domingo, 28 de maio de 2023

EM DEFESA DOS BANDEIRANTES

 

EM DEFESA DOS BANDEIRANTES


Antônio Parreiras - Morte de Fernão Dias Paes Leme

 

“O interior do Brasil não foi sempre cortado por estradas e semeado de habitações hospitaleiras. Tempo houve em que não havia nenhuma cabana no mesmo, nenhum vestígio de cultura, só havendo as feras que lhe disputavam o domínio. Os paulistas palmilharam-no em todos os sentidos. Esses audaciosos aventureiros...penetraram por diversas vezes até o Paraguai; descobriram a província do Piauí, as minas de Sabará e de Poracatu; entraram nas vastas solidões de Cuiabá e Goiás, percorreram a província do Rio Grande do Sul; chegaram ao norte do Brasil até o Maranhão e o Rio Amazonas; e, tendo transposto a cordilheira do Peru, atacaram os espanhóis nos centros de suas possessões. Quando se sabe, por experiência própria, quantas fadigas, privações, perigos que ainda hoje aguardam o viandante que se aventura nestas longínquas regiões e se toma conhecimento do itinerário das intermináveis incursões dos antigos paulistas, sente-se uma espécie de assombro, tem-se a impressão de que esses homens pertenciam a uma raça de gigantes” (Augusto Saint-Hilaire – viajante francês que percorreu o Brasil entre 1816/1822).

 

Em 24/07/2021 foi noticiado pela imprensa que um grupo autointitulado “Revolução Periférica” colocara fogo na estátua de Borba Gato em São Paulo, como forma de protesto, ainda que não se saiba exatamente contra o quê.

 

Esse ato escatológico ao menos teve o saldo positivo de revelar  um pouco o que passa na cabeça dos seus protagonistas: a ideia de que “performances revolucionárias” podem mudar o mundo, algo parecido com o almejado “efeito estético” de vidros de bancos quebrados em passeatas. 

 

Em todo o caso, o episódio não seria muito grave se se limitasse a uma presepada de meia dúzia de universitários. Antes, tratava-se de um ataque direto e coordenado contra a Cultura Nacional, a mesma que buscou invisibilizar Monteiro Lobato, denunciar Pedro Álvares Cabral e seus pares como agentes do genocídio e do estupro, e, mais recentemente, avacalhar a ópera "O Guarani" do campineiro Carlos Gomes.  

 

Afinal, quem foram estes sertanistas paulistas? Qual a sua importância para o Brasil? Qual a razão dos ataques ao bandeirantismo promovidos por grupos políticos antinacionais? Por que defender a sua memória é também uma defesa do Brasil?

 

OS MITOS EM TORNO DO BANDEIRANTISMO

 

O fenômeno do bandeirantismo está situado na História do Brasil a partir dos últimos anos do século XVII até os fins do Século XVIII.

 

Não por acaso, as entradas podem ser entendidas como uma prolongação da atividade desempenhada pelo espírito aventureiro que lançou os Portugueses à sua expansão ultramarina e que acarretou a descoberta da América. Enquanto as grandes navegações redimensionaram as fronteiras do mundo, as entradas e bandeiras criariam as condições para a interiorização da colonização e dariam a fisionomia territorial do que hoje se conhece como Brasil.

 

Um primeiro mito a se desfazer sobre as bandeiras diz respeito à falsa descrição dos seus membros: seriam um grupo de “colonizadores brancos”, “europeus de sangue”, que teriam se mobilizado conscientemente para a conquista de territórios e escravos, através de um deliberado plano de “genocídio indígena”. Esta visão se choca frontalmente com a rusticidade dos bandeirantes e a majoritária participação de índios e mamelucos nas entradas.

 

O bandeirante paulista é um simples morador de uma região secundária da Colônia, dada a sua distância com os centros consumidores de produtos coloniais situados na Europa – diferentemente da região nordeste. Levavam “uma vida quase indigente, lutando contra as injunções mais imediatas e prementes de uma existência material extremamente difícil. Pobre, analfabeto, sem perspectivas, tinha nas suas investidas ao Sertão as únicas chances de modificar sua sorte material, que nesta medida passavam a ser, para usar a expressão de Sérgio Milliet “soluções de inexorável urgência”.  (DAVIDOFF, Carlos. “Bandeirantismo: verso e reverso”. ).

 

 As bandeiras ou entradas podem ser conceituadas como expedições paramilitares que se movem em direção ao sertão para captura de índios e de pedras preciosas. De acordo com essa definição, foi um fenômeno disseminado por todo o território onde hoje de situa o Brasil. Contudo, algumas particularidades de São Paulo fizeram com que se desenvolvessem com maior força naquela vila interiorana da Capitania de São Vicente.

 

No ano de 1600 estima-se que São Paulo possuía 1500 habitantes distribuídos em 150 residências. A região mais dinâmica da colônia, então, se situava em Pernambuco e Bahia, por conta da proximidade com a Europa e as boas condições para o desenvolvimento da exploração mercantil da terra. Já em São Paulo não se realizaram os desígnios gerais da colonização portuguesa através da grande propriedade monocultora, com a utilização do máximo número de escravos e economia vinculada ao mercado externo. Tratava-se antes de uma mera feitoria, onde predominava uma pobre economia de subsistência. Havia poucas ruas e as casas eram meras choupanas cobertas por palha.  As bandeiras entram assim como uma “solução de emergência” para a pobreza da região.

 

Numa primeira fase, as expedições tinham como objeto o desmantelamento das missões jesuíticas para captura de índios e para comércio escravocrata. Num segundo momento, com o declínio do trabalho escravo indígena na colônia, esses sertanistas se voltam para a  busca do ouro, da prata e das esmeraldas.

 

Eram compostas majoritariamente por índios e mamelucos. A ampla participação de indígenas nas entradas se dava pelo fato de conhecerem melhor os territórios e o curso dos rios. Andavam descalços, falavam a língua geral (formada a partir da evolução do  antigo tupi), portavam em suas expedições arcos, flechas, pouca arma de fogo. Em seus carregamentos, levavam pólvora, machados, balas, cordas para amarrar os índios aprisionados, e por vezes, sementes, sal e uma pequena quantidade de alimentos.

 

Em geral, partiam de madrugada e pousavam no entardecer; durante o dia dedicavam-se à caça, à pesca e à coleta de frutos, também se lançando mão das roças dos indígenas que aprisionavam.

 

Um segundo mito construído em torno da propaganda contra os bandeirantes diz respeito ao fato de o movimento se limitar à captura e escravização do índio – daí são todos chamados de “escravagistas”.

