quinta-feira, 14 de abril de 2016

“Pequena História da Ditadura Brasileira – 1964 – 1985” – José Paulo Netto

“Pequena História da Ditadura Brasileira – 1964 – 1985” – José Paulo Netto 



Resenha Livro - 218 - “Pequena História da Ditadura Brasileira – 1964 – 1985” – José Paulo Netto – Cortez Editora 


Dentre as diversas vertentes historiográficas, correntes metodológicas voltadas à análise do passado, destacou-se aqui no Brasil uma expressão francesa denominada Escola dos Annales. A explicação mais imediata deve-se ao fato da fundação das Faculdades de Humanidades da Universidade de São Paulo ter sido recepcionada por uma missão francesa que dentro da historiografia teria Ferdinand Breudel como principal expoente. Importa destacar aqui que a Escola dos Annales desenvolveu uma teoria das temporalidades históricas que nos é útil como ponto de partida para reflexão sobre este livro síntese da Ditadura Militar no Brasil de José Paulo Netto. As análises históricas poderiam remeter-se às temporalidades de longa duração, média duração e curta duração que, respectivamente, poderiam ser comparadas ao movimento do mar: a longa duração sendo observada desde as marés e os movimentos mais profundos do oceano, a média duração sendo percebidas desde as ondas do mar e a curta duração podendo ser percebidas como as manifestações dos borbulhos das águas. 

Em termos mais concretos, uma análise de longa duração teria como perspectiva uma visão panorâmica que buscasse os sentidos mais profundos da história, sendo possível aferir uma história global da Idade Média; uma análise de média duração seria uma zona intermediária, uma pouco mais visível do que os fenômenos da longa duração, como as grandes navegações da baixa Idade Média; e a curta duração são as análises mais premente dentro dos nossos cursos de pós graduação que remetem a períodos relativamente curtos da história como recortes temáticos, para um aprofundamento que, se por um lado ganha em densidade e aprofundamento, perdem por outro lado em envergadura e frequentemente desorientam-se quando aos sentidos mais ocultos derivados da longa e média duração. 

Tais reflexões sobre as temporalidades nos fazem pensar sobre o objeto da “Pequena” história de José Paulo Netto. O autor se propõe a relatar 20 anos da vida política do país numa síntese de cerca de 300 páginas o que envolve desde já algumas considerações preliminares. O autor adverte que seu intuito não é apresentar novos achados e descobertas sobre o período mas incidir e desenvolver o assunto para que a memória daquele período amargo, de violações de direitos humanos, assassinatos e “desaparecimentos”, arbítrio institucional com a cassação do habeas corpus, extinção da eleição direta em vários níveis, etc, não seja desapercebido pelas novas gerações. Outrossim,  seu pressuposto teórico metodológico é o marxismo, o que desde já envolve alguns recortes e preocupações particulares. Dentro de um esforço de síntese, uma história de média duração, algumas perguntas específicas são particularmente importantes: quais as razões que levaram a esquerda à derrota no 1º de Abril? Era possível haver uma resistência civil militar aos golpistas ? Qual foi a política da esquerda e em particular do PCB ao longo da ditadura? Qual era a natureza de classe do regime? Qual a influência do desenvolvimento da luta de classes no período, particularmente no período de distensão, em que as greves do ABC de 1978-1980 converteram forçosamente em democratização? 

Dentro das cogitações de José Paulo Netto certamente há aquilo que se pode colocar como uma intervenção dentro do se coloca como “Batalha das Idéias”. Seu livro é uma contribuição para se contrapor a vozes oportunistas ou falsificadoras da verdade. Por exemplo, recentemente a Folha de São Paulo em editorial referiu-se à Ditadura Civil-Militar brasileira como “ditabranda” relativizando não só as mortes e torturas de milhares, mas o afastamento de outros tantos servidores públicos, professores universitários e militares, além da censura e interdição do pensamento no país. Obviamente o mesmo jornal não se referiu ao fato de a  Folha de São Paulo ter fornecido carros da empresa para OBAN (Operação Bandeirantes de São Paulo) caçar opositores do regime na década de 1970. 

