Resenha Livro # 66 “Maurício Tragtenberg: uma
vida para as Ciências Humanas”. (Org. Doris Accioly e Sônia Marrach). Ed. Unesp
Por
ocasião da morte do professor universitário e militante Maurício Tragtenberg,
foram realizados diversos seminários homenageando a vida e o legado teórico do
autor. O professor deu aulas na PUC-SP, na Faculdade de Educação da Unicamp, na
Faculdade de Filosofia da Unesp de Marília e na Fundação Getúlio Vargas. Ainda
assim, é desconhecido por muitos, apesar de ter contribuído no âmbito das
ciências humanas com uma particular e interessante crítica à burocracia,
particularmente no que se refere às suas manifestações no âmbito das escolas e
universidades.
Contrapôs
a lógica das grades de disciplinas (e a expressão “grades” passa a ser
sintomática ao remeter à ideia de prisão), ao conhecimento destinado à ao
passivo respeitar das normas e de um saber burocrático voltado às exigências do
mercado e das empresas modernas, pautando, em oposição, um novo tipo de relação
não autoritário nas escolas e universidades, marcado pela horizontalidade, pelo
encerramento da competitividade, pelo fim dos exames e provas que apenas
legitimam o poder do professor e pela total abertura do espaço à comunidade.
Pensou em síntese num novo modelo de educação auto-gestionário em que os
estudantes são levados a discutir e aprender assuntos de seu interesse,
instigando a curiosidade espontânea e a construção de saber coletivo, sem
hierarquias.
Não
foi só no âmbito das escolas que Tragtenberg dedicou-se ao estudo da
burocracia. Analisou a lógica das práticas serializadas no âmbito das empresas
por meio de uma crítica politizadora dos modelos de produção fordista,
taylorista e toyotista. Conseguiu observar talvez antes do que a maior parte da
sociologia do trabalho como particularmente os novos modelos de administração
pautados pela criação de responsabilidades aos trabalhadores, por meio de um
discurso de “pertencimento” do trabalhador à fábrica, implicava não em uma “democratização”
das relações de mando nas empresas mas na garantia de que os trabalhadores
passassem a cada vez mais enxergar seu trabalho como o fim de sua vida,
influenciando-os a trabalharem no limite de maneira a atender suas novas
responsabilidades e não desapontar o restante da equipe: encerram-se assim cada
vez mais os limites entre o espaço do trabalho e o espaço doméstico, do lazer e
do descanso, diminuindo em importância o segundo em detrimento do primeiro.
No
que se refere aos pressupostos teórico-metodológicos, pode-se dizer que os
autores que mais influenciam Tragtenberg são Karl Marx e Max Weber. Nas
palavras de um dos articulistas dos ensaios, o autor analisou criticamente a
estrutura e o modo de produção capitalista desde a orientação marxista e
interpretou a super-estrutura, as entidades políticas, as instituições educacionais
e as empresas a partir da concepção de
burocracia em Weber.
O
livro corresponde a uma série de artigos de professores e militantes de
movimentos sociais que conviveram, aprenderam e se apropriaram dos saberes
produzidos por Tragtenberg. Há tanto elementos acerca de sua trajetória de vida
pessoal até análises mais detalhadas de sua intervenção na academia e no debate
no espaço público. Certamente, a alcunha de “intelectual heterodoxo” veio bem a
calhar a este pensador proveniente do sul do país, de origem judaica e que
passou a maior parte de sua vida trabalhando e militando no estado de São
Paulo.
Quando
jovem Maurício Tragtenberg já devorava os livros: diz-se que lia de 9 a 10
horas por dia na biblioteca Mário de Andrade em São Paulo. Aos domingos,
costumava visitar os Abramos, participava de debates junto àquela família
repleta de intelectuais, bem como tinha acesso à livros e orientações de
leitura. Também na juventude conheceu Antônio Cândido que, impressionado com o
repertório cultural daquele jovem que sequer tinha feito o secundário,
descobriu uma forma de fazer com que Tragtenberg entrasse na universidade mesmo
sem a escolaridade formal. Era possível, para entrar na universidade,
apresentar uma tese a ser apresentada por banca examinadora. E assim
Tragtenberg entrou na USP, primeiro no curso de Ciências Sociais, e depois se
transferindo e formando-se em História.
Como
militante, sua intervenção mais importante provavelmente se deu com a coluna “No
Batente” escrita no jornal Notícias Populares. Tratava-se de um jornal popular,
muito lido pelos operários e por meio dele Tragtenberg pautava seus textos a
partir de recomendações dos próprios operários e seus respectivas denúncias de
más condições de trabalho. Como crítico da burocracia também no âmbito
sindical, procurava deixar claro que o espaço do “Batente” era destinado aos
problemas do operário comum, sem pretensão de representar ou defender
interesses particulares de partidos políticos e sindicatos.