 

Ora, como já mencionado, os 100 anos de maior atividade bandeirante passou por diferentes fases, envolvendo não só o comércio de escravos, mas o desmantelamento das missões jesuíticas espanholas, a expansão das fronteiras do domínio português, a busco das pedras preciosas e até o engajamento na luta pela expulsão dos holandeses.

 

Basta aqui dizer que Borba Gato (genro de Fernão Dias, conhecido como “Governador das Esmeraldas”) foi escolhido como “alvo” de militantes, desconsiderando se tratar de personagem ligado à 2ª fase do bandeirantismo, o da caça das esmeraldas. Isto para não dizer que esse personagem conviveu pacificamente durante 18 anos com índios da tribo dos Botocudos, sendo tratado por eles como cacique, após ter assassinado um emissário da coroa e buscado no sertão um porto seguro.

 

AS DUAS FASES DO BANDEIRANTISMO

 

“Estava a findar o primeiro ciclo bandeirante, o da caça ao índio, cuja personalidade máxima fora o formidável Antônio Raposo Tavares e em que se destacam os sertanistas do relevo de dois Affonso Sardinha, Amador Bueno, Manuel e Sebastião Preto, André Fernandes, Estevam Bayão, João Amaro, Maciel Parente, etc.

 

Alguns anos mais tarde, extinguiram-se esta fase, por assim dizer, com as últimas grandes jornadas de Francisco Pedroso Xavier, em 1675; Mathias Cardoso de 1689 a 1694, e Domingos Jorge Velho.

 

De apresadores de índios, iam passar os paulistas a revolvedores ásperos do solo, em busca de minerações preciosas. Encetava-se o segundo grande ciclo bandeirante: o do ouro, perfeitamente caracterizado em Fernão Dias Paes.”. (TAUNAY, Affonso de E. “Índios, Ouros e Pedras”).

 

É possível dividir o moimento bandeirante em duas grandes fases. Ambas as etapas colaboraram à sua maneira para aquilo que de melhor nos legou as entradas: a expansão do território e a criação de nossa atual fisionomia geográfica, cultural e linguística.

 

A primeira fase diz respeito à “solução de urgência” dos paulistas para a sua pobreza material, através da captura de índios para o comércio de escravos dentro da colônia.

 

Logo em seus primeiros momentos, as expedições se voltam contra as missões jesuíticas, e isso por um motivo muito simples: era muito mais fácil capturar os índios já agrupados geograficamente pelos inacianos e já iniciados por eles ao trabalho e à civilização cristã.

 

Ainda que boa parte deste primeiro período tenha se dado durante a União Ibérica (1580/1640), o fato de os paulistas terem expandido os seus domínios através do aniquilamento das missões criou as condições para o estabelecimento das fronteiras do Brasil no Sul e Centro-Oeste, dentro do princípio de uti possidetis, isto é, a terra deve pertencer a quem de fato a ocupa, norma consubstanciada no Tratado de Madrid (1750).

 

O maior representante deste primeiro período é certamente Antônio Raposo Tavares, responsável pela integração de centenas de milhares de quilômetros ao território nacional.

 

Em 1629, uma expedição de Tavares expulsa os espanhóis do Paraná. Em 1936, há a conquista do Rio Grande do Sul após a conhecida destruição da missão de Guaira. Dois anos depois, os paulistas expelem os ignacianos para além da margem ocidental do Rio Uruguai.  

 

No ano de 1639, Antônio Raposo Tavares é convocado pela Coroa a se engajar na luta pela expulsão dos holandeses do Nordeste do Brasil, para onde se dirige, prestando colaboração a nossa primeira experiencia de luta por independência que forjou os elementos constitutivos da nacionalidade brasileira: brancos, negros e índios unificados em luta contra o domínio holandês.

 

Após a vitória brasileira na guerra, Tavares se dirige ao norte do país, alcançando a foz do Rio Amazonas em 1651. A inacreditável extensão territorial percorrida pelas bandeiras podem ser facilmente percebidas no mapa abaixo:

 



 

Uma segunda fase do bandeirantismo pode se situar a partir do ano de 1664 quando o Rei português Dom Afonso apresentas carta aos brasileiros estimulando-os a se engajarem na busca por metais preciosos.

 

Esta diretriz se explica pela situação de decadência econômica portuguesas que já vinha de alguns anos e fora particularmente agravada após o fim da União Ibérica (1580 a 1640). Portugal já não era a mais importante potência ultramarina europeia, perdia mercados de seus produtos das índias orientais para seus concorrentes e se tornava cada vez mais dependente da Inglaterra. Fazia-se necessário ampliar o controle político, exploração e extração de riquezas da colônia da América: foram inclusive remetidas autoridades régias para substituir os poderes locais (ficando conhecidos os “juízes de fora”) juntamente para aumentar a pressão por dividendos do empreendimento colonial.

 

Outro ponto que explica a mudança de eixo das bandeiras foi a própria decadência da escravidão indígena (abolida formalmente em 1758) com a sua substituição pelo mercado de cativos africanos.  

 

O mais representativo personagem desta segunda fase é Fernão Dias Paes (1608/1681). Na condição de governador de São Paulo, foi um agente conciliador dos colonos e dos jesuítas, a quem restituiu o seu colégio alguns anos após a expulsão dos inacianos da vila.

 

Em 1673 quando já tinha mais de 60 anos organizou uma expedição que durou 7 anos em busca de metais preciosos. A despeito dos apelos da Coroa, esta entrada foi inteiramente custeada pelo bandeirante: em determinado momento, enviou cartas a sua mulher e filhas para que se desfizessem de todos os seus bens para dar prosseguimento à cata de tesouros no sertão.

 

Fernão Dias morreu no curso desta expedição. Não encontrara nenhum metal precioso. Consta apenas que acreditou ter encontrado esmeraldas, quando na verdade apenas achou turmalinas. Antes de falecer, Dias pediu que o seu corpo fosse enterrado no Mosteiro de São Bento, o que foi cumprido com muito custo por seus correligionários. Apenas no ano de 1910 o seu corpo foi descoberto em São Paulo, ou seja, mais de 200 anos após a morte do “Governador das Esmeraldas.”.  

 

BALANÇOS

 

A propaganda negativa dos bandeirantes, como vimos, serve-se de alguns mitos que buscam induzir nas pessoas a noção geral de que o empreendimento colonial português no Brasil teria sido um ato deliberado de genocídio e destruição: a consequência lógica desSa ideia é a de que o país não deveria sequer ter existido, já quwe o Brasil efetivamente nasceu desde o momento da chegada dos portugueses no novo Mundo.

 

Curiosamente, os mitos em torno dos bandeirantes partem de uma suposta “crítica” de uma “História Oficial” que teve como base Southey, Saint-Hilare, Cassiano Ricardo e A. E. Taunay. Aqui, como em outros capítulos de nossa história, a leitura dos clássicos é certamente mais próxima da verdade do que as “narrativas” que inspiraram as ações contra os monumentos nacionais.  

