasileira, da Abril Cultural e outras versões
fragmentadas associadas a iniciativas do Partido Comunista Brasileiro (Editora Vitória).
A nova edição da Boitempo envolveu um vasto trabalho de
tradução (direto do alemão) de autoria de Rubens Enderle e uma revisão com uma
equipe de intelectuais de peso: Marcio Bilharino Naves, Lincoln Secco, Emir
Sader, dentre outros. A edição da Boitempo conta com três artigos introdutórios:
um de autoria do historiador Jacob Gorender, uma reflexão de viés econômico de
autoria de José Arthur Giannotti e um pequeno e interessante artigo do pensador
marxista francês L. Althusser.
Estão também disponíveis ao leitor diferentes prefácios e posfácios
de edições alemãs, inglesas e francesas redigidos por Marx e Engels.
Como se sabe, o “Capital” demarca a obra de maturidade de
Marx, o último e derradeiro livro de sua vida. O autor iniciou a redação do
primeiro volume em 1850 e publicou em vida apenas o primeiro volume em Setembro
de 1867. Marx tinha a expectativa de publicar outros três volumes da obra, mas
falece em 1883. Engels toma iniciativa de organizar os manuscritos da forma
mais fidedigna possível aos originais – considerando problemas que vão desde
lacunas até as dificuldades de caligrafia – Engels publica os volumes II e III do
Capital. Em 1905, Kautsky publica o volume IV do Capital que originariamente
foi pensado por Marx como tendo por escopo uma discussão sobre as diferentes
escolas de economia política.
Althusser aponta duas grandes dificuldades para a compreensão
do “Capital”. Há a dificuldade política que deverá atingir especialmente os
intelectuais. Ainda que o livro tenha um caráter teórico, o “Capital” aborda
questões concretas, que se expressam de forma real e cotidiana na vida do
trabalhador, que sente a exploração do trabalho em seu cotidiano. Nestes
termos, a dificuldade política é a do intelectual – via de regra mais ou menos influenciado
pela ideologia da classe dominante - e
menos do trabalhador que, por sua posição social, deverá se identificar pela
prática com os enunciados teóricos. Todavia, Althusser chama atenção também
para a dificuldade teórica.
Por se tratar de uma obra de teoria “pura”, com a
existência de abstrações, haverá dificuldades de entendimento, aqui
indistintamente para trabalhadores e intelectuais. Todavia, diz Althusser:
“Faço isso para evidenciar um fato ainda mais paradoxal do que o precedente: mesmo indivíduos sem prática com textos teóricos (como operários) experimentaram menos dificuldades diante d’O Capital do que indivíduos habituados à prática da teoria pura (como eruditos ou psudoeruditos muito “cultos”).”
Ainda dentre as recomendações para a leitura do “Capital”,
Althusser sugere que o leitor pule a “Seção I (Mercadoria e Dinheiro)” e inicie
a leitura a partir da “Seção II (A Transformação do Dinheiro em Capital)”, para
apenas ao final da leitura da obra, voltar-se aos capítulos iniciais.
Tal recomendação tem caráter didático: Marx inicia o “Capital”
abordando o conceito da mercadoria em passagens mais abstratas e complexas, o
que, segundo Althusser, via de regra, implica ora no não entendimento ou pior,
no não entendimento que se arroga haver compreendido alguma coisa. Sabe-se que
Marx ao iniciar a redação do Capital, começou e recomeçou a reescrever o livro
diversas vezes. E o fato do livro logo no início tratar da mercadoria, ou ter
como ponto de partida o tema da mais alta abstração não é gratuito.
Pode-se observar aqui um procedimento do tipo hegeliano que
parte do abstrato (a mercadoria – capítulo I) ao concreto (“a assim chamada
acumulação primitiva” - capítulo 24).
Assim, nas passagens iniciais, são discutidos conceitos como
o Valor de Uso (a utilidade das coisas); a ideia de que um bem só possui valor
porque nele se objetiva trabalho humano; o Valor da Mercadoria que é
proporcional ao tempo socialmente necessário requerido para produzir (trabalho)
em condições normais; a Mercadoria que está sempre relacionada à troca, sendo
um produto cujo destinatário utilizará a mesma como valor de uso; o fetiche da
mercadoria, um encantamento ou feitiço promovido pelo produto cuja validade
incrivelmente pode ser constatada nos dias de hoje, quando observamos o poder
do celular ou a manipulação das propagandas voltadas ao consumo.
Desde este
ponto de partida “abstrato” (no sentido de teórico), Marx chegará no “assim
chamada acumulação primitiva”, donde se volta para a história da conformação do
capitalismo, descrevendo a formação de um exército de reserva de mão de obras
na Inglaterra a partir da expulsão de camponeses por meio de iniciativas
oficiais e extralegais marcadas pela violência brutal.
De maneira geral, o Capital volta-se para o estudo do modo
de produção capitalista – Marx está em busca de leis tendenciais (não
ocasionais) do capitalismo. A diretriz geral que marca a descoberta do Capital
remonta ao processo de acumulação. Poderíamos vulgarmente falar que a lei que
impera na sociedade capitalista é a busca incessante pelo lucro (e reiteramos
que utilizamos aqui uma linguagem vulgar, apenas a título de ilustração).
O Capital e Marx têm o mesmo peso científico nas ciências
humanas segundo Althusser que Galileu na Física e os Gregos na Matemática.
Trata-se portanto de uma leitura obrigatória, mesmo para adversários dos
posicionamentos políticos de Marx.
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