terça-feira, 23 de dezembro de 2014

“Triste Fim de Policarpo Quaresma / Clara dos Anjos” – Lima Barreto

Triste Fim de Policarpo Quaresma / Clara dos Anjos” – Lima Barreto 





Resenha livro #141 - “Triste Fim de Policarpo Quaresma / Clara dos Anjos” – Lima Barreto – Ed. Scipione – Introdução e Comentários de José De Nicola 

O escritor carioca Lima Barreto (1881-1922) exerceu um papel de vanguarda na história da literatura brasileira: junto com Aluísio de Azevedo e seu “O Cortiço” e “O Mulato”, foi pioneiro ao descrever o subúrbio do Rio de Janeiro (o que hoje poderíamos dizer a sua “periferia”), bem como as classes sociais mais baixas, até então virtualmente invisíveis desde os romances românticos realistas e naturalistas  que vinham retratando a corte desde o séc. XIX.

Surgem nos romances de Lima Barreto não apenas os bacharéis, os altos funcionários de estado, as damas da alta sociedade, todos de cor branca e pertencente da classe burguesa:  dá-se atenção e centralidade aos personagens que como Lima Barreto (ele próprio um mulato, vítima do racismo e de uma sociedade bacharelesca de "diplomados") trabalham como carteiros, dentistas, funcionários de baixa importância do estado, soldados de baixa patente, ou mesmo vagabundos e boêmios, dependentes do álcool (“parati”).

Temos portanto uma visão privilegiada, tanto em “Policarpo Quaresma” e especialmente em “Clara dos Anjos”, da sociedade suburbana do Rio de Janeiro de fins do séc. XIX e dos 1900's: o estilo de Lima  Barreto, criticado à sua época, é objetivo e direto. Em certas passagens suas descrições remetem a uma verdadeira reportagem de um jornalista que vai descrevendo não só os tipos sociais, mas o abandono do subúrbio, a falta de esgoto, as casas feitas com material improvisado, as brigas entre vizinhos em geral por banalidades como sumiço de animais de criação (galinhas e porcos), ambientes, pessoas e animais amontoados num espaço já marcado pelo abandono.

Um outro elemento importante: em que pese haver de muito da própria experiência pessoal de Lima Barreto nos seus romances – particularmente nas passagens em que se explicita o racismo, como em “Clara dos Anjos” e o abandono da jovem grávida por um nhonhõ branco que a deflora e acaba sempre sendo protegido pelas autoridades policiais e judiciais – não há daquela superficialidade paternalista que poderia dar ensejo às histórias que remetem a situações de profundas injustiças.

Para ficar no mesmo exemplo de “Clara dos Anjos”, Lima Barreto busca identificar as raízes de seu triste fim não apenas pela sociedade racista, pelos privilégios desfrutados pelo homem branco diante das instituições, mas igualmente por erros na formação moral do lado dos “oprimidos”:

“A educação que recebera , de mimos e vigilância, era errônea. Ela devia ter aprendido da boca dos seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente... O bonde vinho cheio. Olhou todos aqueles homens e mulheres...Não haveria um talvez, entre toda aquela gente de ambos os sexos, que não fosse indiferente à sua desgraça... Ora, uma mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil D. Margarida, para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam”.

E aqui temos em plena evidência ideias-chave para compreender dificuldades e a superação de vida do próprio autor de Clara dos Anjos.

Neto de escravos, filho de tipógrafo e de mãe professora primária, sempre teve de enfrentar o preconceito em função da sua cor. Como muito esforço conseguiria entrar na Escola Politécnica de Engenharia do Rio de Janeiro mas não conseguiria concluir o curso diante de doença que levara seu pai à loucura.

Em 1903 consegue passar em concurso para Secretaria de Guerra e é nomeado funcionário público, um cargo burocrático inexpressivo.