A vivência
político-partidária de Tragtenberg também foi curta. Foi durante pouco tempo
membro do PCB e foi expulso deste partido. Revela-nos em uma de suas colunas do
“Batente” que dentre os estatutos do partidão havia o “infame” parágrafo 13 que
proibia os militantes da organização de ter contato com as obras de León
Trótsky e outros “traidores do socialismo”. Chegou a militar junto do conhecido
introdutor do trotskysmo no Brasil, o jornalista Hermínio Sacchetta e seu PSR (Partido Socialista
Revolucionário). Posteriormente, acrescentaria às suas influências teóricas o
anarquismo, rompendo com a concepção de partido e organização política de Lênin.
Neste aspecto, a falta de rigor
teórico-metodológico combinado com uma interpretação injusta do Lênin (confundindo talvez o autor e os leninismos)
fizeram com que em 1986 Tragtenberg fizesse a seguinte intervenção:
“A concepção leninista do partido enquanto minoria organizada que deva
dirigir uma maioria informe, o proletariado, leva o trabalhador a regredir em
seu nível de consciência social e política. O trabalhador é deseducado pelo
oportunismo do partido, pelo seu desprezo às ideias, e submetido a um processo
que o torna capaz de uma ação autônoma e coletiva. A classe operária perde a
confiança na sua própria capacidade de luta, organização e compreensão do
processo social, transferindo-a ao partido”.
Apenas nesta parágrafo,
encontramos diversos problemas de interpretação que, recordando-nos do vasto
repertório cultural de Targtenberg, faz-nos crer ser esta uma crítica injusta.
O autor confude leninismo com blanquismo, como se o primeiro fosse uma corrente
substitucionista em que o partido atuasse como sujeito revolucionário em
detrimento da classe. Ocorre que em Lênin reiteradamente há a advertência de
que o partido ravolucionário deve sim ser a direção de um processo de
mobilização de caráter revolucionário sem contudo abrir mão de uma ligação
orgânica com os trabalhadores e as massas. Não é verdade que a concepção
leninista de partido leve o operário à regredir seu nível de consciência. Até
por que o que faz aumentar o nível de consciência dos trabalhadores é a luta e
a formação política, dois elementos que não são incompatíveis mais essenciais
na vida do partido político. Ademais, Tragtenberg parece esquecer de que o
senso comum e as formas serializadas da consciência operária nos momentos de
refluxo não raro encaminham os trabalhadores a reproduzir acriticamente as
ideias, valores e interesses da classe dominante por meio dos esquemas de
reprodução da ideologia: romper com o senso comum para avançar a consciência de
classe também é uma tarefa do partido revolucionário e tal problema não será
resolvido por métodos “espontâneos” e muito menos artesanais.
Finalmente, não é verdade que a
existência do partido revolucionário faça com que a classe operária perca a
confiança em si própria. Mais uma vez, vale o questionamente: o que leva a
classe operária a ser confiante e lutar sem medo contra a classe exploradora? A
convicção da possibilidade da vitória bem como as vitórias pontuais que provam
na prática a validade da organização para arrancar direitos das classes
dominantes. O partido é um instrumento da luta de classes e foi decisivo para a
vitória de diversos movimentos revolucionários que verdadeiramente aumentaram a
confiança dos trabalhadores, desde os bolcheviques até o movimento 26 de Julho
em Cuba.
É óbvio que ao longo do séc. XX
foi possível observar toda sorte de degeneração ou deformação de organizações
que diziam ser porta-vozes dos interesses do trabalhadores. A tragédia ou farsa
do Partido dos Trabalhadores no Brasil é o exemplo mais próximo de nós.
Entretanto, Tragtenberg é incapaz de oferecer qualquer alternativa segura de
organização que garante o maior acúmulo de forças para uma luta frontal contra
a burguesia: para que como um punho unificado o proletariado consiga unificar
toda a energia revolucionária para compear e derrotar a burguesia. Resvalando
no webberianismo e seu conceito de “tipo-ideal”, Tragtenberg apenas aponta
alguns elementos abstratos que em si nada garantem a não burocratização: “solidariedade”,
“auto-gestão”, “horizontalidade” etc. No plano abastrato todos estes valores
são não só legítimos como necessários, porém não são capazes de responder de
forma eficaz o problema de como organizar a classe para derrotar o capital.
Portanto, ainda que se possa
extrair elementos de sua crítica à burocracia para se pensar criticamente o
partido e as formas de organização dos trabalhadores, ao afastar como princípio
o método da organização partidária de Lênin, Tragtenberg desconstrói uma das
tarefas mais preementes dos comunistas no mundo contemporâneo: a construção do
partido revolucionário.
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