 

BIBLIOGRAFIA

 

DAVIDOFF, Carlos. “Bandeirantismo: Verso e Reverso”. Ed. Brasiliense

 

TAUNAY, Afonso de E. “Índios! Ouro! Pedras”. Ed. Melhoramentos.


terça-feira, 16 de maio de 2023

“O Homem Nu” – Fernando Sabino

 “O Homem Nu” – Fernando Sabino



“Acredito que se conseguíssemos recuperar o menino que devíamos ter vivo dentro de nós, todos nos entenderíamos muito mais. Haveria mais paz e alegria, se os homens voltassem a ser meninos” (Fernando Sabino – “A Nudez da verdade”).

 

Fernando Sabino é um dos muitos grandes romancistas e poetas oriundos do Estado de Minas Gerais. É de lá que vieram, para citar alguns poucos nomes, Carlos Drummond de Andrade, João Guimarães Rosa e Rubem Fonseca.

 

O mais famoso romance de Sabino, chamado “O Grande Mentecapto” conta a epopeia de Geraldo Viramundo, uma espécie de Dom Quixote mineiro, que percorre estradas sem fim (daí o nome “Viramundo”)  da sua cidade natal no Rio Acima, para Mariana, onde Viramundo ingressa no seminário; para Ouro Preto onde confraterniza com os estudantes; para Barbacena onde foi candidato (quase) vitorioso à prefeitura; pra Juiz de Fora, onde ingressou no exército; para São João Del Rei; para Tiradentes; para Belo Horizonte, etc. etc.

 

Aqui o leitor entra em contato com cada uma das realidades regionais que em conjunto dão contornos ao pitoresco e belo estado mineiro.  

 

Fernando Sabino nasceu em 1923 em Belo Horizonte. Aos 15 anos, iniciou sua carreira literária escrevendo nas revistas “Mensagem”, “Alterosa” e “Belo Horizonte”, com publicações de contos e crônicas.

 

Em 1941 inicia o Curso de Direito em sua cidade natal, terminando a graduação no Rio de Janeiro, para onde se mudara em 1946.

 

Em 1956 publica o seu primeiro romance denominado “Encontro Marcado”. Quatro anos depois publicaria a coletânea de contos e crônicas reunidas sob o nome de “O Homem Nu”, em que são reunidas 40 pequenas histórias, das quais a cômica situação de um homem pelado ficando preso ao lado da porta de seu apartamento (que dá o nome ao livro) é certamente o texto mais conhecido do público.

 

Nessas crônicas e contos o escritor explora com senso de humor o que há de pitoresco e poético no dia a dia: as fontes de suas histórias são fatos do cotidiano em que eventos inusitados acarretam situações que envolvem o ridículo e o cômico.

 

É  história de um homem que apanha de sua mulher até o momento em que inverte essa realidade, quando se descobre que o desejo da sua mulher não era bater, mas apanhar; um sujeito hipocondríaco que apenas encontra conforto psicológico após se casar com uma enfermeira; uma reunião de diretores de uma empresa onde um dos sócios escuta clandestinamente num rádio portátil o jogo do Brasil; e a já referida situação trágico cômica de um homem nu trancado para fora do apartamento que por isso é perseguido por vizinhos e as demais pessoas que com ele cruza.

 

Em 1993, Fernando Sabino publica “A Nudez da Verdade” em que conta a história completa de Telmo Proença, o personagem principal do conto “O Homem Nu”, escrito 30 anos antes.

 

Proença é um professor e pesquisador do folclore brasileiro e é convidado a participar de um lançamento de livro em São Paulo, para onde deveria partir de em um voo noturno partindo do Rio de Janeiro.

 

Aqui começa uma série sucessiva de fatos que só realçam o reiterado azar do protagonista. O seu voo foi cancelado por conta de uma chuva, razão pela qual se recolheu no apartamento de uma amiga, com quem manteve durante a noite relação sexual extraconjugal.

 

Pela manhã, vai preparar o café e buscar o pão do lado de fora do apartamento: a porta fecha e Proença fica trancado para fora, nu, iniciando-se a sua via crucis: é perseguido por moradores, vizinhos, transeuntes da rua e até pela polícia, por conta do atentado ao pudor. A história do “Homem Nu” é noticiada por toda a cidade, não se sabendo se se trata de um tarado, de um louco, de um bandido armado (e onde esconderia a arma, posto que nu?) ou de um homem em fuga por ser flagrado por um marido traído.

 

Desde o paraíso bíblico, Deus fez o homem nu, até as vestimentas se fazerem necessárias após o pecado original. Com isso, Telmo Proença é caçado como um animal: é um anátema diante do mundo e de Deus, banido pelo resto da sociedade cujos homens que, por dentro das suas roupas, igualmente estão nus.

 

Fernando Sabino faleceu em 2004, pouco antes de completar 81 anos de idade.

 

Bibliografia:

“O Homem Nu” – Fernando Sabino – Ed. Record

 

“A Nudez da verdade” – Fernando Sabino – Ed. Record.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

A LITERATURA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

 A LITERATURA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA


 

“Inventor de abismos, o autor de Corpo de baile localiza-os em broncas almas de sertanejos, inseparavelmente ligados à natureza ambiente, fechadas ao raciocínio, mas acessíveis a toda espécie de impulsos vagos, sonhos, premonições, crendices, vivendo a séculos de distância da nossa civilização urbana e niveladora. São almas ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o extraordinário e o milagre. O escritor enfrenta-as em geral num momento de crise, quando, acuadas pelo amor, pela doença ou pela morte, procuram desesperadamente tomar consciência de si mesmas e buscam o sentido de sua vida” (RONAI, Paulo.).

 

A leitura das estórias do escritor mineiro João Guimarães Rosa põe-nos em contato com o universo de um Brasil profundo, retratando cenas de uma vida pastoril, caracterizada pelo próprio escritor como “o Sertão”. Desses contos e novelas, o leitor tem contato com a trajetória de capangas, jagunços, vaqueiros, fazendeiros, sertanejos, crianças, loucos, doentes e prostitutas, todos vivendo a séculos de distância da nossa civilização plenamente urbanizada. Cenas da vida pastoril de um país que ainda não completara a sua transição demográfica do campo para a cidade.

 

Essas estórias são acompanhadas de uma série de inversões linguísticas mediante neologismos, alteração intencional de regras gramaticais (ortografia e sintaxe), experimentações que potencializam a expressividade das palavras.

 

A criação de uma nova linguagem, plenamente adaptada ao universo do sertão mineiro,  só poderia ter sido produzida por um escritor que tinha um incomum conhecimento de línguas e das letras.

