domingo, 12 de março de 2023

CHU EN-LAI E A REVOLUÇÃO CHINESA

 CHU EN-LAI E A REVOLUÇÃO CHINESA

 




Resenha Livro – Chu En-Lai – Coleção Os Grandes Líderes – Ed. Nova Cultural

 

Quando os comunistas chineses foram alçados ao poder no ano de 1949, décadas após sucessivos conflitos com potências estrangeiras e com o Koumitang (partido nacionalista), Chu En-Lai já era um dirigente político experiente.

 

Iniciara sua militância política em 1919 no “Movimento 4 de Maio”, grupo político que se opunha à dominação colonial da China e lutava pela destituição do poder dos Senhores de Guerra, grupos familiares (ou dinastias) de tipo feudal que presidiam o país.  Três anos depois ingressaria no Partido Comunista, tendo se engajado nas principais lutas que perduraram pelo menos 20 (vinte) anos até o triunfo da Revolução Chinesa e a fundação da República Popular da China.

 

Sua importância dentro do movimento comunista chinês se revela logo após a vitória da revolução, quando é nomeado para os dois principais postos do governo: foi indicado como primeiro-ministro do Conselho de Estado, onde tinha de estruturar e supervisionar o sistema administrativo de todo o país. Além disso, foi nomeado como chefe das relações diplomáticas,  incumbindo-lhe criar e ampliar as relações da China com as outras nações do mundo, superando seu isolamento político e comercial.

 

A trajetória deste que foi talvez a segunda principal liderança da Revolução Chinesa (ficando apenas atrás de Mao Tsé Tung) se confunde com a evolução política da China desde o fim do século XIX.

 

O país em fins do século XIX era uma semi-colônia de nações imperialistas europeias e do Japão. A derrota humilhante da China na 1ª Guerra Sino-Japonesa (1894/1895) agravou ainda mais a crescente exploração do país por potências estrangeiras, principalmente a Grã Bretanha.

 

Esta situação de dominação colonial criaria as condições para a insurreição dos Boxers, uma revolta nacionalista que se opunha aos estrangeiros e à dominação imperialista sobre a China: destruíam propriedades estrangeiras, como ferrovias e linhas telegráficas, atacavam embaixadas e assassinavam missionários cristãos e cristãos chineses.

 

Esta revolta expressou o declínio e decadência da Dinastia Manchu, que seria apeada do poder após a vitória militar do Koumitang contra os senhores de Guerra entre 1911/1912. O regime político de tipo feudal dirigido pelos mandarins seria derrubado pelos nacionalistas, cujo programa político envolvia a criação de um regime republicano forte e independente.

 

Os Boxers, na verdade uma sociedade secreta chamada “Punhos da Harmonia e da Retidão”, expressavam a aversão dos chineses pela crescente influência político-cultural e pela exploração comercial europeia na China

 

Nesta primeira etapa da revolução chinesa, os nacionalistas do Koumitang e os comunistas atuavam conjuntamente contra os senhores de guerra e o feudalismo na China. O próprio Chun Em-Lai, como muitos outros militantes, pertenciam ao mesmo tempo aos dois partidos.

 

Contudo, com a morte de Sun Yat Sen (1925) e a chegada de Chiang Kai-shek, o Koumitang volta-se contra os comunistas, acarretando expurgos e assassinatos. Dentre eles, pode-se citar o levante de Xangai (1927) que fora liderado por Chu. Chiang Kai-shek ordenara uma represália brutal contra o levante, com a execução de 5.000 comunistas imediatamente após a batalha que daria a vitória ao Koumitang. “Cabeças rolaram nas valas como ameixas maduras”, observou uma testemunha ocular.

 

Em 1937 com a Invasão Japonesa na China no contexto da II Guerra Mundial, há uma nova trégua entre nacionalistas e comunistas, pleiteada com maior ênfase por estes últimos, que defendiam uma frente nacional contra os invasores.

 

A chamada II Guerra Sino Japonesa (1937/1945) foi particularmente trágica para os chineses. Naquele contexto, ficou conhecido uma das páginas mais tristes da história da China, o Massacre de Nanquim, um episódio de carnificina humana envolvendo assassinatos e estupros em massa cometidos por tropas japonesas.

 

A estimativa oficial da China é de 300.000 mortos em Nanquim. O exército imperial japonês obteve o controle total da cidade em poucas horas após o início do assalto. Todos os soldados chineses capturados foram torturados, depois fuzilados, enforcados ou decapitados. Os civis sofrem com a fúria homicida do assalto à cidade de Nanquim pelo exército imperial japonês. Homens, mulheres, crianças e idosos são mortos brutalmente nas ruas.

 

Muitas das mulheres eram estupradas pelos militares japoneses para depois serem mortas, não sem antes profanarem os seus corpos inserindo armas e artefatos de madeira nos órgãos genitais femininos.

 

Após a derrota e rendição dos japoneses na II Guerra Munidial em 1945, a China ainda passaria por mais alguns anos de guerra civil entre nacionalistas e comunistas até a vitória de Mao e seus camaradas em 1949.

 

Chu En-Lai cumpriu um papel importante na diplomacia chinesa, buscando com sucesso romper o isolamento do país após o triunfo da revolução socialista.

