“A Questão do Direito em Marx” – Márcio Bilharinho Naves
Resenha Livro 179- “A Questão do Direito em Marx” – Márcio Bilharinho Naves – Ed. Outras Vozes – Coleção Direitos e Lutas Sociais
Márcio Bilharinho Naves é formado em Direito pela USP, Doutor em filosofia pela Unicamp e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas desta universidade. Participa do Grupo de Estudos althusserianos da Unicamp, um dos poucos núcleos aqui no Brasil que, dentro do marxismo, alinha-se às teses do pensador francês. Márcio Naves é autor de obras sobre Althusser, Pachukanis (o principal jurista dos primeiros anos de transição pós revolução 1917 na Rússia bolchevique) e Mao (uma liderança que, a despeito das críticas da burguesia e do marxismo ocidental, foi reivindicado em certos aspectos por Althusser).
Como se sabe, a 11ª tese de Feuerbach (1845) de Marx criou um aspecto que diferencia o marxismo das demais correntes políticas e filosóficas de seu tempo e mesmo das tradições que viriam a seguir.
É famosa a consigna segundo a qual:
Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se porém de modificá-lo.
Trata-se de uma assertiva curta mas com um extenso significado. O marxismo abandona a tradição meramente especulativa da filosofia e passa a ser também uma ferramenta de transformação da realidade. Temos, didaticamente, duas interfaces fundamentais do marxismo: o marxismo enquanto corrente política (voltada à “transformar o mundo”) e o marxismo enquanto pressuposto teórico-metodológico (voltado a “interpretar o mundo”, de forma científica, acrescentaríamos).
O que devemos ter como ponto de partida é que em ambas perspectivas (política e teórico-metodológica) o marxismo é todo ele eivado de divisões internas, de diferentes interpretações que não só são divergentes, mas eventualmente antagônicas entre si.
Interessa-nos aqui especificamente o problema do marxismo enquanto pressuposto teórico-metodológico. Poderíamos citar diferenças que envolvem desde aqueles que reivindicam um marxismo ortodoxo (marxismo-leninismo) fiel às categorias fundantes de Marx, Engels e Lênin com a sua adequação a partir da análise concreta à situação concreta (ortodoxia não é dogmatismo) até uma tendência que vem sendo bastante difundida desde os anos 1990 de um “ecletismo” que terá as categorias do marxismo como um dos ingredientes de outros pensadores do pós-estruturalismo, deixando de lado na maioria dos casos o compromisso de um projeto revolucionário, o “transformar o mundo” – pode-se falar num marxismo academicista.
Outra clivagem interessante, e que nos interessa nesta leitura sobre o Direito e Marx, diz respeito ao entendimento do significado do pensamento do jovem Marx no contexto de sua obra em geral.
Uma corrente (que é dominante no Brasil) dirá que existe um movimento de continuidade entre as obras do Jovem Marx que constam das publicações na “Gazeta Renana” e nos “Manuscritos de 1844”, nos escritos sobre emancipação humana da “Questão Judaica”, passando pelas descobertas mais a fundo acerca da teoria da história em “A Ideologia Alemã”, até a plena maturidade do autor nas obras sobre história quando escreve sobre a Comuna de Paris (Guerra Civil na França – 1871) e o Capital. De certa maneira esta tradição reivindica as ideias do jovem Marx que, ainda neste momento, está bastante influenciado pela geração dos jovens hegelianos de esquerda, e é por isso denominado como um Marx Humanista.
O principal autor que se orienta por esta perspectiva é Gyögy Lukacs e pode-se dizer que ela é hegemônica dentre os intelectuais brasileiros: Carlos Nelson Coutinho e mesmo Florestan Fernandes em comentários sobre este tema se mostram a favor desta solução de continuidade entre o jovem e velho Marx.
Pois Márcio Bilharino Naves parte do ponto de vista althusseriano. Segundo Althusser, o entendimento da obra de Marx deve ser feito considerando uma cisão/ruptura entre as obras de juventude e da maturidade em Marx de forma que, e especialmente no que tange à teoria do direito, só poderemos captar o que é verdadeiramente jurídico em Marx a partir da leitura do Capital.
O entendimento do Direito em Marx é produto de uma construção lenta e gradual que se completa justamente quando o velho Mouro descobre os fundamentos de sua crítica à economia política desde o livro 1 do Capital. Antes disso, se formos às fontes do Jovem Marx (relembrando que o mesmo foi um bacharel em direito) chegaremos ao ponto de encontra-lo defendendo o.....jusnaturalismo.
Sobre este período “pré-marxista” de Marx sobre o direito, afirma o autor:
“Esse período compreende duas fases: na primeira, na época da Gazeta Renana, Marx sustenta uma posição jusnaturalista e liberal radical; na segunda, na época dos Anais Franco-alemães, Marx defende posições humanistas que o levam do democratismo extremo de Sobre a Questão Judaica ao comunismo especulativo dos Manuscritos de 44.”