Já com 50 anos após o golpe, cinicamente o Jornal o Globo em edição de 1º de setembro de2013 admite que “foi um erro seu apoio ao golpe de 1964, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram desse desacerto original”. Igualmente, faltou a tal auto crítica constar que a Rede Globo de televisão foi toda ela beneficiária de um apoio ao arrepio da lei junto à ditadura. Assim pontua José Paulo:

“Dispondo da concessão de um canal televisivo desde o governo Kubitscheck, Roberto Marinho associou-se em 1962 ao grupo Time Life e pôs no ar a primeira emissão da TV Globo três anos depois. O acordo com o grupo norte americano feria a legislação brasileira e uma Comissão Parlamentar de Inquérito considerou-o ilegal em 1967 – mas, por ordem do executivo federal, a decisão virou letra morta”. 

O contexto inicial que serve de ponto de partida do Autor é o Brasil dos anos 1960. Numa conjuntura em que Jânio é eleito vencendo Marechal Lott (um militar legalista que garantira a vitória da legalidade e a posse de Juscelino Kubitscheck), o excêntrico político da UDN logo viria a sua base de apoio de direita ruir. Rompia a política externa de adesão incondicional aos EUA – dentro do contexto da guerra fria – e causara arrepios aos setores anticomunistas de seu partido ao condecorar Che Guevara com a Grã Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. O Brasil daquele período ainda era uma país com ligeira maioria da população agrária e 40% da população analfabeta e excluída do pleito eleitoral. O plano de metas de JK promovera um processo de substituição de importações e desenvolveu industrias de bens duráveis fazendo crescer o nível de emprego nos centros urbanos. Já o governo de Jânio durou apenas 7 meses e foi marcado por medidas inócuas como decretação do fim da briga de galos e do uso de lança perfumes no carnaval. Sua base de apoio mesmo dentro da UDN era instável e o presidente lançou uma manobra arriscada – enquanto o vice presidente João Goulart estava em visita diplomática na China, Jânio renuncia a presidência para espanto da nação. Sua manobra ou expectativa era a de que os setores conservadores da classe dominante não admitiriam Jango na presidência – um estancieiro lançado por Getúlio Vargas com um projeto de reformas democratizantes. Assim, Jânio seria alçado novamente à presidência com maiores poderes para governar. Nada disso aconteceu: 25 de Agosto de 1961 há a renúncia de Jango e a articulação política feita em Brasília busca impedir a posse de Jango, passando a presidência a Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados. 

Qual era os impeditivos que inviabilizavam a posse de João Goulart? Jango era um rico pecuarista e líder do PTB. Fora ministro do trabalho de Getúlio Vargas (e só por esta razão já galgava o ódio de setores da classe dominantes tradicionalmente golpistas e conservadores) e mantinha históricos compromissos com a classe trabalhadora. 

Após articulação de bastidores obteve-se uma saída de consenso – Goulart assumia a posse em 7 de setembro de 1961 dentro de um regime parlamentarista, ou seja, com os seus poderes mitigados. Ainda assim, mudanças políticas foram feitas em sentido progressista: o novo ministro das relações exteriores San Tiago Dantas votou em assembleia diplomática internacional pela não intervenção em Cuba e em novembro de 1961 foram reestabelecidas as relações diplomáticas com a URSS. Conseguiu-se restaurar o presidencialismo por meio de plebiscito com ampla maioria em 7 de setembro de 1961. 

Alguns cientistas sócias classificam o governo Jango como populista, numa comparação pouco razoável com o regime de Perón da Argentina. O populismo seria muito mais próximo do que Marx identifica como o bonapartismo que é uma regime que se localiza acima das classes – dá para os pobres com uma mão e serve à burguesia com a outra. Jango parece-nos como um democrata consequente que, dentro de um contexto de crise econômica crescente no país, vê como solução a promoção de suas reformas de base como um reajuste necessário sem romper com o capitalismo. Um reformistas que em certa medida se opunha aos interesses daqueles setores que apoiariam o golpe de 1964 – empresários, latifundiários e empresas transnacionais, além do imperialismo. 