 

Cumpriu um papel fundamental na Conferência Afro-asiática em Bandung na Indonésia em 1955, naquilo que foi a sua maior vitória diplomática. O representante chines buscou dissipar os temores dos países asiáticos sobre o expansionismo chinês, reatou relações com inúmeros países e abrandou o isolamento ao qual a China esteve submetida deste a tomada do poder pelos comunistas.

 

Os princípios daquilo que ficou conhecido como movimento de coexistência pacífica liderado por Chu envolviam os seguintes pontos: (i) respeito recíproco pela integridade e soberania territorial das nações; (ii) acordo mútuo de não agressão; (iii) não intervenção nos assuntos internos do outro estado; (iv) igualdade e benefícios mútuos; e (v) coexistência pacífica.

 

Politicamente, Chu não pode ser caracterizado como pertencente da ala mais direitista do Partido Comunista Chinês. Contudo, era um político realista, sem se deixar guia de maneira cega pela ideologia, razão pela qual, em alguns momentos, entrava em conflito com Mao, cuja orientação política nem sempre era a mais pragmática. Por exemplo, durante a Revolução Cultural chinesa (1966), momento de radicalização ideológica que instaurou um regime de “caças às bruxas” daqueles suspeitos de desvios burgueses, Chu pareceu tentar influenciar Mao moderadamente, ao pressentir que as coisas pudessem ficar fora de controle. Como de fato ficaram.  

 

Naquele momento de radicalização política, Chu (um intelectual da cidade, cuja origem familiar era proveniente dos mandarins) chegou a ser perseguido. Cartazes nas ruas sugeriam que o líder da diplomacia chinesa devesse ser queimado vivo. Consta que uma filha adotiva de Chu foi assassinada durante a Revolução Cultural, como meio de atacar e coagir o dirigente.

 

Ao fim da vida, Chu En-Lai já não tinha o mesmo prestígio dos anos imediatamente após o triunfo da revolução.

 

Quando do seu falecimento 08 de Janeiro de 1976, poucas pessoas compareceram ao seu funeral. Contudo, desde a sua participação na guerra de libertação nacional chinesa, passando por seu pragmatismo e realismo político, especialmente nas relações exteriores, Chu Em-Lai foi um personagem decisivo para a evolução política chinesa. Chu, neste sentido, não fora tanto um marxista ortodoxo, mas um nacionalista que assimilou as ideias socialistas para a criação de uma via chinesa de desenvolvimento.

terça-feira, 7 de março de 2023

Fernão Cortez: O Conquistador do México

 Fernão Cortez: O Conquistador do México




              Resenha Livro – “Os Grandes Líderes: Cortez” – Ed. Nova Cultural


“As fantásticas histórias de Cristóvão Colombo circulavam por toda a Europa. As novas terras, misteriosas e ricas, constituíam o tema mais fascinante da época, rompendo com o mundo estreito de uma Europa semi-feudal. Índios, papagaios, macacos, bugigangas de ouro, trazidas do Novo Mundo, começavam a ser vistos nas cidades europeias, e os marinheiros que haviam aderido ao uso do tabaco, até então desconhecido dos europeus, exibiam-se soprando fumaça pela boca. Que jovem de 18 anos, cheio de vitalidade, não se sentiria atraído pelas perspectivas de conhecer essas terras distantes, que prometiam aventura, fama e ouro?”

 

Fernão Cortez ficou conhecido por ser o conquistadoor do atual território mexicano, mediante a subjugação dos Astecas e a mais completa destruição daquela civilização. Considerado por muitos mexicanos ainda hoje como um vilão, consta que a Cidade do México, criada por Cortez após a destruição de Tenochtitlán (capital do império Asteca), não possui estatuas em homenagem ao seu fundador.

 

Como tudo o que se refere a processos históricos de longa duração, que, aqui, dizem respeito à conquista da América pelos europeus, os maniqueísmos que dividem colonizadores e colonizados entre o maus e o bons, no mínimo, reduzem a complexidade dos conflitos em jogo.

 

Para aqueles que acreditam que a história não se limita a uma mera ordem cronológica de grandes eventos, mas como um processo, nem sempre pacífico, de evolução das civilizações, o papel dos colonizadores europeus foi acima de tudo progressivo.

 

Esta evolução histórica está associada ao maior domínio do homem sobre a natureza, às transformações progressivas das formas de trabalho, ao desenvolvimento da cultura e a maior complexidade nas relações sociais.  Dentro desta perspectiva, a conquista da América não pode ser reduzida a um mero “genocídio” perpetrado por colonizadores sedentos de sangue e ouro. O empreendimento colonial criou as condições para a superação do feudalismo na Europa, promoveu desenvolvimento das artes naquilo que ficou conhecido como Renascimento, promoveu a chamada acumulação primitiva que criou as condições para a Revolução Industrial: é parte integrante daquele processo de evolução histórica que nos levou aos dias de hoje.

 

Daí a importância de compreender o papel de Fernão Cortez, como um exemplo específico do grande empreendimento colonial luso espanhol.

 

O conquistador do México nasceu em Medelin na Espanha, no ano de 1465. Era filho de um oficial do exército e de origem aristocrática.

 

Naquele tempo, as opções profissionais de um jovem se limitavam ao ingresso no exército, no clero ou ocupando cargos burocráticos de Estado. Aos 14 anos de idade, Coortez ingressou na Universidade de Salamanca para estudar Ciências Jurídicas e Latim, abandonando os estudos dois anos depois.

 

O espírito inquieto e aventureiro o levou aos 19 anos a lançar-se em busca das índias ocidentais, dirigindo-se  à Ilha de Hispaniola (hoje República Dominicana e Haiti).

