“Caminho de Pedras” – Rachel de Queiroz
Resenha Livro - “Caminho de Pedras” – Rachel de Queiroz –
Ed. Siciliano – 12ª Edição
“Repetiam toda hora os “camaradas”, afetavam uma
simplicidade excessiva, que chocava os outros, os “de tamancos”, cheios de
preconceitos e convenções. Pois a simplicidade, longe de ser um atributo dos humildes,
é um artifício de requintados que a plebe desconhece. Depressa essa diferença cavou
divergências. Os “tamancos” entraram a hostilizar os “gravatas”, a “desmascará-los”,
a exigir que se proletarizassem. O preto Vinte-e-Um chefiava a “esquerda”, e os
“gravatas” se fechavam num círculo aristocrático, que chegava a incluir o
próprio Filipe, expulso do meio dos obreiros por “intelectual” e por “burguês”.
Dos da rodinha, só Paulino, o ferroviário, tinha entrada entre os “tamancos”.
Samuel também cortejava os operários e exagerava a sua proletarização. Deu até
para andar de fundilhos rotos, de camisa de mescla”.
“Caminho de pedras” é o terceiro romance da escritora
modernista Rachel de Queiroz. O livro foi publicado em 1937, tendo como
antecessores “O Quinze” (1930) e “João Miguel” (1932).
Toda classificação tem algo de arbitrário e o enquadramento
das obras literárias em determinadas escolas pode inviabilizar um exame
completo e específico de cada publicação. Por outro lado, é certo que a leitura
deste e de outros romances de Rachel de Queiroz remete aos trabalhos de outros
autores situados mais ou menos no mesmo tempo e espaço. É o caso de Graciliano
Ramos e sua narrativa acerca das coisas e gentes do nordeste brasileiro, num
contexto de fragmentação do velho mundo de tipo colonial, com o advento das
cidades, dos bondes e dos jornais, das profissões liberais e de um novo arranjo
político-institucional em substituição às formas pessoais de poder[1].
As Alagoas de “Angústia” tem paralelo
com a fortaleza de “Caminho de Pedras”. Os personagens deixam de serem os tipos
burgueses tão característicos da literatura do século XIX já a partir dos romances
de Joaquim Manuel de Macedo e Machado de Assis.
Exsurgem agora tipos populares que se associam a setores
empobrecidos do que chamaríamos hoje de “classe média”. Neste “Caminho de Pedras”
é o caso de Roberto, um jornalista filiado a organização de esquerda que, a
título de organizar uma célula revolucionária, muda-se para Fortaleza e
encontra a desconfiança dos poucos operários que compõem o núcleo. Outros tipos
populares e pequeno burgueses se envolvem em torno da mesma organização
política: um tipógrafo, um ferroviário, um revisor de jornal e operários.
Ocorre que mesmo havendo a divisão social do trabalho entre os trabalhos
manuais e intelectuais, afere-se que mesmo os pequeno-burgueses trabalham de
forma maquinal, seja como tipógrafo seja como revisora de fotografias.
Contudo, a divisão interna da organização política expressa
questões bastante discutidas no âmbito da tradição marxista, o que faz deste
romance uma fonte de reflexão em torno de questões como as relações entre o
partido político e a classe social proletária, as relações entre sujeito político
e sujeito social. O enredo sugere que os operários têm o instinto
revolucionário mas carecem da teoria revolucionária. São obreiristas, com
destaque para o personagem Vinte-e-Um, que demonstra o mais alto grau de
desconfiança contra os “intelectuais”
pequeno burgueses.
Lukács em seu “História e Consciência de Classe” sugere que
a própria posição social ocupada pelo trabalhador nos quadros da sociedade
capitalista engendra ao menos potencialmente a consciência revolucionária. Já Lênin é
partidário de uma organização política de vanguarda, que seja formada pelos
quadros mais decididos, mais valentes e mais preparados, numa orientação de
fazer avançar a consciência da classe – em Lênin, política não se confunde com
pedagogia não havendo muito espaço para uma renúncia do horizonte estratégico
diante de uma adequação ao nível de consciência dos elementos mais atrasados da
classe.
Em Lênin o sujeito social não se confunde necessariamente com o sujeito
político.
O romance começa com o tema da política para posteriormente
suscitar o tema do amor, este também policlassista. Roberto, de origem
pequeno-burguesa, conquista o coração de Naomi, mulher identificada com o Bloco,
de perfil proletário e casada com Jean Jaques. O amor extraconjugal revela uma
experiência de culpa, de medo e de hesitação:
“Esquisito, o amor. Parece uma luta, a gente parece inimigos.
Vontade de possuir, de mandar, de dominar. Desconfiança. Fiscalizando,
esmiuçando nuanças de voz, entonações, olhares. Tudo fica intoxicado, doentio.
Entre Roberto e ela já não havia mais hiatos de paz, de amizade, de camaradagem
serena. Foi-se embora isso tudo, assim que se disseram as primeiras palavras de
amor. Hoje era só aquela tensão, aquela necessidade recíproca e angustiosa de
se verem, aquela força bruta que a atirava para os braços dele com os lábios
trêmulos e o coração quase parando”.
Aspectos não menos secundário e de interesse da obra é o
realismo com que retrata as dificuldades da organização num contexto de
repressão que o leitor supõe estar relacionada com o contexto da Era Vargas e
do Estado Novo. As aulas de política são feitas de forma clandestina e as
tentativas de realização de discursos em praça pública terminam em prisões. O
baixo nível político-ideológico dos militantes, indistintamente quanto aos
obreiros e os intelectuais, também é marca do propósito realista da obra: não
poderia ser diferente, considerando as condições históricas do Brasil recém
egresso da república velha, o baixo nível de organização das esquerdas naquele
contexto e a repressão estatal.
O ser humano é eivado de contradições de modo que o
exercício de apreensão das complexidades da alma decorreu de conquistas mais
recentes da literatura. O realismo literário de Machado de Assis e mesmo as
obras naturalistas demonstraram dificuldade em descrever os tipos mais simples
do povo com a marca de sua complexidade humana. Será com os trabalhos de
Graciliano Ramos, Rachel de Queiróz, José Lins do Rego e Guimarães Rosa que se
possibilitará conhecer os meandros da vida e da alma dos tipos populares desde
um viés regionalista.
Resenha Literatura #1
[1] A
melhor metáfora deste novo arranjo institucional é a figura do soldado amarelo
de “Vidas Secas” (1938).
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