 

João Guimarães Rosa iniciou os seus estudos de idiomas estrangeiras aos 6 (seis) anos, quando teve seus primeiros contatos com o francês. Nas palavras do próprio escritor:

 

“Eu falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.”.

 

O autor de “Grande Sertões: Veredas” desde o início da vida já mostrava sua vocação para o estudo.

 

Com apenas 16 anos, ingressou no curso de medicina da Universidade de Minas Gerais, no ano de 1925. Após alguns anos medicando no interior de Minas Gerais, serviu como médico voluntário durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Um ano depois, foi aprovado em concurso como Oficial Médico no 9º Batalhão de Infantaria para, depois, ser aprovado em concurso do Itamaraty, tornando-se diplomata, profissão que exerceria até o final da vida.

 

Sua literatura envolve um aprofundamento das ideias daquela geração de escritores modernistas do nordeste brasileiro, que bem retrataram a vida de trabalhadores do campo, retirantes, fazendeiros, humildes comerciantes e pequenos funcionários públicos: Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida, Amando Fontes, etc.

 

O que há em comum entre estes escritores e João Guimarães Rosa é a rara capacidade de alçar o seu regionalismo a questões de natureza universal.  Nas palavras do escritor mineiro, “O Sertão é do tamanho do mundo”.

 

As estórias se passam no serão mineiro conquanto envolvem a exploração de questões filosóficas e existenciais, relativas a mais ampla reflexão sobre a condição humana.

 

Este universo rural foi captado pelo escritor durante a sua experiência de infância em Codisburgo, no interior de MG. Também foi captada após os dois anos de trabalho como médico em Itaguara/MG. Por fim, os cenários foram retratados com base em viagens que JGS realizou, inclusive acompanhando comitivas de vaqueiros que conduziam o gado pelo interior mineiro. As imagens dessas viagens foram especialmente retratadas no conto “Burrinho Pedrês”, a primeira estória que abre o livro “Sagarana” (1946).

 

Da análise ampla dos contos e novelas do nosso escritor, é possível constatar alguns pontos em comum: o realismo mágico, o regionalismo alçado ao universal e a liberdade estilística e formal.

 

No conto “Campo Geral” estes três pontos são retratados através do olhar lúdico de uma criança de 8 anos chamada Miguilim. Trata-se de alguém que passou a sua vida inteira “no Mutum, no meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra” (...) “um lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer parte; e lá chove sempre...”. Alguém que sempre viveu no campo e a ele está plenamente aclimatizado.

 

A mãe de Miguilim era linda e amorosa com os seus filhos, enquanto o pai era extremamente rigoroso, demonstrando uma especial má vontade para com o filho protagonista da história. O melhor amigo de Miguilim é seu irmão Dito, cuja personalidade é radicalmente diferente a sua, porém complementar:

 

“O Dito, menor, muito mais menino, e sabia em adiantado as coisas, com uma certeza, descarecia de perguntar. Ele, Miguilim, mesmo quando sabia, espiava dúvida, achava que podia dar errado. Até as coisas que ele pensava, precisava de contar ao Dito, para o Dito reproduzir, com aquela força séria, confirmada, para então ele acreditar mesmo que era verdade.”.

 

Enquanto Dito era mais assertivo e decidido, seu irmão parece ser mais emotivo, tal qual a mãe. A sua maneira, pela linguagem da criança, Dito diz ao seu irmão que sua personalidade era mais marcada pela ambiguidade: “você nasceu em dia de sexta, com o pé no Sábado: quando está alegre por dentro é que está triste por fora” ou “você tem juízo por outros lados...”.

 

O amigo favorito de Miguilim tem uma morte trágica, após algum tempo de convalescência diante de uma doença desconhecida, que teve como origem o corte profundo do pé após Dito pisar num caco de vidro.

 

Depois dessa tragédia, verifica-se uma clara alteração na psicologia de Miguilim que se revela no se fazer homem. Miguilim passa a trabalhar sob as ordens do pai e não tem mais medo que o marcava pouco tempo atrás. Este amadurecimento oriundo de pequenas e grandes tragédias foi muito bem captado pelo escritor José Mauro de Vasconcello nos seus livros “Meu Pé de Laranja Lima” e “Vamos Aquecer o Sol”. A visão mágica da realidade visto sob o olhar da criança é abruptamente alterada ante a experiencia trágica da morte: do portuga, amigo de Zezé e de Dito, irmão de Miguilim.

 

João Guimarães Rosa morreu precocemente aos 59 anos no ápice de sua carreira literária e diplomática.

 

Pouco antes de sua morte, foi indicado ao prêmio Nobel de literatura (1967). Podemos cogitar que o prêmio Nobel seria inadequado. Única e exclusivamente pelo fato de as estórias de JGS serem intraduzíveis, impossíveis de serem captadas por meio de traduções. Ou seja, apenas existe real possibilidade de se captar a riqueza linguística da escrita de Rosa através da leitura dos livros em língua portuguesa. Por outro lado, a reflexão sobre temas como a morte, a descoberta de Deus, a noção de finitude da vida e outros temas existenciais certamente tem o condão de fazer com que as novelas e contos do escritor mineiro sejam atemporais, dizendo respeito ao homem independentemente de sua nacionalidade.   

 

 

Bibliografia:

 

“Campo Geral” – João Guimarães Rosa – Ed. Global.

 

“A Hora e Vez de Augusto Matraga” - João Guimarães Rosa – Ed. Global.

 

“O Burrinho Pedrês” - João Guimarães Rosa – Ed. Global.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

A LITERATURA DE COELHO NETO

                                                 A LITERATURA DE COELHO NETO

 



Resenha Livro – “A Conquista” – Coelho Neto – Ed. Iba Mendes Editor Digital

 

“Justamente nesse tempo a campanha abolicionista chegara à sua maior intensidade. À luz do sol, nas ruas, concitava-se à revolta. Para os lados da Gávea, em frente ao mar livre, no Leblon, havia um quilombo mantido pela Confederação Abolicionista e, no escritório da Gazeta da Tarde, que era o grande homizio de Chan, negros e negras, sentados melancolicamente, fumavam esperando que lhes dessem destino. Eram constantes os conciliábulos, falava-se em furtos de escravos; e gente de todas as castas prova os redatores denunciando crimes escravagistas despeitados. A polícia punha em campo os seus esbirros mais sagazes, mais atrevidos capoeiras para desfazerem as reuniões e interromperem as conferências, espavorindo o povo”. (NETO, Coelho. “A Conquista”. Pg. 193).

 

São conhecidos os exemplos de artistas, poetas e romancistas que por diferentes razões não obtiveram o reconhecimento do público e da crítica ao seu tempo, conquanto posteriormente tenham tido a sua obra descoberta e prestigiada.