 

O local agregava aventureiros que buscavam enriquecer dada as vagas notícias da existência de grandes jazidas de ouro e prata no Novo Mundo. A conquista espanhola era motivada, basicamente, pela busca destas riquezas, ainda que formalmente era justificada como uma cruzada pela disseminação do cristianismo. Muitos se lançavam nesta aventura dado as estreitas possibilidades de ascensão social na Espanha daquele tempo.

 

Após alguns anos vivendo em Hispaniola, Cortez se engaja numa expedição de conquista de Cuba quando granjeia a confiança dos chefes políticos locais. Seria, assim, nomeado pelo representante do Rei em Hispaniola (Diego Velázques) para uma expedição para Yucatán, onde teria notícias da civilização asteca.

 

O Império Asteca era na verdade uma confederação de estados independentes sob o domínio dos Astecas, que em fins do século XV já haviam imposto sua dominação sobre os Maias.

 

Aos olhos dos espanhóis, os astecas pareceram uma estranha mistura de alta civilização e barbarismo selvagem. Possuíam um governo complexo dirigido então por Montezuma, uma arquitetura magnífica e um calendário mais preciso do que o dos europeus. Não dominavam a escrita e desconheciam o uso do ferro. O canibalismo e o sacrifício ritualístico de seres humanos eram praticados por todas as tribos, e em maior escala pelos Astecas. Havia relatos históricos de celebrações nas quais 20.000 corações humanos tinham sido arrancados do peito de prisioneiros para o culto dos deuses daquele povo.

 

A prevalência militar dos espanhóis sobre aquela civilização asteca originou-se do maior domínio da tecnologia.  Na época das navegações a Espanha já utilizava armas de fogo (mosquetes e canhões), subjugando os índios que os enfrentavam de arco e flecha e pedras. Além disso, os europeus, diferentemente dos índios, já conheciam o metal e produziam espadas, punhais e adagas.

 

Para além da pura dominação pela força, havia uma articulação política e uma espécie de “diplomacia” entre Cortez e as lideranças indígenas locais, capitaneadas por Montezuma. Muitas das tribos eram dominadas pelos astecas e viam nos espanhóis um aliado para a sua própria libertação.  

 

Quando os espanhóis chegaram em Tenochtitlán, foram recebidos de forma hospitaleira por Montezuma, ainda que nas comunicações travadas antes desta chegada, o líder dos astecas variava entre a cordialidade e a ameaça. A hospitalidade foi logo se tornando hostilidade, especialmente após os espanhóis profanarem os rituais religiosos bárbaros dos índios: mesmo havendo o interesse primordial pelo ouro e pela prata, a expedição ainda se ocupava de promover o cristianismo e superar a cultura pagã dos índios.

 

Em 25/07/1520, eclode a guerra aberta entre espanhóis e astecas que acarretaria na destruição de Tenochtitlán e na dizimação da sua populaação: os que não morreram pela espada e pólvora dos espanhóis, faleceram de epidemia de varíola, doença contra a qual os índios não tinham imunidade.

 

Para se ter uma dimensão da destruição promovida pelos espanhóis, temos que as estimativas mais conservadoras da população da capital Asteca era de 90.000. Era uma cidade mais populosa do que Paris e Londres do séc. XV que contavam com 65.000. Praticamente toda a população foi dizimada, a cidade destruída e sobre ela construída a atual Cidade do México.

 

Após a vitória sobre a mais desenvolvida civilização indígena do México,  ou mais exatamente em 15/10/1522, o rei espanhol Carlos V declarou Cortez governador na Nova Espanha. Contudo, havia uma desconfiança de que as habilidades militares do conquistador não eram necessariamente traduzidas em aptidão para a administração pública.

 

O seu poder foi esvaziado e Cortez foi gradualmente sendo preterido pelo Rei da Espanha, até a sua morte em 02 de Dezembro de 1547, já de volta à Espanha, onde se preparava para uma nova expedição já com mais de 60 anos de idade.

 




Cortez e Montezuma cumprimentam-se em Tenochtitlan em meio a um cerimonial em 1519. Montezuma reconheceu rapidamente a autoridade do rei da Espanha sobre o México, enquanto Cortez alegava ser amigo e não conquistador. Os dois mantiveram um estranho relacionamento de amigos e inimigos.

segunda-feira, 6 de março de 2023

“Canaã” – Graça Aranha

 “Canaã” – Graça Aranha




 

Resenha Livro – “Canaã” – Graça Aranha – Iba Mendes Editor Digital – www.poeteiro.com

 

No ensino de literatura no ensino médio somos ensinados e compreender a evolução da literatura brasileira de acordo com “escolas” que se sucedem de forma cronológica e linear: do romantismo ao realismo; do realismo ao naturalismo; do naturalismo ao simbolismo, etc. etc.

 

Dentre estas categorias, uma daquelas mais discutíveis é a de pré-modernismo, que se situaria entre 1900 e 1922, tendo como termo final a primeira irrupção modernista oriunda da Semana de Arte Moderna. Dentro desta categoria residual se situam autores absolutamente diferentes em termos de estilo e objetos de análise e descrição: Lima Barreto, Euclides da Cunha e Graça Aranha são comumente associados ao dito pré-modernismo.