Levaria uma vida depressiva em que o álcool seria um paliativo para as suas severas crises. Sua depressão tinha como origem sua rejeição social em função de sua cor e um altivo orgulho em face da inadequação diante de uma sociedade e um ambiente intelectual medíocre que ao mesmo tempo o rejeitava - consta que em duas ocasiões o escritor foi rejeitado pela Academia Brasileira de Letras.

Diz Lima Barreto em depoimento:

“Fui a bordo ver a esquadra partir. Multidão. Contato pleno com meninas aristocráticas. Na prancha, ao embarcar, a ninguém pediam convite; mas a mim pediram. Aborreci-me. 

É triste não ser branco.

(....) 

O que é verdade na raça branca, não é extensivo ao resto; eu mulato ou negro, como queiram, estou condenado a ser tomado por contínuo. Entretanto, não me agasto, minha vida será sempre cheia desse desgosto e ele far-me-á grande”

E como o escritor desejava superar a discriminação? Ele mesmo responde:

“Mulato, desorganizado, incompreensível e incompreendido, era a única coisa que me enchia de satisfação, ser inteligente, muito e muito! A humanidade vive da inteligência, pela inteligência e para a inteligência, e eu, inteligente, entraria por força na humanidade, isto é, na grande Humanidade de que quero fazer parte”. 

Enquanto “Clara dos Anjos” centraliza sua crítica social na questão do racismo, no problema da educação familiar e no abandono das família suburbanas pelas instituições, “Policarpo Quaresma” é antes uma crítica bem humorada da República Velha, dos militares no poder e da política nacional.

O Major Policarpo Quaresma foi acometido desde jovem por um amor quixotesco pelo Brasil e dedicaria toda a sua vida a estudar tudo o que se refere à pátria: sua história, suas riquezas minerais, sua botânica, a língua tupi. Tamanho amor o levaria a ação extravagante de propor a alteração do idioma do país para a língua aborígene o que lhe renderia a ridicularização e o escracho público – posteriormente, ao protocolizar no seu departamento (era funcionário público) papeis em língua tupi, chega a ser internado como louco.

O fato é que o amor de Policarpo pode parecer extravagante, mas é nobre e altruísta: tanto o é, que após a internação toma rumo a um sítio onde se dedica à agricultura, com a enxada no braço, no intuito de, pelo exemplo, fazer progredir as terras do país.

O que é interessante é que pela ingenuidade pueril do major em contraponto à política real – e o período histórico é o do segundo governo da República com a Revolta da Armada em curso – o leitor pode observar, pelo contraste, a larga, a vasta distância entre o ideal de uma política desinteressada e o que ela representa de fato: literalmente o triste fim de Policarpo Quaresma, o triste fim de um idealista, abandonado por todos (cada um exclusivamente interessado em sua promoção, em seu cargo, em seus interesses pecuniários) demonstrando uma crítica corrosiva e radical à política de seu tempo. Alguns vêm uma crítica ao regime republicano o que por consequencia faria de Lima Barreto um saudoso defensor da Monarquia. Nada mais equivocado. Sua literatura é prospectiva e politicamente foi um cético - em termos filosóficos, tinha influência com o princípio da dúvida de Descartes.

Balanço Lima Barreto

Hoje Lima Barreto deve ser reconhecido como um escritor pioneiro e renovador da literatura nacional. Ele estava à frente de seu tempo e situa-se dentro do contexto histórico do pré-modernismo (1900's literário), já prenunciando questões como a denúncia social, a experimentação com o uso da linguagem (utilização da linguagem popular, algo muito caro ao movimento modernista posterior) e um nacionalismo literário geral, tanto na forma quanto no conteúdo – o que também prenuncia o movimento de 1922.

De forma que chega a ser irônico o fato de Lima Barreto não ter aceitado muito bem aquele Movimento Modernista– na prática podemos dizer que ele foi um de seus precursores mais originais e a ele somos todos devedores para além das inovações literárias, também como um excelente narrador das classes populares do Brasil da República Velha.


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