 

Um exemplo ilustrativo foi o do escritor carioca Lima Barreto. Pode-se considerar o seu “O Triste Fim de Policarpo Quaresma” (1915) como uma versão nacional de Dom Quixote de Cervantes. O Cavaleiro Andante de Triste Figura, combatente de moinhos de vento, encontra paralelo no nacionalista Policarpo Quaresma, cuja mesma ingenuidade heroica o levará ao fim trágico: o apoio de movimentos políticos republicanos que posteriormente se voltariam contra ele próprio. A despeito da importância da literatura de Lima Barreto, o seu reconhecimento de fato só ocorreria muito tempo depois de sua morte.

 

O escritor maranhense Coelho Neto (1864/1934), por sua vez, seguiu o exato sentido oposto do autor de “Bruzundangas”, ou seja, foi amplamente prestigiado ao seu tempo para depois cair num premeditado e injusto ostracismo. De fato, no início do século XX, Neto fora o mais popular escritor no Brasil, sendo, inclusive, considerado o “Principe dos Prosadores Brasileiros” numa votação realizada em 1928 pela Revista “O Malho”.

 

Contudo, por se opor modernismo (movimento literário que se sagrou vitorioso nos embates intelectuais dos anos 1920/30), passou a ser pouco lido desde então, caindo num triste esquecimento. Pode-se dizer, de acordo com Arnaldo Niskier, que “a vitória do modernismo se fez como se houvesse necessidade de abater um grande inimigo, no caso Coelho Neto”, que era, como dito, um escritor muito popular e tipo pelos modernistas como convencional, formalista e supostamente dotado de um discurso meramente retórico, sem preocupação com as questões sociais.

 

Ora, a leitura do livro “A Conquista” (1899) desmente tanto a acusação de pobreza estilística quanto da não preocupação com os temas sociais pelo nosso escritor.

 

Este romance publicado em 1889 é antes uma espécie de biografia das experiencias do escritor entre os anos de 1882 e 1888, na condição de jornalista e poeta que participou ativamente do  movimento abolicionista, além de travar relações pessoais com o que havia de melhor do universo literário que então residia no Rio de Janeiro. Olavo Bilac, Raul Pompeia, José do Patrocínio, os irmãos Aluísio e Arthur Azevedo, todos eles aparecem como personagens do romance e são descritos em sua intimidade e sob pseudônimos. Na história, Coelho Neto é “Anselmo”, o escritor naturalista Aluísio Azevedo é “Rui Vaz”, o poeta parnasiano Olavo Bilac é “Octávio Bivar”, etc. etc.

 

A história é um retrato bastante realista das condições de penúria dos intelectuais, artistas, dramaturgos e poetas do Brasil de fins do XIX e início do século XX. Num país de treze milhões de habitantes em que apenas duzentos mil eram alfabetizados, os escritores apenas podiam recorrer ao jornalismo para sobreviver.

 

As dificuldades daqueles escritores diziam respeito ao poderio econômico dos produtores, que se aproveitam da pobreza e desamparo material dos artistas para impor uma arte mais apelativa ao gosto popular e de qualidade discutível. É o que diz Rui Vaz (Aluísio de Azevedo) após ser orientado a alterar uma peça de teatro pelos seus produtores:

 

Rui Vaz – Decididamente é melhor ser calceteiro ou condutor de bonde do que homem de letras em país como este. (...) Ora! A minha peça. O senhor Heller entende que devo arranjar uma complas e um jongo para a minha comédia. Uma comédia de costumes, que joga com cinco personagens.... O homem quer, a todo transe, que venham negros à cena com maracás e tambores, dançar e cantar. Imaginem vocês: um antropologista puxando fileira e uma senhora que vive a cuidar a sua árvore geneológica como quem cuida de uma roseira, que mostra, com enfunado orgulho, os retratos dos avós e quantos frequentam a sua casa, a cortar jaca desabaladamente. É ignóbil! Revolta! E querem teatro.

 

A situações destes artistas era agravada pela pobreza de um país essencialmente agrário e carente de políticas oficiais na área da cultura.

 

As dificuldades econômicas daqueles intelectuais boêmios eram enfrentadas com bom humor e alguma malandragem. Conseguiam, por exemplo, ingressar por meio de favores nos teatros, contraíam empréstimos que não eram quitados, faziam refeições em casa de amigos quando não tinham dinheiro para almoçar nos hotéis do Rio de janeiro.

 

Logo quando Anselmo (Coelho Neto) conhece pessoalmente o já famoso escritor Rui Vaz (Aluísio Azevedo) este último interrompe o então estudante maranhense que buscava discutir arte para lhe pedir emprestado os seus sapatos: precisava do calçado para um encontro amoroso, fazendo com que o jovem poeta passasse horas aguardando descalço no escritório do autor de “O Cortiço”.

 

Outro ponto bastante interessante deste livro é a descrição viva do movimento abolicionista, cuja principal liderança no Rio de Janeiro fora o Jornalista José do Patrocínio. Coelho Neto encontra a sua primeira fonte de renda na capital trabalhando para o jornal dirigido por Patrocínio.


O corajoso abolicionismo e republicanismo de Coelho Neto já havia feito com que o escritor tivesse entrado em choque com os professores da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, quando fora estudante desta instituição. Foi este conflito, inclusive, que fez o escritor abandonar o curso universitário no terceiro ano para se mudar para a então capital do Império, onde iniciaria a sua carreira como escritor e jornalista.

 

Coelho Neto foi um dos idealizadores da Academia Brasileira de Letras, tendo sido o seu segundo presidente, sucedendo o Conde Afonso Celso. Cultivou praticamente todos os gêneros literários, entre contos, crônicas, romances e obras para o publico infantil.

 

Passados quase 100 anos da sua querela com os modernistas, faz-se necessário o resgate da obra deste escritor representativo de um movimento intelectual (e boêmio) do Rio de Janeiro do início dos anos 1900, cuja relevância aparenta ter sido negligenciada pela crítica literária.

domingo, 12 de março de 2023

CHU EN-LAI E A REVOLUÇÃO CHINESA

 CHU EN-LAI E A REVOLUÇÃO CHINESA

 




Resenha Livro – Chu En-Lai – Coleção Os Grandes Líderes – Ed. Nova Cultural

 

Quando os comunistas chineses foram alçados ao poder no ano de 1949, décadas após sucessivos conflitos com potências estrangeiras e com o Koumitang (partido nacionalista), Chu En-Lai já era um dirigente político experiente.

 

Iniciara sua militância política em 1919 no “Movimento 4 de Maio”, grupo político que se opunha à dominação colonial da China e lutava pela destituição do poder dos Senhores de Guerra, grupos familiares (ou dinastias) de tipo feudal que presidiam o país.  Três anos depois ingressaria no Partido Comunista, tendo se engajado nas principais lutas que perduraram pelo menos 20 (vinte) anos até o triunfo da Revolução Chinesa e a fundação da República Popular da China.