 

Contudo, pode-se de fato pensar este período da trajetória da nossa literatura como um momento de transição: nela ainda se observam aspectos caros do naturalismo, perspectiva em que o homem olha objetivamente a realidade, sem enfeites de imaginação que, frequentemente, resultam da impossibilidade ou da impotência em explicá-la. Tal qual um cientista que analisa os fatos da natureza, o escritor naturalista expressa o mundo onde pousa os seus pés. Ao menos em Canaã, estão igualmente presentes os pressupostos teóricos da escola naturalista envolvendo determinismo, o darwinismo social e as teorias evolucionistas.

 

Além disso, no mais conhecido romance de Graça Aranha já se antecipa uma preocupação central do modernismo brasileiro. Nem tanto a experimentação formal influenciada pelas vanguardas europeias mas a preocupação subjacente daquele movimento de se explicar o Brasil através de sua experiência histórica para assim apontar perspectivas de futuro do país.  

 

Canaã pode ser entendido como um romance de tese, que expressa o debate intelectual da época.

 

O livro trata das colônias alemãs situadas no interior do Espírito Santo. As colônias decorriam de um movimento iniciado ainda no século XIX de estímulo da vinda de imigrantes europeus ao Brasil, não só como meio de substituir o trabalho escravo, cuja abolição deu-se em 1888, mas por conta de considerações raciais relacionadas ao debate intelectual da época.

 

Os dois principais personagens, os alemães Milkau e Lentz, expressam dois pontos de vistas distintos relacionados às discussões do período em torno de raça, cultura e o futuro do Brasil.

 

Milkau, desiludido com a Europa, busca no Brasil o recomeço de sua existência na virgindade de um mundo que estava para ser construído. Via na miscigenação brasileira algo positivo, já que pensava a evolução humana relacionada à confluência de raças. Rejeitava o patriotismo alemão e entendia que as guerras e a luta entre os homens, no futuro, seriam superadas pela solidariedade e o amor.

 

Há quem diga que este personagem fora inspirado em Tolstói e de fato suas intervenções remetem a algo próximo de um socialismo utópico.

 

Lentz parece ser o exato oposto de seu amigo Milkau. Via a imigração alemã como uma oportunidade de subjugar os negros e mestiços do país. Línguas, culturas e civilizações duelam até a prevalência da raça mais forte, no caso a alemã. Enquanto seu companheiro via beleza na harmonia entre o homem e a exuberância da natureza brasileira, Lentz enxerga a beleza na luta e na vitória do mais forte, na dominação do homem sobre a natureza. Pode-se relacionar as suas ideias com a moral nietzschiana: a apologia do mais forte, o desprezo pelos fracos e pela caridade cristã.

 

“Milkau era agricultor por instinto, e todas as suas faculdades de atenção, de imaginação, as empregava com desvelo e ardor no trabalho com as próprias mãos, que enobrecia o seu destino humano. Lentz era o caçador. Restringindo a um círculo de limitada atividade, o seu espírito, sempre retrógrado, buscava expandir-se nessa forma inicial e selvagem de civilização. Caçava, lutava com os animais, devastava matas, e aliado a outros colonos de igual inclinação, em poucos meses para ele já não havia segredos na floresta brasileira. No mesmo teto esses dois homens exprimiam duas culturas diferentes. Um oferecia um mundo de façanhas, matanças, sacrifícios de sangue, e o outro, simples lavrador, frutos da terra, flores do seu jardim...”.

 

Expressando o debate intelectual da época, em Canaã se percebe que a categoria de raça e cultura eram mais centrais do que o conceito de sociedade, para os sociólogos e antropólogos de fins do XIX e início do XX.

 

 

A despeito da história retratar uma colônia de camponeses alemães, o debate que a obra suscita diz respeito aos dilemas do desenvolvimento brasileiro: os personagens principais oriundos de uma país distante, ao tecer cada um os seus pontos de vista sobre a realidade nacional, possibilitam uma visão mais equidistante acerca das possibilidades da civilização brasileira. Isso sem dizer das passagens do livro que retratam o relacionamento dos colonos estrangeiros com os brasileiros, especialmente as autoridades políticas corruptas.

 

Válido ressaltar que Graça Aranha, na condição de diplomata, participara pessoalmente do projeto de incentivo da imigração europeia do Brasil.

 

O que não significa dizer que o livro chega a conclusões eugênicas envolvendo o a prevalência da raça branca sobre mestiços e mulatos.

 

Ao longo da história, ao se depararam com as corriqueiras tragédias sociais relacionadas à pobreza e à intolerância humana, cada um dos personagens revê as suas próprias ideias iniciais. Ao fim e ao cabo, o livro não apresenta respostas senão aquilo que foi definido pela crítica de “pessimismo esperançoso”: a miscigenação permitiria o desenvolvimento através da criação de um povo com características próprias; e, por outro lado, esta miscigenação transformaria os nativos ao ponto de se tornarem irreconhecíveis em relação ao seu próprio país.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

“O IMPÉRIO BRASILEIRO” POR OLIVEIRA LIMA

 “O IMPÉRIO BRASILEIRO” POR OLIVEIRA LIMA




 

Resenha Livro – O Império Brasileiro (1822/1889)  – Oliveira Lima – Ed. Avis Rara

 

SOBRE O AUTOR

 

Manoel de Oliveira Lima foi diplomata, jornalista e historiador, tendo cumprido papel intelectual proeminente entre os fins do século XIX e inícios do século XX. 

