Resenha
livro #65 “As Metamorfoses da consciência de classe: O PT entre a negação e o
consentimento” – Mauro Iasi – Ed. Expressão Popular
Mauro
Iasi é um importante intelectual orgânico da esquerda socialista brasileira.
Doutor em sociologia pela USP, é dirigente do PCB, além de ter atuado como
educador popular do NEP 13 de Maio, um grupo de formação de quadros políticos.
Este livro, já em segunda edição pela Ed. Expressão Popular, corresponde à sua tese
de doutorado. O tema da dissertação envolve o processo de tomada de consciência
política, desde os seus momentos individuais, grupais e classistas. As
metamorfoses da consciência envolvem um estudo que vai além de determinações
causais exclusivas, como a posição social do indivíduo frente às relações de
produção historicamente colocadas, a educação ou como fruto de uma suposta essência
humana.
Consoante
Marx, não é a consciência que determina o ser social. Ao contrário: é o ser
social que determina a consciência. Dentro desta perspectiva, é possível ver como
a consciência se reproduz inicialmente por meio de ações seriais objetivadas,
espécie de ponto de partida da consciência, que expressa valores e ideias dominantes
introjetados desde cedo nos indivíduos. A própria noção de indivíduo tem uma
coloração ideológica já que, utilizando os termos de Iasi, expressa pessoas “encapsuladas”
em seu mundo, alienadas desde o ponto de vista da sua relação com o trabalho e
repercutindo a ideologia liberal segundo a qual a sociedade seria uma mera
somatória de indivíduos. Por suposto, tal senso comum está inteiramente
alinhado com a lógica de reprodução do capital: a liberdade na perspectiva
liberal é a liberdade do mercado ou mais especificamente uma liberdade contratual
envolvendo de um lado uma classe que vive da venda da força de trabalho e de
outro uma classe detentora dos meios de produção que compra a força de trabalho
e dela extrai mais valia.
O
interessante do estudo de Mauro Iasi é que, além do vasto repertório teórico
envolvendo este tema particularmente complexo a partir da apropriação não só de
Marx, mas de Sartre e Freud, o professor conta por um lado com sua experiência
como educador popular e por outro com entrevistas de campo junto a militantes
mais ou menos engajados do movimento social e do movimento sindical, para
traçar um panorama amplo e profundo sobre como se dá as passagens ou metamorfoses
da consciência, desde a percepção do mundo pelo senso comum (qual seja a
reprodução ideológica de ideias da classe dominante disfarçadas de “interesses
universais”), até um momento inicial de negação que parte de uma práxis que põe
em movimento uma realidade inerte por um primeiro agrupamento: uma luta parcial
e pontual que agrupe e rompa com o enclausuramento individualizante e conforma
uma primeira transformação da consciência. Iasi cita como exemplo depoimentos
da primeira aproximação de militantes com alguma luta mais específica, seja uma
mobilização de trabalhadores numa fábrica, seja nos primeiros contatos com um
movimento grevista, seja uma luta popular em alguma comunidade. Há aqui uma
primeira negação da realidade que pode avançar para um questionamento
totalizante das relações sociais inertes (negação da negação progressiva), ou
pode retroceder em uma nova lógica de serialidade, quando as ações objetivadas
implicam numa burocratização (negação da negação regressiva).
O
estudo contem dois blocos essenciais. O primeiro corresponde justamente à
análise sob diversas perspectivas do problema da consciência e suas
transformações. O fio condutor ou o que parece ser a indagação mais essencial
do autor é buscar compreender como se dá estas passagens de consciência, em
particular no que se refere ao salto do momento grupal para o momento
classista, ou da classe em si em direção à classe para si.