 

Sua importância dentro do movimento comunista chinês se revela logo após a vitória da revolução, quando é nomeado para os dois principais postos do governo: foi indicado como primeiro-ministro do Conselho de Estado, onde tinha de estruturar e supervisionar o sistema administrativo de todo o país. Além disso, foi nomeado como chefe das relações diplomáticas,  incumbindo-lhe criar e ampliar as relações da China com as outras nações do mundo, superando seu isolamento político e comercial.

 

A trajetória deste que foi talvez a segunda principal liderança da Revolução Chinesa (ficando apenas atrás de Mao Tsé Tung) se confunde com a evolução política da China desde o fim do século XIX.

 

O país em fins do século XIX era uma semi-colônia de nações imperialistas europeias e do Japão. A derrota humilhante da China na 1ª Guerra Sino-Japonesa (1894/1895) agravou ainda mais a crescente exploração do país por potências estrangeiras, principalmente a Grã Bretanha.

 

Esta situação de dominação colonial criaria as condições para a insurreição dos Boxers, uma revolta nacionalista que se opunha aos estrangeiros e à dominação imperialista sobre a China: destruíam propriedades estrangeiras, como ferrovias e linhas telegráficas, atacavam embaixadas e assassinavam missionários cristãos e cristãos chineses.

 

Esta revolta expressou o declínio e decadência da Dinastia Manchu, que seria apeada do poder após a vitória militar do Koumitang contra os senhores de Guerra entre 1911/1912. O regime político de tipo feudal dirigido pelos mandarins seria derrubado pelos nacionalistas, cujo programa político envolvia a criação de um regime republicano forte e independente.

 

Os Boxers, na verdade uma sociedade secreta chamada “Punhos da Harmonia e da Retidão”, expressavam a aversão dos chineses pela crescente influência político-cultural e pela exploração comercial europeia na China

 

Nesta primeira etapa da revolução chinesa, os nacionalistas do Koumitang e os comunistas atuavam conjuntamente contra os senhores de guerra e o feudalismo na China. O próprio Chun Em-Lai, como muitos outros militantes, pertenciam ao mesmo tempo aos dois partidos.

 

Contudo, com a morte de Sun Yat Sen (1925) e a chegada de Chiang Kai-shek, o Koumitang volta-se contra os comunistas, acarretando expurgos e assassinatos. Dentre eles, pode-se citar o levante de Xangai (1927) que fora liderado por Chu. Chiang Kai-shek ordenara uma represália brutal contra o levante, com a execução de 5.000 comunistas imediatamente após a batalha que daria a vitória ao Koumitang. “Cabeças rolaram nas valas como ameixas maduras”, observou uma testemunha ocular.

 

Em 1937 com a Invasão Japonesa na China no contexto da II Guerra Mundial, há uma nova trégua entre nacionalistas e comunistas, pleiteada com maior ênfase por estes últimos, que defendiam uma frente nacional contra os invasores.

 

A chamada II Guerra Sino Japonesa (1937/1945) foi particularmente trágica para os chineses. Naquele contexto, ficou conhecido uma das páginas mais tristes da história da China, o Massacre de Nanquim, um episódio de carnificina humana envolvendo assassinatos e estupros em massa cometidos por tropas japonesas.

 

A estimativa oficial da China é de 300.000 mortos em Nanquim. O exército imperial japonês obteve o controle total da cidade em poucas horas após o início do assalto. Todos os soldados chineses capturados foram torturados, depois fuzilados, enforcados ou decapitados. Os civis sofrem com a fúria homicida do assalto à cidade de Nanquim pelo exército imperial japonês. Homens, mulheres, crianças e idosos são mortos brutalmente nas ruas.

 

Muitas das mulheres eram estupradas pelos militares japoneses para depois serem mortas, não sem antes profanarem os seus corpos inserindo armas e artefatos de madeira nos órgãos genitais femininos.

 

Após a derrota e rendição dos japoneses na II Guerra Munidial em 1945, a China ainda passaria por mais alguns anos de guerra civil entre nacionalistas e comunistas até a vitória de Mao e seus camaradas em 1949.

 

Chu En-Lai cumpriu um papel importante na diplomacia chinesa, buscando com sucesso romper o isolamento do país após o triunfo da revolução socialista.

 

Cumpriu um papel fundamental na Conferência Afro-asiática em Bandung na Indonésia em 1955, naquilo que foi a sua maior vitória diplomática. O representante chines buscou dissipar os temores dos países asiáticos sobre o expansionismo chinês, reatou relações com inúmeros países e abrandou o isolamento ao qual a China esteve submetida deste a tomada do poder pelos comunistas.

 

Os princípios daquilo que ficou conhecido como movimento de coexistência pacífica liderado por Chu envolviam os seguintes pontos: (i) respeito recíproco pela integridade e soberania territorial das nações; (ii) acordo mútuo de não agressão; (iii) não intervenção nos assuntos internos do outro estado; (iv) igualdade e benefícios mútuos; e (v) coexistência pacífica.

 

Politicamente, Chu não pode ser caracterizado como pertencente da ala mais direitista do Partido Comunista Chinês. Contudo, era um político realista, sem se deixar guia de maneira cega pela ideologia, razão pela qual, em alguns momentos, entrava em conflito com Mao, cuja orientação política nem sempre era a mais pragmática. Por exemplo, durante a Revolução Cultural chinesa (1966), momento de radicalização ideológica que instaurou um regime de “caças às bruxas” daqueles suspeitos de desvios burgueses, Chu pareceu tentar influenciar Mao moderadamente, ao pressentir que as coisas pudessem ficar fora de controle. Como de fato ficaram.  

 

Naquele momento de radicalização política, Chu (um intelectual da cidade, cuja origem familiar era proveniente dos mandarins) chegou a ser perseguido. Cartazes nas ruas sugeriam que o líder da diplomacia chinesa devesse ser queimado vivo. Consta que uma filha adotiva de Chu foi assassinada durante a Revolução Cultural, como meio de atacar e coagir o dirigente.

 

Ao fim da vida, Chu En-Lai já não tinha o mesmo prestígio dos anos imediatamente após o triunfo da revolução.