Em que pese toda a retórica da época, típica da Guerra Fria,  que Jango anunciava o “comunismo” ou uma “república sindical”, seu programa não tem nada de socialista. O que as reformas que Jango propunham eram uma ampliação dos já restritos limites da democracia, o que por si só horrorizava os setores reacionários, a direita, os militares, os latifundiários e os empresários. 

Uma reflexão importante aqui é sobre os motivos que levaram a esquerda à derrota em 1º de abril de 1964. Em primeiro lugar podemos destacar a confiança na cúpula militar que trairia a democracia: havia a confiança de que as forças armadas manteriam seu compromisso com a legalidade e estava viva na memória a intervenção de Marechal Lott que garantira a posse de JK contra golpistas. Ademais pode-se falar de falta de preparo militar para o exercício da resistência democrática. Há registros de já desde 1961 havia atividades clandestinas pela direita, se preparando belicamente na “luta contra o comunismo” por meio de grupos como Movimento Anticomunista, Cruzada Libertadora Militar Democrática, Grupos de Ação Patriótica e Grupo de Caça aos Comunistas. Latifundiários nordestinos e goianos acumularam arsenais, formaram milícias e instalações de treinamento. Enquanto isso o bloco de apoio às Reformas de Base não se preparou para tais enfreamentos diretos. 

A participação norte-americana já é notória e dispensa maiores comentários. Agentes da CIA estavam no Brasil desde 1961 desenvolvendo atividades de desestabilização do governo e treinamento militar e ideológico aos golpistas. 

A vitória do 1º de Abril e os 20 anos subsequentes significou além das conhecidas atrocidades pessoais na vida de militantes de esquerda, dificuldades enormes na vida das pessoas comuns. O “milagre Econômico” que durou apenas alguns anos pode dar a falsa impressão de que no campo econômico a Ditadura logrou ser eficiente. Entretanto o crescimento econômico não significou distribuição de renda tendo sido famosa a remissão do ministro da Fazenda Delfim Netto: “deixar o bolo crescer e depois dividi-lo”. Mas de maneira geral, a política econômica do governo bastou-se no arrocho salarial, na concentração de renda e na desnacionalização da economia – e foi numa conjuntura de crise econômica e política que foram emergindo as primeiras fissuras, primeiro com as manifestações contra a morte de opositores que reuniram milhares, sob a tutela da Igreja Católica, como a do jornalista Vladimir Herzog; posteriormente com a Emenda Dante de Oliveira que previa eleições Diretas, projeto derrotado no congresso mas que fortalece a oposição institucional e nas ruas; posteriormente com as greves dos metalúrgicos do ABC entre 1978-1980 e daí em diante até a construção da CUT em 1983. Paulatinamente a ditadura vai perdendo sua base de apoio, inclusive de aliados de primeira hora como empresários e políticos da própria ARENA, depois designada PDS. Seu fim formal dá-se com a eleição de Tancredo Neves do PMDB no colégio eleitoral. 

Esta história síntese deve servir como mais um bom material tanto para aqueles que se iniciam nos estudos sobre a ditadura militar como aqueles que desejam conhecer alguns detalhes do período. Tem-se uma visão panorâmica, um pouco diferente de certas tendências historiográficas que se aprofundam em determinados períodos relativamente curtos e perdem a noção do todo. Esta “Pequena História da Ditadura Militar” é como uma viagem que oferece uma leitura do sentido evolutivo da política do ciclo militar, com a seleção dos fatos mais determinantes que envolvem as disputas políticas de cúpula e sua relação com o estado econômico e as pressões sociais desde baixo.    

Nenhum comentário:

Postar um comentário