Resenha livro #103 “Formação do Brasil Contemporâneo” – Caio Prado Jr. –
Ed. Brasiliense
“Pessoalmente, só compreendi perfeitamente as descrições que Eschwege,
Mawe e outros fazem da mineração em Minas Gerais depois que lá estive e
examinei de visu os processos
empregados e que continuam, na quase totalidade dos casos, exatamente os
mesmos. Uma viagem pelo Brasil é muitas vezes, como nesta e tantas outras
instâncias, uma incursão pela história de um século e mais para trás. Disse-me
certa vez um professor estrangeiro que invejava os historiadores brasileiros
que podiam assistir pessoalmente às cenas vivas do seu passado”.
A primeira edição de Formação do
Brasil Contemporânea data de 1942. Originalmente, tratava-se de um primeiro
volume de uma história do Brasil que partisse das nossas raízes coloniais ao
momento “contemporâneo”. Infelizmente, todo o projeto não chegou a ser
executado ainda que esta formação tenha ficado para a historiografia brasileira
como uma das mais importantes obras acerca do Brasil colônia.
A abordagem das diversas facetas
daquela história (o povoamento, as raças, a economia, o comércio, as vias de
comunicação, etc.) terá sempre como ponto de partida a história que vai do descobrimento
até fins do séc. XVIII e início do XIX, alguns anos antes da independência
(1822). O que o historiador constata após exaustiva pesquisa sobre nossa
economia, sociedade e instituições políticas é que o Brasil do início dos XIX
expressa uma verdadeira síntese dos 3 séculos anteriores. Mais, o Brasil que
Caio Prado enxerga em seus dias, o “Brasil Contemporâneo”, em muito ainda
revela daquela realidade colonial, em particular naquilo de que mais essencial
consistiu a nossa colonização, qual seja, a conformação de uma economia
dependente, inteiramente voltada (e subordinada) aos centros metropolitanos –
mais recentemente, utilizar-se-ia o termo imperialismo, significando de todo
jeito aquela vinculação e dependência da nossa economia aos mercados
estrangeiros consumidores de matérias –prima, produtos agrícolas (no Brasil em
destaque o açúcar e o algodão) e os metais preciosos.
Para todos os efeitos, uma
primeira e decisiva questão que surge ao leitor desta formação do Brasil implica
na atualidade ou não das teses discutidas por Caio Prado. O historiador é muito
minucioso e busca encarar nossa história (como não poderia deixar de ser)
contemplando seu caráter multifacetado, ainda que delineando alguns elementos
comuns – estes denominados como “sentido da nossa colonização”. O sentido da
colonização brasileira diverge da experiência norte-americana e as duas
histórias são comparadas justamente para realçar as especificidades de cada
processo histórico. Os colonos das zonas temperadas buscavam territórios com
condições parecidas com a europeia – muitos vinham em função de perseguições
religiosas e instalaram, em todo caso, uma colônia de povoamento. Ora, o mesmo
não ocorre nos trópicos. O perfil do colonizador aqui é menos a do grupo
familiar e mais a do aventureiro, menos a do povoador de um novo mundo e mais a
de um explorador em busca de rápido retorno financeiro.
“O sentido da colonização”
volta-se ao atendimento dos interesses comercais portugueses e é com base neste
comércio – já antes explorado pelos lusitanos nas índias – que se conformará
toda estrutura social, política, administrativa, etc. A colônia nada mais é do
que uma empresa comercial destinada exclusivamente à grande exportação. Como um
“resquício” deste passado colonial, enxerga-se a ausência de preocupação pela
metrópole em desenvolver internamente sua colônia. No máximo surge a
preocupação de algum povoamento que garanta o domínio lusitano, em risco já no
séc. XVI pelos franceses.
O trabalho segue o seguinte
esquema. No capítulo “Povoamento”, discute-se o processo de ocupação do
território – predominante, conforme o arranjo econômico colonial, no litoral. É
no litoral onde estão os portos por onde sairão o pau-brasil, o açúcar, o
algodão, o cacau, a prata e o ouro. E o açúcar – primeira forma de exploração
extensiva do território – casava-se com o solo e o clima do litoral nordestino.
O povoamento do interior apresenta como principais propulsores o cultivo do
gado – que se alastra pelo interior nordestino seguindo a trajetória dos rios e
posteriormente o sul – e a mineração. Certamente, a intervenção dos
bandeirantes bem como as missões religiosas abriram novos caminhos e também são
fatores que engendram o povoamento interior.
No capítulo da “Vida Material”,
Caio Prado Júnior serve-se de vasta documentação (relatos de viajantes, cartas
de governadores de provinciais, algumas estimativas estatísticas, etc.) para
discorrer exaustivamente sobre nossa economia (a grande lavoura com uma
importância maior e a pequena agricultura de subsistência, com importância bem
menor e inteiramente dependente da primeira). Estuda-se a mineração, a pecuária
e as produções extrativas: estas últimas são as que predominam no norte, contando
com o apoio do indígena. Há finalmente capítulos sobre artes e indústrias, que
eram muitíssimo pouco desenvolvidas no país, tanto as técnicas na agricultura
que reproduziam as práticas de três séculos, quanto na mineração, também efetivada
sem qualquer conhecimento técnico. Isso para não falar da virtual falta de
escolas, universidades e, consequentemente, de gente na administração com
competência específica para solucionar enormes desafios ligados a um país de
vasta extensão e de dificílima comunicação interna.
Finalmente, em “Vida Social”,
discute-se nossa organização social – da qual o trabalho escravo é o elemento
essencial e a base sobre a qual se enceta algumas características particulares,
como o horror ao trabalho, visto como coisa de escravo negro. (E aqui temos
mais uma diferença com as colônias de povoamento, ao menos, do norte dos atuais
EUA, onde predomina o trabalho livre).
Discute-se nossa administração
interna, marcada por um emaranhado de leis, muitas vezes contraditórias e sem
uma coerência dentre as normas. Havia mesmo dificuldade de engajar pessoas para
as tarefas da administração que se confundiam na figura de juízes não togados,
governadores (em geral, os donos dos latifúndios), membros do fisco real. Com
estas condições, grassava no país a corrupção na administração, o que é
reiterado mais de uma vez pelos viajantes que por aqui passaram. Importante
destacar o papel da Igreja que foi, na colônia, como uma parte da
administração. Ou seja, as tarefas administrativas eram delegadas também aos
membros do clero até porque eram eles os poucos que tinham alguma escolaridade.
“Formação do Brasil Contemporâneo”
é uma radiografia exaustiva e profunda de nosso passado colonial. A tese
defendida pelo autor é a de que o Brasil do passado ainda é o Brasil do
presente, ao menos em aspectos fundamentais, como no que se refere à
dependência econômica ou na corrupção administrativa. Se podemos localizar em
alguns aspectos maiores ou menores avanços – como no que se refere ao
desenvolvimento das comunicações e da integração do território nacional – fica a
sensação de que o “sentido da colonização” ainda permanece vivo no Brasil do
séc. XXI, um país semi-periférico do capitalismo, com importante pauta de
exportação de commodities e dependente dos grandes centros financeiro do
capitalismo globalizado.
Infelizmente, “Formação do Brasil Contemporâneo” ainda
é um livro atual.
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