 

Quando do seu falecimento 08 de Janeiro de 1976, poucas pessoas compareceram ao seu funeral. Contudo, desde a sua participação na guerra de libertação nacional chinesa, passando por seu pragmatismo e realismo político, especialmente nas relações exteriores, Chu Em-Lai foi um personagem decisivo para a evolução política chinesa. Chu, neste sentido, não fora tanto um marxista ortodoxo, mas um nacionalista que assimilou as ideias socialistas para a criação de uma via chinesa de desenvolvimento.

terça-feira, 7 de março de 2023

Fernão Cortez: O Conquistador do México

 Fernão Cortez: O Conquistador do México




              Resenha Livro – “Os Grandes Líderes: Cortez” – Ed. Nova Cultural


“As fantásticas histórias de Cristóvão Colombo circulavam por toda a Europa. As novas terras, misteriosas e ricas, constituíam o tema mais fascinante da época, rompendo com o mundo estreito de uma Europa semi-feudal. Índios, papagaios, macacos, bugigangas de ouro, trazidas do Novo Mundo, começavam a ser vistos nas cidades europeias, e os marinheiros que haviam aderido ao uso do tabaco, até então desconhecido dos europeus, exibiam-se soprando fumaça pela boca. Que jovem de 18 anos, cheio de vitalidade, não se sentiria atraído pelas perspectivas de conhecer essas terras distantes, que prometiam aventura, fama e ouro?”

 

Fernão Cortez ficou conhecido por ser o conquistadoor do atual território mexicano, mediante a subjugação dos Astecas e a mais completa destruição daquela civilização. Considerado por muitos mexicanos ainda hoje como um vilão, consta que a Cidade do México, criada por Cortez após a destruição de Tenochtitlán (capital do império Asteca), não possui estatuas em homenagem ao seu fundador.

 

Como tudo o que se refere a processos históricos de longa duração, que, aqui, dizem respeito à conquista da América pelos europeus, os maniqueísmos que dividem colonizadores e colonizados entre o maus e o bons, no mínimo, reduzem a complexidade dos conflitos em jogo.

 

Para aqueles que acreditam que a história não se limita a uma mera ordem cronológica de grandes eventos, mas como um processo, nem sempre pacífico, de evolução das civilizações, o papel dos colonizadores europeus foi acima de tudo progressivo.

 

Esta evolução histórica está associada ao maior domínio do homem sobre a natureza, às transformações progressivas das formas de trabalho, ao desenvolvimento da cultura e a maior complexidade nas relações sociais.  Dentro desta perspectiva, a conquista da América não pode ser reduzida a um mero “genocídio” perpetrado por colonizadores sedentos de sangue e ouro. O empreendimento colonial criou as condições para a superação do feudalismo na Europa, promoveu desenvolvimento das artes naquilo que ficou conhecido como Renascimento, promoveu a chamada acumulação primitiva que criou as condições para a Revolução Industrial: é parte integrante daquele processo de evolução histórica que nos levou aos dias de hoje.

 

Daí a importância de compreender o papel de Fernão Cortez, como um exemplo específico do grande empreendimento colonial luso espanhol.

 

O conquistador do México nasceu em Medelin na Espanha, no ano de 1465. Era filho de um oficial do exército e de origem aristocrática.

 

Naquele tempo, as opções profissionais de um jovem se limitavam ao ingresso no exército, no clero ou ocupando cargos burocráticos de Estado. Aos 14 anos de idade, Coortez ingressou na Universidade de Salamanca para estudar Ciências Jurídicas e Latim, abandonando os estudos dois anos depois.

 

O espírito inquieto e aventureiro o levou aos 19 anos a lançar-se em busca das índias ocidentais, dirigindo-se  à Ilha de Hispaniola (hoje República Dominicana e Haiti).

 

O local agregava aventureiros que buscavam enriquecer dada as vagas notícias da existência de grandes jazidas de ouro e prata no Novo Mundo. A conquista espanhola era motivada, basicamente, pela busca destas riquezas, ainda que formalmente era justificada como uma cruzada pela disseminação do cristianismo. Muitos se lançavam nesta aventura dado as estreitas possibilidades de ascensão social na Espanha daquele tempo.

 

Após alguns anos vivendo em Hispaniola, Cortez se engaja numa expedição de conquista de Cuba quando granjeia a confiança dos chefes políticos locais. Seria, assim, nomeado pelo representante do Rei em Hispaniola (Diego Velázques) para uma expedição para Yucatán, onde teria notícias da civilização asteca.

 

O Império Asteca era na verdade uma confederação de estados independentes sob o domínio dos Astecas, que em fins do século XV já haviam imposto sua dominação sobre os Maias.

 

Aos olhos dos espanhóis, os astecas pareceram uma estranha mistura de alta civilização e barbarismo selvagem. Possuíam um governo complexo dirigido então por Montezuma, uma arquitetura magnífica e um calendário mais preciso do que o dos europeus. Não dominavam a escrita e desconheciam o uso do ferro. O canibalismo e o sacrifício ritualístico de seres humanos eram praticados por todas as tribos, e em maior escala pelos Astecas. Havia relatos históricos de celebrações nas quais 20.000 corações humanos tinham sido arrancados do peito de prisioneiros para o culto dos deuses daquele povo.

 

A prevalência militar dos espanhóis sobre aquela civilização asteca originou-se do maior domínio da tecnologia.  Na época das navegações a Espanha já utilizava armas de fogo (mosquetes e canhões), subjugando os índios que os enfrentavam de arco e flecha e pedras. Além disso, os europeus, diferentemente dos índios, já conheciam o metal e produziam espadas, punhais e adagas.

 

Para além da pura dominação pela força, havia uma articulação política e uma espécie de “diplomacia” entre Cortez e as lideranças indígenas locais, capitaneadas por Montezuma. Muitas das tribos eram dominadas pelos astecas e viam nos espanhóis um aliado para a sua própria libertação.  

 

Quando os espanhóis chegaram em Tenochtitlán, foram recebidos de forma hospitaleira por Montezuma, ainda que nas comunicações travadas antes desta chegada, o líder dos astecas variava entre a cordialidade e a ameaça. A hospitalidade foi logo se tornando hostilidade, especialmente após os espanhóis profanarem os rituais religiosos bárbaros dos índios: mesmo havendo o interesse primordial pelo ouro e pela prata, a expedição ainda se ocupava de promover o cristianismo e superar a cultura pagã dos índios.

 

Em 25/07/1520, eclode a guerra aberta entre espanhóis e astecas que acarretaria na destruição de Tenochtitlán e na dizimação da sua populaação: os que não morreram pela espada e pólvora dos espanhóis, faleceram de epidemia de varíola, doença contra a qual os índios não tinham imunidade.

 

Para se ter uma dimensão da destruição promovida pelos espanhóis, temos que as estimativas mais conservadoras da população da capital Asteca era de 90.000. Era uma cidade mais populosa do que Paris e Londres do séc. XV que contavam com 65.000. Praticamente toda a população foi dizimada, a cidade destruída e sobre ela construída a atual Cidade do México.