Basta dizer que foi membro do IHGB e assumiu a cadeira de Francisco Varnhagen na Academia Brasileira de Letras. Outrossim, participou intimamente da convivência com figuras como D. Pedro II, José Martiniano de Alencar, Rui Barbosa, Afonso Celso e Machado de Assis (com quem trocou cartas), havendo em seus livros a percepção efetiva de quem vivenciou diretamente os fatos políticos e institucionais do Brasil Império.

  

Na diplomacia, ocupou cargos em Lisboa, Alemanha, Venezuela, Bruxelas e Suécia, além de ter sido professor de Direito Internacional da Universidade Católica da América em Washington, para quem doou sua biblioteca sobre a história do Brasil, que conta com 56 mil volumes, além de peças de arte, incluindo os famosos quadros de Frans Post, que retratou em pinturas a história da ocupação (ou diríamos invasão) holandesa no Brasil. 


Esta biblioteca é hoje a terceira maior do mundo no que toca à história do Brasil, perdendo apenas para a Biblioteca Nacional do Brasil e para a biblioteca da Universidade de São Paulo.

 

O historiador nasceu em Recife/PE no dia do natal em 1987, sendo o último filho de Luiz de Oliveira Lima, um rico comerciante português que fez fortuna e garantiu a sua família relativa prosperidade. Contudo, consta que o pai do nosso escritor foi de origem simples, tendo alcançado com o seu esforço sua riqueza, sem que, com isso, fosse parte da tradicional elite pernambucana. 

 

Em 1873, aos seis anos de idade, muda-se com a família para Lisboa onde fará seus estudos secundários junto aos padres lazaristas e, posteriormente, ingressaria no Curso Superior de Letras.


Quando jovem estudante de Letras em Lisboa, era simpática ao republicanismo. Posteriormente, mudaria o seu posicionamento, tanto que em 1913 (14 anos após a proclamação da república) o senado votou contra a sua entrada na embaixada de Londres alegando que Oliveira Lima era monarquista.


Iniciou sua carreira diplomática como segundo secretário da legação de Lisboa (1891). Naquela época, o ingresso nesta carreira não se dava por concurso público, mas por indicação. Sua seleção deu-se, entre outros, após estabelecer relações com Quintino Bocaiuva e o Visconde de Cabo Frio, bem como diante da influência de sua esposa Flora Cavalcanti de Albuquerque que, como o sobrenome indica, pertencia a família firmemente estabelecida entre os proprietários de engenho e tinha boas credenciais junto à sociedade pernambucana.

 

O Império Brasileiro[1] (1927).



 O advento da independência no Brasil conviveu com duas tendências políticas que se protraem ao longo de todo o século XIX: o rancor contra o elemento português e o ideal republicano, sua expressão revolucionária oriunda da Revolução Francesa.

 

Politicamente, o país era dividido por duas grandes correntes políticas: liberais e conservadores, aos quais se pode acrescentar a partir de 1870 os republicanos que, naquele ano, constituíram o seu partido político. 


Os liberais tinham em geral o programa segundo o qual “o rei reina mas não governa”. No apelo dos liberais ao soberano (1869) defendia-se a responsabilidade pelos ministros dos atos do Poder Moderador, reforma do senado para suprimir a inamovibilidade, liberdade em matéria de comércio e garantias efetivas da liberdade de consciência. Os conservadores foram aqueles que maior oposição suscitaram às sucessivas leis que desembocaram na abolição da escravatura e, de maneira geral, mantinham-se mais próximos da ideia de centralização política consubstanciada no poder monárquico.

 

Contudo, não se deve exagerar esta diferenciação entre Liberais e Conservadores. Na prática, cada partido executava um determinado programa que era criticado pela oposição que, ao assumir o poder, restabelecia o mesmo programa e encontravam a mesma oposição do partido apeado do poder.

 

De acordo com Oliveira Lima, os partidos podiam ser definidos como simples agregados de clás. organizados para a exploração em comum das vantagens do poder. Não eram partidos ideológicos amparados no seu programa político: tinham em mira basicamente ganhar as eleições, que não primavam pela lisura.

 

Contudo, da leitura de alguém que vivenciou o período final do Império e conheceu de perto as grandes figuras da época, fazia sentido chamar a atenção de um “espírito democrático” do regime político, o que é particularmente verdadeiro durante o II Reinado de D. Pedro II, que é apresentado como alguém cioso da lisura nos ministérios e nas eleições, extremamente leal e disposto a fazer negociações políticas. Certamente, não se tratava o II Império de uma monarquia absolutista, mas uma monarquia constitucional, cuja principal referencia política era a Inglaterra. O autor dá exemplos de inúmeros jornais que faziam críticas (ou diríamos insultos) à D. Pedro II que as tolerava sem perseguições à imprensa. O que dizer desta postura democrática do imperador quando vemos ministros do STF hoje cassando qualquer voz discordante. 

INSTITUIÇÕES POLÍTICAS  


                Estudo para frei Caneca, obra de Antônio Parreiras (1860-1934) representado o julgamento de Frei Caneca

Como se sabe, o fim do regime colonial no Brasil, diferentemente do que ocorreu nos países da América Espanhola, teve o mérito (muito subestimado) de resguardar o vasto espaço territorial do país, que fora definido em linhas gerais em 1750 com o Tratado de Madrid. 