O que falta à crítica da juventude é os conhecimentos da economia política a partir do qual Marx irá detectar como o direito é uma forma (no sentido literal da palavra, como se fosse uma forma de modelar) adaptada para a subsunção do trabalho ao capital e, o que é mais importante, derivada, especificamente das sociedades capitalistas. O direito surge com a noção de sujeito de direito, tendo em vista as relações jurídicas formais para os sujeitos de direito contratarem compra e venda da força de trabalho e formalmente estabelecerem relações “iguais” e “livres”.
Assim, “(O Jovem Marx) capta apenas o movimento mais superficial da sociedade burguesa, o efeito do processo do capital que ele ainda não é capaz de apreender. De modo que Marx apenas descreve as formas aparentes da sociabilidade burguesa sem estabelecer o seu vínculo com as relações de produção e circulação que as tornam inteligíveis. Influenciado pelo humanismo feuerbachiano e por sua teoria da alienação, Marx acaba por promover o reforço da ideologia jurídica ao colocar no centro da análise a categoria da propriedade privada”.
Os primeiros contornos para uma definição mais concreta do fenômeno jurídico seguirá pari passo o próprio desenvolvimento do capitalismo. No plano filosófico, os autores essenciais são Kant e sua categoria do Direito Pessoal Real que exprime uma tentativa de conciliar a liberdade do indivíduo e a exigência de ainda pensá-lo como coisa, na medida em que trabalha para outrem (considerando, outrossim, que Kant é um filósofo da alvorada do capitalismo);Hegel com sua noção de sujeito de direito universal, quando todo o homem passa a ter reconhecida a mesma capacidade que o direito lhe confere de realizar atos jurídicos e celebrar contatos; e finalmente Marx que irá trazer todas estas cogitações para o plano das relações de circulação e produção, observando como o direito é em primeiro lugar um fenômeno específico da sociedade do capital (e portanto sociedades pré-capitalistas como a Romana a rigor não conheceram Direito, mas outros tipos de manifestações que envolviam regramentos, tradições místicas, religião, mas que nunca tinham a regra de ouro do fenômeno jurídico que é o da equivalência formal).
“Procurando avançar nessa terra incógnita podemos afirmar, então, que o que é específico do direito, seu elemento irredutível, é a equivalência subjetiva como forma abstrata e universal do indivíduo autônomo quando o trabalho é subsumido realmente ao capital. O direito é um modo de organização da subjetividade humana que torna capaz de expressão de vontade, com o que é possível a instauração de um circuito de trocas no qual a própria subjetividade adquire uma natureza mercantil sem com isso perder a sua autonomia.
Mas é somente nas condições de existência de um modo de produção especificamente capitalista que o indivíduo pode se apresentar desprovido de quaisquer atributos particulares e qualidades próprias que o distingam de outros homens; ele se apresenta como pura abstração, como pura condensação de capacidade volitiva indiferenciada”.
E adiante, continua o professor Márcio:
“Desse modo, podemos considerar que em Marx o Direito é essa forma social sui generis, a forma da equivalência subjetiva autônoma. A nosso ver, esse conceito capta as determinações essenciais da análise do direito que Marx realiza em sua obra de maturidade, especialmente em O Capital e, considerando a sua análise do processo de subsunção real do trabalho ao capital, afirma a especificidade burguesa do direito, permitindo que se estabeleça uma demarcação nítida entre o fenômeno jurídico e outras formas sociais – consideradas pela tradição como sendo também jurídicas – próprias das formações sociais pré-burguesas.
Assim podemos formular esta sentença resolutamente anti-normativista: só há direito em uma relação de equivalência na qual os homens estão reduzidos a uma mesma unidade comum de medida em decorrência da sua subordinação real ao capital”.
Diante de tais assertivas, eventualmente alguns ativistas da área do direito (bem intencionados) podem perguntar a si próprios o que restaria fazer em termos práticos diante da constatação da intensa imbricação entre capitalismo, dominação oculta do capital sobre o trabalho e direito? Em que medida, intervenções do tipo assistencialistas não implicariam na perpetuação das ilusões jurídicas enquanto a meta seria a de destruição (extinção) do direito? Certamente não há aqui fórmulas prontas, mas há algo a se observar que são os pontos de fissura a partir dos quais é possível avançar no questionamento da ordem da legalidade:
“Se o direito e a ideologia jurídica podem emperrar, será ali onde o “sujeito for abalado em sua quietude, em sua certeza, em sua jurisprudência morta, ultrapassado por qualquer coisa irrepresentável na forma subjetiva de uma abstrata troca de valores. Talvez não saibamos como, talvez não saibamos muito, mas o conhecimento não ideológico que Marx e Pachukanis nos deram da relação de capital e de sua forma jurídica necessária remete para o que talvez possa ser um passo para sair desse mundo de espelhos: a dissolução dos títulos “científicos” do direito, o descompromisso com a legalidade, a interdição aos “socialismos jurídicos” e a redução de todas as manifestações do “jurídico” a uma fórmula “essencial” que ao mesmo tempo, seja conhecimento e recusa: o direito como mero, simples, banal, momento subjetivo de troca de equivalentes”.
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