O
segundo bloco seria uma análise de caso. Servindo-se do denso e poderoso
arsenal teórico trabalhado na primeira parte do livro, Iasi passa a analisar a
história trágica (ou melhor dizendo farsesca) do PT, de um partido derivado das
lutas operárias a partir do fim dos anos 1970, que reivindica o socialismo e o
anti-capitalismo, a um partido da ordem que, segundo a conclusão do autor,
estaria hegemonizado pela política pequeno-burguesa, estando mesmo abaixo da
social-democracia no que se referiria ao menos a algumas reformas que
efetivamente “acumulassem forças” em direção ao socialismo. O método da análise
do professor Iasi dá-se pela leitura crítica dos cadernos de resolução dos
encontros e congressos partidários. Por meio destes documentos oficiais fica
bastante evidente a transformação do partido “da negação ao consentimento”. O
que antes era “anticapitalismo” transforma-se em “antineoliberalismo”. O que
era “classe trabalhadora” transforma-se gradualmente em “povo” e depois em
“cidadão”. Palavras como “ruptura” e mesmo “socialismo” vão desaparecendo,
falando-se agora em “consenso”, “democracia”, “pluralismo” e “estado de
direito”.
Como
explicar esta transformação, este movimento regressivo também impactando e
sendo impactado pela consciência da classe (interrogação). Desde já, Iasi
afasta-se tanto da tese de Jacob Gorender para quem a classe trabalhadora – ao
ter como horizonte a luta econômica – é ontologicamente reformista. Também se
afasta da perspectiva trotskysta de “crise de direção” que basicamente
responsabiliza os dirigentes petistas partindo do pressuposto de que a classe
operária é ontologicamente revolucionária e sempre estaria à disposição para
romper com os limites da ordem. Como se pôde analisar nos primeiros capítulos,
a classe operária pode ser tanto reformista quanto revolucionária, consoante um
complexo número de fatores objetivos e subjetivos. No caso do PT há de se
destacar dentre outros elementos a derrota e extinção da URSS, colocando o
socialismo na defensiva em todo mundo; a derrota eleitoral, particularmente a
mais impactante que foi o embate com Collor, aumentando as pressões pela
moderação no discurso e na prática política; a burocratização do partido e seu
inchaço através da conquista de postos no estado burguês, tendo como
contrapartida a gradual assimilação do partido à ordem e seu afastamento da
classe. A própria independência de classe vinha sendo gradualmente mitigada:
inicialmente o PT dizia ser o partido da classe trabalhadora não admitindo em
seu seio a burguesia, seja ela a rentista ou não. Gradualmente, o leque de
alianças vai se ampliando, particularmente frente às pressões eleitorais,
passando a incorporar setores da burguesia até diluir completamente qualquer
resquício de classismo, o que estaria expresso em 2002 na “Carta ao Povo Brasileiro”,
também conhecida como “Carta aos Banqueiros”, asseverando que o governo Lula
manteria (como de fato manteve) a ortodoxia econômica do governo FHC.
Justamente
por escapar de explicações reducionistas, a tese de Mauro Iasi é mais uma boa
ferramenta para se analisar o ciclo histórico do PT, bem como cortejá-lo com as
metamorfoses da consciência da classe trabalhadora no país. Estaria toda a
esquerda e todos os seus partidos condenados à burocratização e o retorno à
serialidade, conforme o tese existencialista (interrogação). Não, diz o autor e
para concluir, Mauro Iasi cita Gramsci acerca da importância da intransigência
política como forma de evitar as deformações. Não se trata de um circulo eterno
da negação ao consentimento, da luta ao amoldamento à ordem, mas de um
movimento em espiral em que as transformações elevam as condições de organizar
e lutar da classe sob outro patamar, com avanços e retrocessos para a classe.
É
possível distinguir dois tipos de marxismos. Um é o marxismo acadêmico, que
possui pouca ou nenhuma confiança na classe trabalhadora e por isso prefere
observar os processos à distância, não sem alguma arrogância de quem julga
entender algo sobre a classe sem sequer conhece-la presencialmente e no
cotidiano. Mauro Iasi não é este tipo de “marxista”: ele é um marxista
militante e que portanto procura não só compreender os processos e fenômenos,
mas atuar sob eles, além de persistir acreditando na possibilidade do
socialismo e do comunismo.
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