Havia, certamente, uma superioridade política e militar do Brasil sobre a América Latina, o que se evidenciou particularmente após a sua vitória na Guerra do Paraguai. Esta predominância do país pode ser explicada pelas particularidades de nossa independência que basicamente exportou o regime político vigente em Portugal ao Brasil, através da vinda de João VI ao continente americano em 1808. 

Diferentemente dos países da América Espanhola que começaram política e institucionalmente do zero através da experiência republicana, o Brasil inicia sua trajetória através de arranjos jurídicos e institucionais já estabelecidos, projetando-o, assim, sobre os demais países.

 

Ainda que os governos do Brasil Império (assim como os da chamada “Velha” República) negligenciaram a questão social, a leitura do livro de Oliveira Lima evidencia um país evoluído politicamente, que contava com uma imprensa pujante que influenciava o desenvolvimento histórico, além de contar com lideranças muito bem preparadas, começando por José Bonifácio e os irmãos Andradas, passando ao Barão de Rio Branco, Bernardo de Vasconcellos, Barão de Cotegipe e outros grandes políticos do período.  

 

Trata-se portanto de um livro oportuno no atual momento em que “historiadores” de origem acadêmica parecem estar engajados a denegrir o Brasil, tratá-lo como uma nação presididas “por elites masculinas e brancas”, desconsiderando solenemente a participação popular nos grandes momentos da história do país.



[1] Quando o livro foi escrito, o título era “O Império Brazileiro”, que era a grafia correta da época. 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

“O Homem” – Aluísio Azevedo

 “O Homem” – Aluísio Azevedo




 

Resenha Livro - “O Homem” – Aluísio Azevedo – Iba Mendes Editor Digital – www.poeteiro.com

 

 

Aluísio Tancredo Gonçalves Azevedo nasceu em 14 de abril de 1857 na cidade de São Luís do Maranhão.

 

Era filho de um vice-cônsul português, sendo certo que o próprio escritor futuramente abandonaria a literatura aos 38 anos, para virar diplomata, tendo servido na Espanha, Inglaterra, Itália, Japão, Paraguai e Argentina.

 

O nosso escritor, quando criança, não era exatamente de família nobre e abastada, mas certamente nunca passou por privações materiais.

 

No ano de 1871, Aluísio se matriculou no Liceu Maranhense à época dirigido pelo professor Francisco Sotero. No mesmo ano começou a ter aulas de pintura com o artista italiano Domingos Tribuzzi.

 

Em 1876 o escritor mudou-se para o Rio de Janeiro, lá permanecendo por dois anos. Trabalharia na imprensa carioca como caricaturista, se aperfeiçoando no desenho após obter matrícula na Academia de Belas Artes. Chegou a solicitar à Assembleia maranhense uma pensão para estudar em Roma, o que lhe foi negado.

 

Em 1878, com a morte do pai, Aluísio regressa a sua terra natal, onde colaborará nos jornais “Pacotilha” e “O Pensador”.  

 

Da pintura, passando pela caricaturista, é certo que a sua literatura teria alguma influência desta espécie de arte e manteria interfaces com suas charges: seja a proposta de uma narrativa objetiva que retratasse a realidade tal como ela é, seja na criação de tipos sociais com uma intencionalidade de promover crítica social e até mesmo humor.

 

“O Mulato” foi o segundo livro publicado pelo escritor maranhense, lançado no ano de 1881, mesmo ano, diga-se de passagem, da publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis.

  

Supracitada obra não guardaria a mais pálida semelhança com o primeiro trabalho do autor, chamado “Uma Lágrima de Mulher” (1880).

 

O primeiro livro ainda se pode caracterizar como romance folhetinesco, todo ele se situando inclusive na Itália, sem referências nacionais.

 

Já o segundo romance é tido por muitos como a primeira obra naturalista produzida no país, o que é discutível desde que o menos conhecido Inglês de Souza com sua proposta de literatura amazônica, já produzia livros naturalistas cerca de uma década antes d’o Mulato.

 

Em todo o caso, temos que o naturalismo literário praticado por Azevedo seria a mais representativa versão dos livros de Émile Zola no Brasil.

 

Dentro desta perspectiva, o homem olha objetivamente a realidade, sem enfeites de imaginação que, frequentemente, resultam da impossibilidade ou da impotência em explicá-la. Tal qual um cientista que analisa os fatos da natureza, o escritor naturalista expressa o mundo onde pousa os seus pés. O individualismo romântico é substituído pela descrição de tipos sociais que se confundem com o meio, o que é nitidamente observado no romance “O Cortiço”: o meio e o homem se fundem em uma única unidade.

 

Já os pressupostos teóricos da escola naturalista envolvem o positivismo de Comte, o intelectualismo de Taine, o determinismo, o darwinismo social e as teorias evolucionistas de Spencer.

 

Boa parte da crítica literária, capitaneada por Antônio Cândido, busca dividir a obra de Aluísio Azevedo entre os trabalhos propriamente naturalistas, que seriam os que alcançariam maior expressão e importância literária e outras obras de menor relevância, de tipo romântico, folhetinesco e mais comerciais.

 

Dentre as ditas “grandes obras” do nosso escritor temos “O Mulato” (1881), “Casa de Pesão” (1883) e “O Cortiço” (1890), este último considerado o melhor livro de Aluísio Azevedo.


