sexta-feira, 17 de maio de 2019

“Formação Econômica do Brasil” – Celso Furtado


“Formação Econômica do Brasil” – Celso Furtado 



Resenha livro - “Formação Econômica do Brasil” – Celso Furtado – Ed. Companhia das Letras

“Observado de um ângulo distinto, o desenvolvimento da primeira metade do século XX apresenta-se basicamente como um processo de articulação das distintas regiões do país em um sistema com um mínimo de integração. O rápido crescimento da economia cafeeira - durante o meio século compreendido entre 1880 e 1930 -, se por um lado criou fortes discrepâncias regionais de níveis de renda per capita, por outro dotou o Brasil de um sólido núcleo em torno ao qual as demais regiões tiveram necessariamente de articular-se”.

Celso Furtado nasceu em 1920 na Paraíba. Foi um dos fundadores da Comissão Econômica da América Latina (CEPAL), instituto de importância no pensamento social brasileiro envolvendo de maneira central o problema do subdesenvolvimento, a ampliação do acesso a tecnologias nos países periféricos e o avanço da industrialização. Neste contexto, vale ressaltar que Celso Furtado foi criador e dirigiu a SUDENE até 1964, além de ter sido ministro do planejamento no governo de João Goulart.

“Formação Econômica do Brasil” se insere assim num contexto do pensamento social de formulações no sentido da superação do subdesenvolvimento – foi escrito em 1958 durante o governo de Juscelino Kubitschek e já num contexto de discussão das chamadas reformas de base que seriam intentadas ainda que timidamente por João Goulart.

A obra serve-se da economia e da história para explicar o processo de desenvolvimento da economia brasileira na longa duração. Do sistema açucareiro no nordeste, primeira forma economicamente estruturada de produção em território brasileiro, da pecuária que se desenvolve como um apêndice do açúcar em regiões periféricas do nordeste interiorizando a ocupação territorial; da economia de extrativismo vegetal no norte amazônico dirigida primeiramente pelos jesuítas com a utilização da mão de obra indígena; da economia mineradora que erigiu um tipo de sociedade bastante diferente do sistema agrícola açucareiro começando pelo fato que o ouro brasileiro é de aluvião, acessível a produção sem expressivo capital; dos ciclos da borracha no norte, do cacau e do fumo na Bahia passando pela economia do café que, servindo-se paulatinamente da mão de obra livre, criou as condições para acumulação de capital, o desenvolvimento industrial (num primeiro momento indústrias de bem de produção) e a ampliação do mercado interno.

Como se sabe, nos primeiros 30 anos do descobrimento do Brasil não se instalou aqui qualquer atividade produtiva que não o escambo entre portugueses e índios envolvendo o extrativismo vegetal. As coroas portuguesa e espanhola estavam vislumbradas com a miragem do ouro que foi precocemente descoberto pelos espanhóis no eixo Perú-México. Havia também a necessidade de defender militarmente os territórios em face de Holanda, Inglaterra e França.

A precoce descoberta do ouro pela Espanha deu fisionomia bastante distinta ao processo colonizador da américa espanhola – a defesa territorial da vasta porção de terras que iam no México ao extremo sul do continente fez com que a intervenção espanhola tivesse um caráter de tipo militar o que não impediu a instalação de franceses, ingleses e holandeses nas Antilhas da américa central, além da porção setentrional do continente.  A Espanha não desenvolveu produtos agrícolas que amparassem sua economia e sucumbia diante da economia do ouro – inflação e fortalecimento dos setores sociais não produtivos que vivem da renda concentrada no Estado.

No caso Brasileiro, o açúcar desenvolveu-se em grandes propriedades, inicialmente através do trabalho indígena e, uma vez aferido a rentabilidade do sistema, através da importação do trabalho africano. O escravo africano é certamente mais eficiente e de recrutamento menos incerto que o do índio. O modelo de economia agrário exportadora envolvendo a monocultura tem como desdobramento uma  forte dependência da economia da colônia às oscilações do mercado mundial. O período de apogeu efetivo da economia açucareira vai de fins do séc. XVI até meados do séc. XVII. Enquanto o açúcar era produzido no Brasil, a refinaria do produto e sua comercialização na Europa estavam nas mãos dos holandeses. O segredo da fabricação do açúcar, a proibição que técnicos e peritos nesta produção saíssem do seu próprio território faziam com que a produção brasileira fosse efetivada virtualmente em regime de monopólio mundial. Com a ocupação holandesa do nordeste nas primeiras três décadas do XVII os neerlandeses adquiram o conhecimento técnico da produção e depois a instalaram nas Antilhas, estabelecendo concorrência e diminuindo sensivelmente a produção brasileira.

