Resenha livro #63 “Viagem”. Graciliano
Ramos. Ed. Livraria Martins
Acredita-se
que “inteligência” é uma palavra latina. A etimologia expressa “capacidade de
compreender” (intellectus) ou mais
especificamente “intus legere actionem”,
que significa “ler dentro da ação”. Poderíamos em síntese conceituar inteligência como a capacidade de
entender e interpretar o mundo, incluindo a capacidade de ler e interpretar as
entrelinhas da realidade. Diferente conceituação do senso comum segundo o qual
inteligente é aquele com maior repertório cultural: certamente a quantidade de
livros lidos ou filmes assistidos amplia as possibilidades de melhor
interpretar a realidade, mas desde a noção originária de inteligência, pensamos
ser esta uma capacidade que envolve não só memória e lógica, mas sensibilidade
ou, até, intuição. Compreendendo a intelgência como sensibilidade associada à
capacidade de interpretação do mundo, das pessoas e das coisas, certamente
Graciliano Ramos foi dos mais destacados e “inteligentes” autores brasileiros.
Nascido em Alagoas, foi
jornalista, membro do PCB por alguns anos, prefeito da pequena cidade de
Palmeira dos Índios, além de romancista e contista. Graciliano teve a
felicidade rara de ser um autor reconhecido em vida: em “Viagem” ele é
introduzido como membro da Academia Brasileira de Escritores. Seus mais
importantes romances são “Caetés”, “São Bernardo”, “Angústia” e “Vida Secas”.
Além de ficção, escreveu relato de sua passagem na prisão durante o Estado Novo
em dois volumes de “Memórias do Cárcere”. Redigiu um relato de sua infância em “Infância”,
e escreveu “Viagem”, que corresponde a um memorial artístico de sua visita à Tcheco-Eslovaquia,
Rússia (então URSS) e Ucrânia (então, parte da URSS).
A “Viagem” não pode ser
considerada uma reportagem ou qualquer forma de relato objetivo da viagem. Não
há a citação das estatísticas e números que certamente foram relatados aos
visitantes pelos guias turísticos. Tampouco “Viagem” propõe-se a ser uma análise crítica do regime
soviético, da sua sociedade, da sua economia ou da sua cultura. Podemos dizer
que a obra corresponde a um memorial com os fatos mais marcantes do ponto de
vista pessoal do autor, fatos narrados de forma ora objetiva ora lírica. Nem
sempre aatenção de Graciliano está focada nas questões políticas, candentes num
contexto de guerra ideológica (Guerra Fria). Vale ponderar que Graciliano goze
em algumas passagens da “má fama soviética” repercutida pelo ocidente
capitalista, confrontando a propaganda enganosa com os fatos observados: o
funcionamento regular de Kolkhoz
(cooperativa agrícola) que oferece diversos serviços educacionais e recreativos
aos trabalhadores; o alto índice de leitores revelado pela alta vendagem de
livros, quando comparada com o brasil; a preocupação com a preservação do
passado e respeito perceptível na consevração de castelos medievais.
Entretanto, o livro não tem como eixo contrabalancear a propaganda negativa
feita pelo o ocidente à realidade positiva do oriente – o que é feito por Caio
Prado Jr. Em seu “O Mundo do Socialismo” (Ler mais em: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2010/11/o-mundo-do-socialismo-caio-prado-jr.html)
Graciliano
também destaca impressões pessoais com relação as pessoas consideradas
individualmente, se assemelhando à descrição de personagens de seus romances –
considerava as russas de uma beleza particular e, atento ao seu olhar de
romancista, anotou detalhes dos mais reveladores sobre roupas, posturas e
olhares. Por meio da sensibilidade artística soube interpretar a excessiva
amabilidade dos guias que os orientava como algo meio forçado e não espontâneo.
Da mesma forma, tomou nota de algumas situações esquisitas, como a de um
fumante que insistiu (mesmo após negativa) que o escritor aceitasse seu
cigarro.
De toda forma, Graciliano Ramos certamente se
sentia muito diferente daquelas pessoas. Em certos momentos soa mesmo como se
colocasse numa posição de inferioridade, particularmente quando tomou conta da
alta tiragem de livros vendidos e do grande público leitor daquele país.
Parece-nos ser um traço da própria personalidade daquele alagoano franzino, magro,
fisicamente nada atraente: esta auto-negação ganharia expressão poética mais
importante no, na nossa modesta opinião, seu maior livro, “Angústia” Em
síntese, este belo memorial de viagem pode interessar tanto aqueles que
apreciam o modo como Graciliano Ramos escreve (neste relato de viagem, seu estilo
literário é o mesmo dos seus romances), quanto os que desejam conhecer alguns
aspectos da vida na URSS sob o olhar de um dos mais “inteligentes” autores da
história do país.
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