“Capitães de Areia” – Jorge Amado
Resenha Livro – 219 - “Capitães de Areia” – Jorge Amado – Ed. Companhia das Letras
“Capitães de Areia” foi publicado no emblemático ano de 1937, ano de instauração do Estado Novo de Getúlio Vargas. Trata-se de um romance da primeira fase do escritor baiano, de forte viés político social ou de denúncia social, com um claro viés de esquerda, que remonta à história de crianças de ruas abandonadas da Bahia que vivem de pequenos furtos e fraudes para garantir sua sobrevivência. Jorge Amado nasceu em 1912, estudou Direito na Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro entre 1931 e 1934 e nestes anos se ligara ao Partido Comunista do Brasil (PCB). Dentre seus romances desta sua primeira fase há de se destacar Jubiatá (1936) e Mar Morto (1936). No contexto de perseguições conflagradas contra os comunistas diante do fracasso do levante levado a cabo por Prestes e seus companheiros em 1935, Jorge Amado é preso e seus livros são queimados em Praça Pública em Salvador – o noticiário da época da conta de 808 exemplares de “Capitães de Areia” incinerados. Posteriormente, Jorge Amado redigiria uma biografia intelectual do dirigente máximo do PCB, Luiz Carlos Prestes, “O Cavaleiro Da Esperança” publicado em Buenos Aires em junho de 1941. Com a democratização do país no governo Dutra, o escritor baiano é eleito deputado federal por São Paulo pelo PCB.
Como pontuado são duas as fases que podemos dividir a obra de Jorge Amado. A primeira baseada no romance social, onde se pontilham a crítica das desigualdades sociais e se apontam alternativas políticas, acompanhadas de um visível sentimento de amor e compaixão pelo povo, pelos hipossuficientes, além de um certo patriotismo que se desenvolve num nível regional com frequentes elogios às belezas naturais, à paisagem, à flora e natureza baiana. A partir de 1954 Jorge Amado afasta-se da militância política e rompe com o PCB em 1956 no fatídico ano das denúncias do XX Congresso do PCUS aos assim conhecidos crimes de Stálin. São destas épocas as obras em que permanecem o elogio aos costumes dos tipos sociais brasileiros e populares bem como a cenário paisagístico deslumbrante do Brasil e especificamente da Bahia: obras inclusive adaptadas para novela e televisão, como Dona Flor e seus Dois Maridos (1969) e Tieta do Agreste (1977).
Como dizíamos, os Capitães de Areia são um grupo de meninos de ruas entre crianças e adolescentes que vivem ocultamente num velho trapiche próximo à beira do mar e assombram a cidade alta (os ricos) de Salvador promovendo assaltos, furtos, pequenos estelionatos – certamente não são introduzidos apenas como motivo de condescendência na narrativa, como como verdadeiros heróis que possuem entre si um rígido código de conduta moral baseado da lealdade mútua, além das demonstrações de coragem que vão das ações de fugas do reformatório até espetaculares cenas de roubo de uma peça de Ologum de uma Delegacia de Polícia.
Logo no início do romance, há uma divertida troca de acusações no Jornal da Tarde acerca das responsabilidades quanto à captura dos Capitães de Areia, que já fizeram fama nas redondezas. O Secretário do Chefe de Polícia defende-se das acusações de sua incapacidade em deter as crianças afirmando não ter tido ordem expressas do Juiz de Menores. Numa próxima edição do Jornal, o Juiz de Menores alega que sua função institucional não é a de perseguir os menores mas dar o seu posterior destino, comutar a pena para a casa do reformatório ou mesmo a prisão. O efeito humorístico e crítica das institucional implícita dentre estas cartas – em que o problema e as responsabilidade do abandono das crianças é lançado sob a alçada de diferentes instituições, sem solução concreta, nos remete a algumas considerações sobre o problema da infância e juventude naquele contexto histórico.