Um aspecto interessante que Celso Furtado chama atenção é para a criação de economias apêndices de produção pecuária iniciada no nordeste de forma articulada com o engenho de açúcar e no sul articulada com a economia mineradora. A produção de couro realmente foi alta no Brasil substituindo produtos manufaturados importados que na colônia tinham preços só acessíveis aos muito ricos[1]. Além do couro, a pecuária produz a mula que é a base do transporte naquele país continental. Por último, a pecuária atende ao consumo de carne na colônia. Quando o açúcar entra em crise, a pecuária entra numa espécie de regressão tornando-se economia de subsistência. Fenômeno semelhante ocorre com a crise da economia mineira e a pecuária sulista. Pode-se falar que houve articulações, mas o que resta inconcluso na economia nacional é uma verdadeira integração das regiões, elemento de superação do subdesenvolvimento com o aproveitamento mais racional  de recursos e fatores no conjunto da economia nacional.

Outro problema que remete ao nosso passado colonial é uma tendência à concentração de renda, ainda que haja uma diversificada destinação das riquezas a depender dos diferentes ciclos econômicos. O que há de reiteração é que os aumentos de produtividade e da renda nacional não são revertidos para o conjunto da população: se destinam ora aos produtores, ora ao setor ligado ao comércio internacional. Quando muito o estado de limita ao controle do câmbio e à facilitação da importação de equipamentos, insumos e outros bens de produção.

Como foi dito, o livro foi escrito em meados do século passado, quando o Brasil ainda não completara sua transição demográfica, uma das mais rápidas do mundo, do campo para as cidades. O problema do desenvolvimento se colocava então a partir da superação de uma herança agrário-exportadora, com o escopo de incrementar por um lado a produtividade do trabalho e por outro o próprio crescimento econômico como um todo. Criar as bases de uma economia cada vez menos dependente do mercado externo e reduzir ao máximo a concentração de renda. Mesmo com mudanças então bastante imponderáveis para um observador de 60 anos atrás como a chamada globalização econômica, a brutal flexibilização das relações de trabalho, a disseminação da informalidade, a economia de serviços já superando a economia industrial, em que pese todos estes elementos imponderáveis, a conclusão final do livro é de uma lamentável atualidade:

“Sendo assim, o Brasil por essa época ainda figurará como uma das grandes áreas da terra em que é maior a disparidade entre o grau de desenvolvimento e a constelação de recursos potenciais”.  

*
Monocultura e Industrialização

“O sistema de monocultura é, por natureza, antagônico a todo processo de industrialização. Mesmo que, em casos especiais, constitua uma forma racional (do ponto de vista econômico) de utilização dos recursos da terra, a monocultura só é compatível com um alto nível de renda per capita quando a densidade demográfica é relativamente baixa. Ali onde é elevada essa densidade - o que ocorre na faixa úmida do Nordeste – a monocultura impossibilita alcançar formas superiores de organização da produção. Com efeito, nas regiões densamente povoadas uma elevada densidade de capital por homem - condição básica para o aumento de produtividade - só se consegue com a industrialização. Ora, a industrialização vem sempre acompanhada de rápida urbanização, que só pode se efetivar se o setor agrícola responde com uma oferta adequada de alimentos. Se a totalidade das boas terras agrícolas está concentrada em um sistema ancilosado de monocultura, a maior procura de alimentos terá de ser atendida com importações. No caso do Nordeste, a maior procura urbana tende a ser satisfeita com alimentos importados da região sul, o que contribui para agravar a disparidade entre salário nominal e produtividade em prejuízo da região mais pobre”.


[1] Na capitania de São Vicente (São Paulo) da era colonial algumas peças de roupa importada tinham mais valor do que uma casa.

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