O HOMEM  





“O Homem” (1887)  segue a mesma matriz naturalista, sendo um sucesso de público. Além do viés cientificista ligado à descrição de uma personagem acometida de histeria, o romance também envolve algo de experimental, já que a realidade se confunde com os sonhos da protagonista, que culminarão num fim trágico, com o assassinato de duas pessoas perpetrado por aquela que deixou de ser capaz de diferenciar o real das experiências imaginárias.

 

Magdá, a protagonista, é filha do Conselheiro Pinto Marques, reside no bairro de Botafogo no Rio de Janeiro. Lá viviam uma tia chamada Dona Camila e Fernando, um afilhado do patriarca.

 

Fernando e Magdá passaram a infância juntos, cresceram juntos, foram amigos e posteriormente se apaixonaram, fazendo promessas de que se casariam após a conclusão dos estudos do afilhado do Conselheiro.

 

Pouco antes de cumprir a promessa do casamento, Pinto Marques intervém, negando consentimento ao enlace. Neste momento, o Conselheiro foi obrigado a confessar que na verdade Fernando e Magdá são irmãos: o afilhado na verdade fora fruto de uma relação extraconjugal, fato que fora omitido até aqui, para se evitar escândalos.

 

Após a descoberta da verdade, Fernando decide se mudar para a Europa e Magdá fica em estado de prostração e melancolia.

 

Orientado pelo médico, o Dr. Lobão, o pai de Magdá se esforça para encontrar um casamento para a filha, que sistematicamente vai negando consentimento a todos os pretendentes.

 

Gradualmente, a protagonista vai manifestando aquilo que os médicos caracterizavam como histeria: Magdá inicialmente sofre ataques de nervosismo e manias de rezas. Pode-se frequentemente observá-la fazendo monólogos a meio voz e apresentando sobressaltos sem causas aparentes.

 

Em certo passeio com o pai, Magdá observa trabalhadores braçais de uma pedreira (cavoqueiros), com corpos másculos e bem definidos que a estimula a ter sonhos eróticos – nesta passagem, o livro foi particularmente atacado pela crítica.

 

Consta, efetivamente que o  Rio de Janeiro se viu escandalizado ao ler os devaneios eróticos da protagonista, descritos para tratar do tema da histeria feminina:

 

“O trabalhador que se ofereceu para conduzir Magdá era um mocó de vinte e tantos anos, vigoroso e belo de força. Estava nu da cintura para cima e a riqueza dos seus músculos, bronzeados pelo sol, patenteava-se livremente com uma independência de estatua. Os cabelos, empastados de suor e pó de pedra, caíram-lhe sobre a testa e sobre o pescoço, dando-lhe uma satírica feição de ingenuidade ingênua.

 

O rapaz passou um dos braços na cintura da Magdá e com o outro a suspendeu de mansinho pelas curvas dos joelhos, chamando-a toda contra o seu largo peito nu. Ela soltou um longo suspiro e, na inconsciência da síncope, deixou pender molemente a cabeça sobre o ombro do cavoqueiro.”

 

Magdá passa a ter sonhos com o cavouqueiro Luís, estimulada pela abstinência sexual, tida como “não natural” dentro das premissas naturalistas. Efetivamente, o médico Lobão insistentemente pressiona o conselheiro a casar sua filha para, objetivamente, fazê-la concretizar o ato sexual: o contrário disso é uma violação das leis da natureza.

 

Sem o casamento, agrava-se a histeria, passando a protagonista a expressar a sua concupiscência sexual quando dorme: através dos sonhos eróticos, o orgulho de mulher decente abre luta contra a degradante lubricidade e luxúria dos sonhos com o cavouqueiro.  

 

A despeito do escândalo causado pelo livro, “O Homem” foi um sucesso de público.

 

O Cidade do Rio (11 out. 1887, p. 1) noticiou que nas mesas das confeitarias na rua do Ouvidor só se falava do novo livro de Aluísio Azevedo. Cinco dias depois do lançamento já estava quase esgotada a primeira edição (A Semana, 15 out. 1887, p. 1), que se referia geralmente ao primeiro milheiro.

 

O sucesso do livro foi um feito excepcional para livros brasileiros, e foi através dele que o escritor foi convidado para integrar a editora Garnier, responsável pela publicação dos livros de Machado de Assis.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

“Vamos Aquecer o Sol” – José Mauro de Vasconcelos

 “Vamos Aquecer o Sol” – José Mauro de Vasconcelos




 

Resenha Livro - “Vamos Aquecer o Sol” – José Mauro de Vasconcelos – Ed. Melhoramentos.

 

“O público foi cativado por Zezé, esse menino que dizia que o céu não era para o seu bico. Solidarizou-se com a sua nostalgia precoce. A intensa afetividade do personagem e da história talvez não agrade alguns críticos, mas pegou em cheio no coração dos leitores. Daí, o sucesso de José Mauro de Vasconcellos em livros, cinema e tevê. Um sucesso que se estendeu para dezenas de países.

 

Merecem muito respeito os livros que conquistam os leitores pelos sentimentos. Mais ainda os que alcançam êxito editorial, contando histórias simples, em termos de elaboração, mas empenhando-se em algo tão difícil de se conseguir: a empatia do leitor pelos seus personagens. É algo que demonstra que o autor acertou, não no sentido marquetológico, mas naquela corda universal, interior e profunda, humana, que faz a literatura entrar na vida da gente. Que nos faz amar a literatura.”. (AGUIAR, Luiz Antônio).

 

José Mauro de Vasconcellos nasceu em 1920 em Bangu, região de subúrbio da cidade do Rio de Janeiro.

