domingo, 12 de julho de 2015

“Memórias de um Sargento de Milícias” – Manuel Antônio de Almeida

“Memórias de um Sargento de Milícias” – Manuel Antônio de Almeida 




Resenha Livro 178– Memórias de um Sargento de Milícias – Editora Ática 

Pode-se dizer que este romance bem como o autor estiveram deslocados de seu tempo. A obra foi publicada entre 1852 a 1853 junto aos leitores cariocas do Correio Mercantil, um jornal por sinal bastante importante para vida cultural do país tendo em sua redação, entre outros, José de Alencar e Quintino Bocaiúva.

Depois da publicação no periódico, as “Memórias” sairiam publicadas em dois volumes sob a assinatura de “por um brasileiro”. Não tiveram grande expressão junto ao público sendo certo que até 1900 a obra teria apenas 6 edições. Apenas nos anos de 1940, com alguns trabalhos da crítica literária feitos do Mário de Andrade e Antônio Cândido, detectou-se não estar-se diante de um mero romance de costumes ( um equivalente literário aos quadros do pintor francês Debret que esteve no Brasil e buscou igualmente fazer este trabalho histórico), mas de um romance de relevo, genuíno em suas formas e que em certos aspectos remete ao pícaro espanhol ou ao malandro, personagem conhecido na tradição cultural brasileira.

O que acontece é que “Memórias de um Sargento de Milícia”(1852-3) surge num contexto literário onde predomina o romantismo literário, com suas características relacionadas ao subjetivismo, ao sentimentalismo e ao elogio ao amor, características inteiramente distintas ao livro que é antes de tudo uma crônica do tipo humorística envolvendo personagens do subúrbio do Rio de Janeiro do “tempo do rei”.

Memórias de Sargento de Milícias é uma crônica da vida de diversos personagens durante o  período da vinda de Dom João VI ao Brasil: não existe uma densidade na narrativa que implicaria num aprofundamento da análise psicológica das personagens. Estes de certa forma são descritos de uma forma paisagística o que talvez justifique num primeiro momento a ideia de um romance de costumes. Ocorre que não se trata só de narrar costumes e hábitos de uma época:  estes são o pano de fundo para uma narrativa, para uma divertida história envolvendo Leonardo, filho de Leonardo Pataca, um português que desde o navio para o Brasil, a partir de uma piscadela e uma pisada no pé, se engraça com uma saloia portuguesa, resultando no nascimento de protagonista da história que ao fim e ao cabo, depois de passar uma vida de vadio e safar-se de suas inúmeras maracutaias, terminaria como Sargento de Milícias e junto a mulher desejada.

Começamos a resenha dizendo que o livro estava à frente de seu tempo. Tal característica se constata do fato da história se basear em personagens e ambientes do subúrbio do Rio de Janeiro. Observa-se que o narrador opta muitas vezes por não nomear os personagens, mas sim qualificá-los pela sua profissão: “o barbeiro”que é o compadre, “a vizinha” que faz provocações acerca do pequeno Leonardo e acaba sendo vítima de retaliações do pequeno; “a comadre” que também é parteira. O ambiente do subúrbio do Rio vai em sentido contrário dos romances românticos ou mesmo realistas dos momentos posteriores observados em Machado de Assis: a tradição das festas populares religiosas, quando todo o povo saia à rua a acompanhar a procissão; os fados e as festas populares; a crença em torno de rituais sobrenaturais (o que hoje em claro e bom português diríamos ser macumba e que então era reprimido com pena de prisão pela polícia); encontros festivos dos ciganos; as missas lotadas em datas religiosas. Todos estes aspectos da cultura popular de um período bastante longínquo fazem com que “Memórias de um Sargento de Milícias” apenas encontre na literatura obras paralelas produzidas décadas depois em Aluízio de Azevedo de “O Cortiço” e Lima Barreto de “Clara dos Anjos” e “O Triste Fim do Policarpo Quaresma”.

Um dos personagens mais intrigantes para um leitor do séc. XXI das “Memórias” é o Major Vidigal. Ele concentrava em si uma espécie de diversos poderes policiais e mesmo jurisdicionais, mandava e desmandava os malandros para cadeia, e através de diligências pessoais poderia ser convencido à soltura dos presos a partir do seu gosto pessoal. Com tantos poderes e diante de regras duras contra a vadiagem, todos temiam o Major Vidigal, ainda que, a seu tempo, o leitor poderá tomar ciência de que o todo poderoso aplicador da lei se deixava quedar pelo coração (mulher) e não aplicar a lei.

“O som daquela voz que dissera ‘abra a porta’ lançara entre eles, como dissemos, o espanto e o medo. E não foi sem razão: era ela o anúncio de um grande aperto, de que por certo não poderiam escapar. Nesse tempo ainda não estava organizada a polícia da cidade, ou antes estava-o de um modo em harmonia com as tendências e ideias da época. O Major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo da administração; era o juiz que julgava e distribuía pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não haviam testemunha, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação  das sentenças que dava, fazia o que queria e ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquirição policial. Entretanto, façamo-lhe justiça, dados os descontos necessários às ideias do tempo, em verdade não abusava ele muito de seu poder, e o empregava em certos casos muito bem empregado”.         

Hoje com a descoberta das “Memórias”, temos uma fonte histórica para se conhecer a cultura, a sociedade e mesmo os trejeitos e a forma de se falar da corte nas três primeiras décadas do séc. XIX. Alguns aspectos ainda permanecem vivos: o “jeitinho brasileiro” que envolve arranjar junto à burocracia do estado favores por intermédio de conhecidos é observado nas relações entre o Major Vidigal. A confusão entre o público e o privado é questão que está no bojo da formação do estado nacional brasileiro e que encontro expressão mesmo num despretensioso livro de comédia.

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