Do ponto de vista legal, o problema do menor abandonado e delinquente esteve positivado desde o Código do Menor do Império de 1830. Posteriormente outras leis, sempre e exclusivamente no âmbito do direito penal, cuidaram do assunto, como o Código Penal Republicano de 1890 e o Código de Menores de 1927, destacando-se a criação da figura do Juizado de Menores. O que há de se destacar aqui é que nunca naquele período a criança fora vista como um sujeito de direito: o direito intervinham num sentido de tutela, pelo direito penal, para cuidar especificamente dos casos de abandono e delinquência. E como se observa desde as descrições do reformatório pelo qual passou Pedro Bala, líder dos Capitães de Areia, os cuidados equivaliam a uma de prisão talvez até pior do que o regime prisional fechado destinado aos adultos dos dias de hoje: castigos corporais frequentes, torturas e confinamentos, além de restrição na oferta de água e bebida, um verdadeiro inferno.
Seria apenas a partir dos anos 1980 que movimentos sociais, ancorados em tratados internacionais que já avançavam num novo tratamento jurídico sobre as crianças e adolescentes que a realidade jurídica no país faria avanços. Neste Sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA lei 8069/90) representou um grande marco ao regulamentar alguns dispositivos e diretrizes já previstos na Constituição de 1988. A criança definitivamente assume um papel de sujeito de direitos: direito à saúde, educação, ao lazer, opinião e expressão, brincar, participar de esportes e divertir-se. Sendo vedado em seu art. 18 qualquer tratamento desumano, violento, vexatório ou constrangedor à criança e adolescente.
Sabemos que institutos não mudam a realidade, mas ao inverso, as realidades materiais geralmente provocam (de forma atrasada) alterações institucionais. Basta olhar nas duas das grandes cidades ddo Brasil, Rio de Janeiro e São Paulo e seus Capitães de Areia continuam lá, crianças morando e dormindo nas ruas. Mas insiste-se que mudanças institucionais coma a aparição dos conselhos tutelares sinalizam algum avanço.
Quanto ao estilo literário, “Capitães de Areia” não pode ser considerado um romance regionalista stricto senso. Falta-lhe um certo realismo que é substituído por uma descrição ora poética ora imagética da Bahia: vê-se principalmente uma cidade colorida, as docas e os barcos de pescadores de músculos fortes saindo para alto mar, mulheres da vida ou solteiras a beira da janela buscando namoro, uma rua baixa dos pobres e a rua alta dos ricos demarcando bem uma diferenciação geográfica e que se expressa na indiferença e preconceito dos ricos e na violência dos policiais contra grevistas e os capitães de areia.
Cada personagem revela um destino diferente conforme suas aptidões. Professor lê livros todos os dias sob a luz de vela, ganha alguns trocados pintando desenhos na rua e sonha ser um artista e retratar a vida do grupo em grandes exposições. Pirulito entra em contato com a religião por meio de um padre simples, ex-operário, José Pedro, e em certo momento sua euforia religiosa o sufoca quando se vê dividido: precisa roubar para sobreviver e corresponder às leis do grupo, o que é um pecado e busca então formas “limpas” de vida, como engraxate. Mas a sua dúvida de fundo, que é uma questão universal, é sondar os desígnios de deus: seria ele um pai bondoso que a tudo perdoa, inclusive os Capitães de Areia, meninos perdidos pelo mundo que pecam por falta de alternativa, ou seria Deus a justiça suprema, corroborando a tese do inferno? Pedro Bala, o líder do grupo foi filho de Raimundo, um grevista que morreu durante um combate numa luta operária e ao descobriu o destino de seu pai, Bala passou a cogitar palavras como liberdade e revolução.
Capitães de Areia é um típico romance de esquerda sem um viés facilmente panfletário. Ganha em importância histórica por suas belas descrições sobre os cenários populares da Bahia, como um retrato histórico de pessoas e ambientes do Brasil e especificamente da Bahia dos anos 1930.
(Imagem - Jorge Amado - Quirino da Silva 1938)
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