quarta-feira, 28 de outubro de 2015

“Contos Novos” – Mário de Andrade

“Contos Novos” – Mário de Andrade 




Resenha Livro – 197 - “Contos Novos” – Mário de Andrade – Ed. Klick

“Contos Novos” foram publicados postumamente, em 1947, dois anos após a morte de Mário de Andrade. Este deve ser reconhecido pelos leitores por sua principal obra, “Macunaíma”, personagem alegórico que representa diversas facetas folclóricas do Brasil, desde o índio até o morador de rua, ora um homem cordial, ora um malandro, sempre com preguiça e se virando diante das vicissitudes da vida. 

Mário de Andrade teve especial participação na Semana da Arte Moderna de 1922 que lançou as bases do movimento artístico modernista no Brasil. Tal movimento teria como pressuposto a criação, pela primeira vez, de uma arte verdadeiramente nacional, não só na temática (que de resto já se observava por exemplo nos românticos de primeira ora, como em José de Alencar e seu indianismo), mas principalmente na forma e no estilo, reivindicando a oralidade e os trejeitos populares, bem como a visão social de mundo brasileira. A Semana de Arte Moderna envolveu nas letras escritores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida; nas artes plásticas Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti e na música Villa Lobos. A força motriz daquela manifestação artística era a da liberdade e independência artísticas frente às influências externas, e especificamente nas letras, utilização poética de versos livres e reprodução da oralidade nos textos, um traço especificamente marcante na produção de Mário de Andrade. 

Importante destacar que o modernismo resvala também para o estudo das ciências humanas entre 1920-1930. É neste período que autores se defrontaram com o problema da identidade nacional, buscando estudar nossas especificidades e nossas origens remotas. Nesse sentido, três obras e autores são fundamentais. “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda que desde a sociologia revela aspectos genérico do povo brasileiro; Gilberto Freyre com “Casa Grande e Senzala” diante de um estudo culturalista aborda os meandros da vida colonial, desde as relações sociais, culturais ou mesmo religiosas, sexuais, etc; e Caio Prado Júnior com seu “Formação do Brasil Contemporâneo” inaugurará uma historiografia verdadeiramente brasileira estabelecendo os sentidos de nossa colonização. 

“Contos Novos” reúnem 9 histórias já da fase de plena maturidade artística do autor. Aqui, sobressaem menos os elementos de vanguarda que demarcam as obras anteriores e sobressaem certa sobriedade, com enfoque especial aos traços mais humanos de determinados personagens. Em outras palavras, não encontramos nos “Contos Novos” aquela intenção experimental relacionada a um romance de vanguarda como é “Macunaíma” (1928), mas uma orientação narrativa mais contida e sutil, com uma busca maior ora das sondagens da alma humana ora dos efeitos dos encontros e desencontros das personagens. 

“Vestido de Preto” e “O Ladrão” a sua maneira ganham o leitor pelo descompasso e a dinâmica da narrativa. No primeiro conto, narrada em primeira pessoa, conta-se a história de um primeiro beijo de primos na infância, beijo dado pelo narrador, Juca. A riqueza de detalhes do evento, incluindo o impedimento da continuação da “brincadeira” pela Tia Velha revelam como aquele beijo sensibilizou e impactou o narrador – criou-lhe amor pela prima por décadas a fio. Posteriormente a prima cresceu e deixou de reparar no primo. Juca beijou um livro empoeirado e passou a se dedicar com afinco às leituras. Há aqui um corte temporal com um reencontro entre o “casal” décadas depois, quando Maria está morando na Europa e encontra-se de passagem no Brasil em banquete. Juca decidiu-se ir ao evento ainda resistindo ao amor da infância:

“Contemplando a gravura cor-de-rosa, senti de sopetão que tinha mais alguém na saleta, virei. Maria estava na porta, olhando para mim, se rindo, toda vestida de preto. Olhem: eu sei que a gente exagera em amor: não insisto. Mas se eu já tive a sensação da vontade de Deus, foi ver Maria assim, toda de preto vestida, fantasticamente mulher. Meu corpo soluçou todinho e tornei a ficar estarrecido”. 

Como o domínio da narrativa pertence a Juca, ficamos sem saber se houve ou não houve de fato um encontro. O que é certo é que enquanto o amor do narrador persiste, sua prima, mal se lembrando do parente, parte para Europa e ignora sua existência. Esta indefinição que abre a narrativa para distintas possibilidades para interpretações é recorrente nos contos, tornando-os sempre imprevisíveis. 

Expediente semelhante dá-se com “O Ladrão”. O conto inicia com o grito de alarme que mobiliza todo um cortiço em plena noite em busca de um suposto ladrão. Os homens mais valentes dirigidos por um polícia seguem no encalço do larápio e o evento acaba significando certo momento de confraternização entre os moradores: alguns dentro de casa pela janela comentam o fato, outros na rua discutindo o caso e dando (quem sabe inventando) explicações para a disparada, até o ponto em que só resta a vigília. E aos poucos cada qual vai tomando o seu rumo com o fim do “divertimento”: sem se saber de fato se tratar-se-ia de um ladrão:   

“A rua estava deserta de novo quase morta, janelas fechadas. A valsa acabara o bis. Só o violinista estava ali, fumando, fumegando muito, olhando sem ver, totalmente desamparado, sem nenhum sono, agarrando a não sei que que esperança de que alguém, alguma garota linda, um fotógrafo, um milionário disfarçado, lhe pedisse pra tocar mais uma vez. Acabou fechando a janela também. 

Lá na outra esquina do outro quarteirão, ficara um último grupinho de três, conversando. Mas é que lá passava bonde.”

Talvez o conto com conteúdo mais político seja o “1º de Maio”. O protagonista é um operário que trabalha na estação de trem da luz como carregador cujo nome é 35. No feriado do dia do trabalhador acordou eufórico com a intenção de participar das solenidades. Seu nome remete ao ano de 1935 – ano do mal sucedido levante comunista que redundaria na edição do Estado Novo varguista dois anos mais tarde. Da mesma forma que Prestes na Intentona, 35 igualmente teria uma expectativa muito alta de seus camaradas quanto à sua consciência de classe:

“(35) ia devagar porque estava matutando. Era esperança dum turumbamba macota, em que ele desse uns socos formidáveis nas fuças dos polícias. Não teria raiva especial dos polícias, era apenas a ressonância vaga daquele dia. Com seus vinte anos fáceis, 35 sabia, mais da leitura dos jornais que de experiência, que o proletariado era uma classe oprimida. E os jornais tinham anunciado que se esperava grande “motins” do primeiro de maio em Paris, em Cuba, no Chile, em Madri”.

“35” vestiu a sua melhor roupa e dirigiu-se à Sé. No caminho encontra os colegas de trabalho que estão na labuta e mangam dele. Na Sé, tudo vazio, exceto a grande quantidade de policiais. Posteriormente, descobre pelos jornais que em São Paulo a polícia proibira comícios na rua e passeatas. Haveria apenas um discurso do “ilustre” Secretário do Trabalho no Palácio das Indústrias. 

As cogitações internas de 35 envolvem a decepção, ora com o estado de coisas, ora com seus companheiros de trabalho, que mangam de algo que  35 obviamente julga sério, ainda que sua consciência de classe ainda se dê por “leituras de jornais”, sem a participação de mobilizações, ao que tudo indica. Todavia, o término do conto serve como uma luz no fim do túnel: 35 não desiste de sua classe e num ato de solidariedade ajuda um companheiro carregador de malas, num gesto altruísta, remetendo ao que há de mais essencial nas relações entre trabalhadores oprimidos, a camaradagem.  

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