sexta-feira, 10 de maio de 2019

“O Coruja” – Aluísio Azevedo


“O Coruja” – Aluísio Azevedo



Resenha livro - “O Coruja” – Aluísio Azevedo – Livraria Martins Editora 1973

Aluísio Azevedo foi um dos ou talvez o maior dos escritores do nosso naturalismo literário. Suas duas obras mais lembradas são O Cortiço (1890) e O Mulato (1881). Diante do compromisso literário daquela escola com a objetividade na narrativa, as obras naturalistas têm especial importância para o historiador do Brasil. As narrativas revelam aspectos sociais a começar pelos tipos humanos que exsurgem: dos estudantes, dos bacharéis, dos jornalistas e poetas, das francesas de vida fácil, da solteirona mal dizente, dos trabalhadores manuais, dos agregados, dos comerciantes de pequeno e grande porte. Da cultura da provinciana Maranhão, em O Mulato, ao Cortiço, os naturalistas são pioneiros em direcionar sua atenção para os extratos mais baixos da população. 

No realismo literário ou mesmo no Romantismo de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo  figuram com mais frequências os tipos burgueses das cidades, até porque os romances eram naquele tempo lidos pelas mulheres das classes mais altas através dos folhetins. O naturalismo vai mesmo além ao retratar tragédias familiares, todo tipo de violência e questões sexuais então consideradas tabu. Basta lembrar de Adolpho Caminha que em “Bom Crioulo” aborda o tema do amor homossexual em 1895.

Há assim um interesse suplementar nas obras naturalistas e nos livros de Aluísio Azevedo quanto à descrição dos tipos populares, as expressões de linguagem, os enlaces amorosos, o papel eminentemente doméstico da mulher, as estudantadas com sua boemia, a hipocrisia religiosa que começa a partir dos próprios clérigos.

Por outro lado, o realismo literário, que antecede o naturalismo, desnuda os interesses pessoais e até pecuniários que envolvem sentimentos como os de nobreza, coragem e de amor, não raro implicando no humor, através da análise detida da psicologia das personagens. Já o naturalismo literário, muito influenciado por um certo cientificismo que informa a visão social de mundo de fins do séc. XIX, não se caracteriza tanto pela análise psicológica, estando os personagens muito mais sucumbidos em suas atitudes e pensamentos pelas influencias hereditárias, da origem e do meio social. Há um certo fatalismo quando se observa a trajetória de vida das personagens naturalistas, o que é a tônica também deste Coruja.

Os amigos Teobaldo e André tem seus traços essenciais mais ou menos já definidos na infância e a série sequencial de eventos de suas vidas segue uma espécie de teleologia ao inverso: os traços já definidos do caráter, a origem social e mesmo a sorte são pré determinadas a partir da origem, da herança de classe e da formação familiar. O fim trágico da história sugere que a despeito das diferentes trajetórias, seja o genuinamente bom (Coruja) seja o genuinamente vaidoso (Teobaldo) terminam numa situação de amargura e solidão diante da morte.  

As duas crianças conheceram-se numa escola-internato dirigida por um avaro diretor. André logo nos primeiros dias de escola é apelidado de coruja por seu aspecto físico de extrema feiura.


“André representava então nos seus dez anos o espécime mais perfeito de um menino desgraçado. Era pequeno, grosso, muito cabeçudo, braços e pernas curtos, mão avermelhadas e polposas, tez morena e áspera, olhos sumidos de uma cor duvidosa e fosca, cabelo duro e tão abundante que mais parecia um boné russo do que uma cabeleira”.


Já quando criança o Coruja sempre fora muito triste e calado. André fora adotado por um reverendo que por sinal odiava a criança. O Coruja era órfão de pai e mãe e foi acolhido mais pela boa reputação que o ato de bondade do Sr. Vigário fazia junto aos devotos do que por algum interesse pelo menino.

Não poderiam ser mais opostas as origens de Teobaldo Henrique de Albuquerque. Filho de um rico barão, era altivo, belo e arrogante. Pode-se dizer que os dois formavam um contrate tal que se suplementavam. Os colegas da escola igualmente detestavam os dois, o primeiro pela esquisitez e o segundo pela petulância, além da inveja de Teobaldo ser sempre bem tratado pelos funcionários do colégio considerando sua origem de menino rico.

Teobaldo tinha postura de fidalgo, tendo estudado ainda muito jovem em Londres e Portugal. Tinha um espírito inconstante e aventureiro. O Coruja era antissocial, tinha um espírito metódico, muito chegado a livros velhos de sebos - houve quem comparasse o personagem Coruja com um dos nossos maiores historiadores, Capistrano de Abreu.  

O Coruja era extremamente modesto e bondoso, não aceitando que seus colegas que tanto o importunavam fossem capazes de caçar uma borboleta em sua frente. Não só era bom com os homens como com os animais sendo capaz de passar frio e deitar uma blusa a um cão em necessidade. Um gênio improvável para uma criança de 12 anos, o que acabará por causar certa perplexidade face aos atos de altruísmo que o Coruja tomaria em benefício de seu único e exclusivo amigo, Teobaldo.

Na perspectiva do naturalismo, o sucesso e o fracasso na vida parecem ser uma questão de sorte. Teobaldo, pródigo como era, vivera sempre na fortuna, até quando no Rio de Janeiro passou dificuldades com a morte e abandono dos parentes, sendo em grande tempo sustentado pelo amigo. Em seu melhor momento Coruja, tão arredio e rejeitado pelo mundo, conseguiu, com muito trabalho, dirigir um estabelecimento educacional. As situações de vida se inverterão com Teobaldo, após sucessivos eventos que poderíamos chamar de sorte, fazendo com que o mesmo se torne ministro de estado. Mas a força da contingência é aparente, pois os vaivéns da vida em nada alteram a atitude dos personagens, sua força moral, sua psicologia e sua essência. A série de acontecimentos da vida dos dois amigos parecem revelar forças irresistíveis de modo que as personagens não parecem ser protagonistas dos seus destino. Mas a solução final dada pelo livro é a de que, a despeito das contingências, a sorte do homem já está pré-determinada. O que significa dizer que esta proposta não contempla a possibilidade de mudanças radicais quanto aos traços essenciais do  homem.

O compromisso com a objetividade dos naturalistas descortina questões do passado que já aqui revelam o interesse vivo pela leitura dos livros de Aluísio Azevedo. Enquanto no Cortiço o protagonismo não está propriamente nos tipos populares que surgem de uma certa forma superficiais mas no Cortiço propriamente dito; enquanto no Mulato o protagonismo está na provinciana e atrasada Maranhão do Séc. XIX; em o Coruja temos um livro em que a construção de personagens mais complexos parece sinalizar uma etapa de evolução da literatura nacional que tem certa equiparação com os nossos modernistas de 2ª Geração (Graciliano Ramos, Amado Fontes, Rachel de Queróz) que focam suas narrativas nos elementos populares, na maioria camponeses, mantendo ainda humanidade e a complexidade íntima de cada personagem. Se o personagem Coruja parece ser um tanto improvável, temas como o da bondade, da humildade, da ambição, do orgulho e da amizade revelam como esta obra, ainda na perspectiva naturalista, vai mais além do que uma descrição paisagística de elementos humanos submetidos ao meio e à contingencia.  

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