terça-feira, 9 de julho de 2013

“A Viagem” – Graciliano Ramos


Resenha livro #63 “Viagem”. Graciliano Ramos. Ed. Livraria Martins
 
 

Acredita-se que “inteligência” é uma palavra latina. A etimologia expressa “capacidade de compreender” (intellectus) ou mais especificamente “intus legere actionem”, que significa “ler dentro da ação”. Poderíamos em síntese conceituar inteligência como a capacidade de entender e interpretar o mundo, incluindo a capacidade de ler e interpretar as entrelinhas da realidade. Diferente conceituação do senso comum segundo o qual inteligente é aquele com maior repertório cultural: certamente a quantidade de livros lidos ou filmes assistidos amplia as possibilidades de melhor interpretar a realidade, mas desde a noção originária de inteligência, pensamos ser esta uma capacidade que envolve não só memória e lógica, mas sensibilidade ou, até, intuição. Compreendendo a intelgência como sensibilidade associada à capacidade de interpretação do mundo, das pessoas e das coisas, certamente Graciliano Ramos foi dos mais destacados e “inteligentes” autores brasileiros.

Nascido em Alagoas, foi jornalista, membro do PCB por alguns anos, prefeito da pequena cidade de Palmeira dos Índios, além de romancista e contista. Graciliano teve a felicidade rara de ser um autor reconhecido em vida: em “Viagem” ele é introduzido como membro da Academia Brasileira de Escritores. Seus mais importantes romances são “Caetés”, “São Bernardo”, “Angústia” e “Vida Secas”. Além de ficção, escreveu relato de sua passagem na prisão durante o Estado Novo em dois volumes de “Memórias do Cárcere”. Redigiu um relato de sua infância em “Infância”, e escreveu “Viagem”, que corresponde a um memorial artístico de sua visita à Tcheco-Eslovaquia, Rússia (então URSS) e Ucrânia (então, parte da URSS).

A “Viagem” não pode ser considerada uma reportagem ou qualquer forma de relato objetivo da viagem. Não há a citação das estatísticas e números que certamente foram relatados aos visitantes pelos guias turísticos. Tampouco “Viagem”  propõe-se a ser uma análise crítica do regime soviético, da sua sociedade, da sua economia ou da sua cultura. Podemos dizer que a obra corresponde a um memorial com os fatos mais marcantes do ponto de vista pessoal do autor, fatos narrados de forma ora objetiva ora lírica. Nem sempre aatenção de Graciliano está focada nas questões políticas, candentes num contexto de guerra ideológica (Guerra Fria). Vale ponderar que Graciliano goze em algumas passagens da “má fama soviética” repercutida pelo ocidente capitalista, confrontando a propaganda enganosa com os fatos observados: o funcionamento regular de Kolkhoz (cooperativa agrícola) que oferece diversos serviços educacionais e recreativos aos trabalhadores; o alto índice de leitores revelado pela alta vendagem de livros, quando comparada com o brasil; a preocupação com a preservação do passado e respeito perceptível na consevração de castelos medievais. Entretanto, o livro não tem como eixo contrabalancear a propaganda negativa feita pelo o ocidente à realidade positiva do oriente – o que é feito por Caio Prado Jr. Em seu “O Mundo do Socialismo” (Ler mais em: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2010/11/o-mundo-do-socialismo-caio-prado-jr.html)

Graciliano também destaca impressões pessoais com relação as pessoas consideradas individualmente, se assemelhando à descrição de personagens de seus romances – considerava as russas de uma beleza particular e, atento ao seu olhar de romancista, anotou detalhes dos mais reveladores sobre roupas, posturas e olhares. Por meio da sensibilidade artística soube interpretar a excessiva amabilidade dos guias que os orientava como algo meio forçado e não espontâneo. Da mesma forma, tomou nota de algumas situações esquisitas, como a de um fumante que insistiu (mesmo após negativa) que o escritor aceitasse seu cigarro.

 De toda forma, Graciliano Ramos certamente se sentia muito diferente daquelas pessoas. Em certos momentos soa mesmo como se colocasse numa posição de inferioridade, particularmente quando tomou conta da alta tiragem de livros vendidos e do grande público leitor daquele país. Parece-nos ser um traço da própria personalidade daquele alagoano franzino, magro, fisicamente nada atraente: esta auto-negação ganharia expressão poética mais importante no, na nossa modesta opinião, seu maior livro, “Angústia” Em síntese, este belo memorial de viagem pode interessar tanto aqueles que apreciam o modo como Graciliano Ramos escreve (neste relato de viagem, seu estilo literário é o mesmo dos seus romances), quanto os que desejam conhecer alguns aspectos da vida na URSS sob o olhar de um dos mais “inteligentes” autores da história do país.  

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