 

Após a vitória sobre a mais desenvolvida civilização indígena do México,  ou mais exatamente em 15/10/1522, o rei espanhol Carlos V declarou Cortez governador na Nova Espanha. Contudo, havia uma desconfiança de que as habilidades militares do conquistador não eram necessariamente traduzidas em aptidão para a administração pública.

 

O seu poder foi esvaziado e Cortez foi gradualmente sendo preterido pelo Rei da Espanha, até a sua morte em 02 de Dezembro de 1547, já de volta à Espanha, onde se preparava para uma nova expedição já com mais de 60 anos de idade.

 




Cortez e Montezuma cumprimentam-se em Tenochtitlan em meio a um cerimonial em 1519. Montezuma reconheceu rapidamente a autoridade do rei da Espanha sobre o México, enquanto Cortez alegava ser amigo e não conquistador. Os dois mantiveram um estranho relacionamento de amigos e inimigos.

segunda-feira, 6 de março de 2023

“Canaã” – Graça Aranha

 “Canaã” – Graça Aranha




 

Resenha Livro – “Canaã” – Graça Aranha – Iba Mendes Editor Digital – www.poeteiro.com

 

No ensino de literatura no ensino médio somos ensinados e compreender a evolução da literatura brasileira de acordo com “escolas” que se sucedem de forma cronológica e linear: do romantismo ao realismo; do realismo ao naturalismo; do naturalismo ao simbolismo, etc. etc.

 

Dentre estas categorias, uma daquelas mais discutíveis é a de pré-modernismo, que se situaria entre 1900 e 1922, tendo como termo final a primeira irrupção modernista oriunda da Semana de Arte Moderna. Dentro desta categoria residual se situam autores absolutamente diferentes em termos de estilo e objetos de análise e descrição: Lima Barreto, Euclides da Cunha e Graça Aranha são comumente associados ao dito pré-modernismo.

 

Contudo, pode-se de fato pensar este período da trajetória da nossa literatura como um momento de transição: nela ainda se observam aspectos caros do naturalismo, perspectiva em que o homem olha objetivamente a realidade, sem enfeites de imaginação que, frequentemente, resultam da impossibilidade ou da impotência em explicá-la. Tal qual um cientista que analisa os fatos da natureza, o escritor naturalista expressa o mundo onde pousa os seus pés. Ao menos em Canaã, estão igualmente presentes os pressupostos teóricos da escola naturalista envolvendo determinismo, o darwinismo social e as teorias evolucionistas.

 

Além disso, no mais conhecido romance de Graça Aranha já se antecipa uma preocupação central do modernismo brasileiro. Nem tanto a experimentação formal influenciada pelas vanguardas europeias mas a preocupação subjacente daquele movimento de se explicar o Brasil através de sua experiência histórica para assim apontar perspectivas de futuro do país.  

 

Canaã pode ser entendido como um romance de tese, que expressa o debate intelectual da época.

 

O livro trata das colônias alemãs situadas no interior do Espírito Santo. As colônias decorriam de um movimento iniciado ainda no século XIX de estímulo da vinda de imigrantes europeus ao Brasil, não só como meio de substituir o trabalho escravo, cuja abolição deu-se em 1888, mas por conta de considerações raciais relacionadas ao debate intelectual da época.

 

Os dois principais personagens, os alemães Milkau e Lentz, expressam dois pontos de vistas distintos relacionados às discussões do período em torno de raça, cultura e o futuro do Brasil.

 

Milkau, desiludido com a Europa, busca no Brasil o recomeço de sua existência na virgindade de um mundo que estava para ser construído. Via na miscigenação brasileira algo positivo, já que pensava a evolução humana relacionada à confluência de raças. Rejeitava o patriotismo alemão e entendia que as guerras e a luta entre os homens, no futuro, seriam superadas pela solidariedade e o amor.

 

Há quem diga que este personagem fora inspirado em Tolstói e de fato suas intervenções remetem a algo próximo de um socialismo utópico.

 

Lentz parece ser o exato oposto de seu amigo Milkau. Via a imigração alemã como uma oportunidade de subjugar os negros e mestiços do país. Línguas, culturas e civilizações duelam até a prevalência da raça mais forte, no caso a alemã. Enquanto seu companheiro via beleza na harmonia entre o homem e a exuberância da natureza brasileira, Lentz enxerga a beleza na luta e na vitória do mais forte, na dominação do homem sobre a natureza. Pode-se relacionar as suas ideias com a moral nietzschiana: a apologia do mais forte, o desprezo pelos fracos e pela caridade cristã.

 

“Milkau era agricultor por instinto, e todas as suas faculdades de atenção, de imaginação, as empregava com desvelo e ardor no trabalho com as próprias mãos, que enobrecia o seu destino humano. Lentz era o caçador. Restringindo a um círculo de limitada atividade, o seu espírito, sempre retrógrado, buscava expandir-se nessa forma inicial e selvagem de civilização. Caçava, lutava com os animais, devastava matas, e aliado a outros colonos de igual inclinação, em poucos meses para ele já não havia segredos na floresta brasileira. No mesmo teto esses dois homens exprimiam duas culturas diferentes. Um oferecia um mundo de façanhas, matanças, sacrifícios de sangue, e o outro, simples lavrador, frutos da terra, flores do seu jardim...”.

 

Expressando o debate intelectual da época, em Canaã se percebe que a categoria de raça e cultura eram mais centrais do que o conceito de sociedade, para os sociólogos e antropólogos de fins do XIX e início do XX.

 

 

A despeito da história retratar uma colônia de camponeses alemães, o debate que a obra suscita diz respeito aos dilemas do desenvolvimento brasileiro: os personagens principais oriundos de uma país distante, ao tecer cada um os seus pontos de vista sobre a realidade nacional, possibilitam uma visão mais equidistante acerca das possibilidades da civilização brasileira. Isso sem dizer das passagens do livro que retratam o relacionamento dos colonos estrangeiros com os brasileiros, especialmente as autoridades políticas corruptas.

 

Válido ressaltar que Graça Aranha, na condição de diplomata, participara pessoalmente do projeto de incentivo da imigração europeia do Brasil.

 

O que não significa dizer que o livro chega a conclusões eugênicas envolvendo o a prevalência da raça branca sobre mestiços e mulatos.

 

Ao longo da história, ao se depararam com as corriqueiras tragédias sociais relacionadas à pobreza e à intolerância humana, cada um dos personagens revê as suas próprias ideias iniciais. Ao fim e ao cabo, o livro não apresenta respostas senão aquilo que foi definido pela crítica de “pessimismo esperançoso”: a miscigenação permitiria o desenvolvimento através da criação de um povo com características próprias; e, por outro lado, esta miscigenação transformaria os nativos ao ponto de se tornarem irreconhecíveis em relação ao seu próprio país.