 

Além de escritor de renome internacional, foi jornalista, radialista, pintor, modelo e ator. Junto com Jorge Amado e José Veríssimo, foi dos poucos escritores brasileiros que conseguiram sobreviver dos direitos autorais de seus livros.

 

“Meu Pé de Laranja Lima” (1968), certamente a sua obra de maior sucesso, foi publicada em 15 países, entre os quais Hungria, Áustria, Suíça, Argentina e Alemanha.

 

O fato de não ser um escritor muito mencionado e estudado em meios acadêmicos reflete aspectos da vida do escritor. Os seus livros basicamente expressam as experiências pessoais do escritor e se inspiram em sua vida aventureira e errante, mais do que da leitura de livros – a despeito de ainda criança, ter lido José de Alencar, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, e obras estrangeiras as de Alexandre Dumas.

 

De família pobre, nosso escritor mudou-se para a casa de parentes em Natal/RN, onde foi matriculado num seminário. Bom aluno de português e literatura, mal aluno de matemática e ausente frequentemente das aulas que matava para nadar nas águas do cais do porto.

 

A personalidade inquieta de Vasconcellos o fez voltar para o Rio de Janeiro pouco após se formar no seminário, a bordo de um navio cargueiro e portando uma simples maleta.

 

Desde o Rio de Janeiro, iniciou sua peregrinação pelo Brasil. Foi treinador de boxe e entregador de bananas na então capital do país; pescador no litoral fluminense; professor primário num núcleo de pescadores de Recife; garçom em São Paulo, etc. etc.

 

Uma vez ao ano, partia para excursões para o Brasil profundo, onde entrava em contato com populações indígenas, dando ensejo e inspiração para livros como “Rosinha Minha Canoa” (1962) e “O Garanhão das Praias” (1964), ambas obras que se passam na região do Araguaia.

 

Esportista desde a infância (gostava particularmente da natação) representou papel de galã em filmes e novelas.

 

Ou seja, José Mauro apenas não alcançou projeção, sintomaticamente, na academia. Seu espírito livre não era compatível com aquele mundo, sendo, para todos os efeitos, um homem simples, cujos romances foram populares, tanto no seu objeto quanto no alcance do público.

 

Na sua vida, a aversão ao mundo enclausurado da academia se deu ainda jovem, quando abandonou o curso de medicina em Natal, já no segundo ano, para viajar pelo país. Consta que na década de 1940, ganhou uma bolsa de estudos na Espanha, onde frequentou aulas por duas semanas, para depois, largar tudo e viajar pela Europa.


VAMOS AQUECER O SOL 


 



“Vamos Aquecer o Sol” (1974) é a continuação da descrição da infância do escritor, iniciada no mencionado “Meu Pé de Laranja Lima”. Os dois livros formam uma unidade, com a narrativa em primeira pessoa de “Zezé” (ou seja, José Mauro), desde sua infância de penúria material no Rio de Janeiro até a sua adolescência em Natal/RN, quando residiu na casa de um padrinho severo e pouco amoroso.

 

Zezé, quando morava no Rio de Janeiro, vivia em condição de pobreza ao ponto de sua família não ter condições de lhe comprar um presente de natal. A pobreza era agravada pela violência dos adultos, apenas atenuada pela amizade do português Manuel Valadares, que ensinara o protagonista que “uma vida sem ternura não vale a pena de ser vivida”. Esta dura realidade também era mitigada através da imaginação, das fantasias e do mundo lúdico das crianças, que são capazes de brincar dialogando com seres inanimados, do Pé de Laranja Lima, ao passarinho que vive no coração do menino, passando pelo piano chamado “João”.

 

A continuação da vida de Zezé se dá no livro “Vamos Aquecer o Sol”, quando a criança já tem 11 anos de idade e abandona a vida relativamente livre e desregrada do RJ para ser obrigado a se matricular num seminário em Natal, além de ser compelido a passar horas a fio estudando piano, sob a vigilância permanente de sua madrinha, atividade que era odiada pelo menino.

 

Enquanto antes podia brincar na rua, subir em goiabeiras e atanazar vizinhos, era agora obrigado a viver uma rígida rotina imposta por adultos pouco afetuosos – situação provisória, em todo o caso, já que Zezé frequentemente consegue burlar as regras impostas, para matar aula, ir para o cinema escondido, roubar frutas do vizinho e fazer reinações na escola, acarretando punições frequentes.

 

Uma certa nostalgia dá o tom da história à medida que a criança vai crescendo. O sapo cururu que mora no coração do menino serve para estimulá-la a criar confiança em si e coragem para, depois de cumprir a sua missão, deixar Zezé seguir sozinho. Maurice Chavalier, artista de cinema que povoa o mundo de imaginação do protagonista, suscita uma ternura paterna ausente na vida real, deixando de se fazer presente quando a criança passa para a adolescência e descobre o amor. Ao crescer, estes entes fantásticos irão abandonar o imaginário da criança, que passa a ter que confrontar o mundo real, mantendo, por outro lado, alguma saudade de seu passado de criança. Daí o tom nostálgico daquele que gradualmente vai deixando o mundo infantil.

 

“Aquecer o Sol” significava a possibilidade de iluminar a alma, não a deixar triste como um dia nublado de chuva. Uma habilidade tão simples e fácil de ser executada na infância e completamente desaprendida na vida adulta.