“São
Bernardo” – Graciliano Ramos
Resenha
Livro - “São Bernardo” – Graciliano Ramos – Editora Record
“Ora,
essas coisas não passam como antigamente. Mudou tudo. Gente nasceu, gente
morreu, os afilhados do major cresceram e foram para o serviço militar, em
estrada de ferro. O povoado transformou-se em vila, a vila transformou-se em
cidade, com chefe político, juiz de direito, promotor e delegado de polícia. Trouxeram
máquinas – e a bolandeira do major parou. Veio vigário, que fechou a capela e
construiu uma igreja bonita. As histórias dos santos morreram na memória das
crianças”.
“São
Bernardo” foi publicado em 1936, pouco após Graciliano Ramos ter renunciado ao
cargo de prefeito de Palmeiras dos Índios (1928). Foi o segundo livro escrito
pelo autor e é de uma qualidade superior à sua primeira obra, Caetés. Há neste
romance algo que vai ser reiterado nas obras posteriores, como Angústia e Vidas
Secas – a desagregação do mundo rural e a modernização capitalista que informa o
desenvolvimento histórico do país a partir da independência ou se quisermos
1808. Os engenhos de açúcar e os potentados rurais que têm seu domínio local
sempre inconteste passam a conviver com aquelas mudanças de longa duração com a
abolição do tráfico e do trabalho escravo; a expansão do café e do trabalho
livre; as novas tecnologias de transporte e comunicação com as linhas de trens,
os bondes, a luz a gás e as cidades. Esta tradição é mencionada à propósito
quando o narrador deste São Bernardo, o fazendeiro Paulo Honório, conta a
história de um de seus subordinados, o seu Ribeiro.
Seu
Ribeiro antes fora coronel e era respeitado e acatado por todos de sua vila. Se
uma moça dizia-se grávida, o coronel descobria o sedutor, impunha o casamento e
ainda virava padrinho. Se havia queixas e conflitos, o coronel decidia como
juiz e sua decisão era irrecorrível. Mas vieram os delegados de polícia e
juízes e não precisaram do coronéis para dirimir as lides. A mulher de seu
Ribeiro deixou de prescrever curas caseiras pois agora havia médico. Deixa de
ser o indivíduo quem infunde o respeito e o temor mas o estado com suas autoridades e bacharéis.
Pois
é bem este tipo de mundo, obviamente relacionado à herança colonial do Brasil,
que parece desagregar-se. Quem se lembrará das gerações que precederam Luís de
Angústia: seu avô, um opulento fazendeiro. Seu pai, totalmente desinteressado
pelos destinos do empreendimento rural, rolava o dia todo à rede lendo romances
enquanto pingos de chuva inundam o interior da casa. E o neto, Luís, muda-se
para o subúrbio da capital onde trabalha como escrevinhador, sempre ganhando
uma miséria.
São
Bernardo é um livro que diz bastante sobre a chamada geração modernista de 1930
que tinha um compromisso bastante evidente em descrever a realidade social,
caracterizar o Brasil e, particularmente, o problema regional. José Lins do
Rego e Rachel de Queiróz serão outros representantes desta corrente literária
regionalista, que acaba suscitando as contradições sociais sem um simples
esquema de maniqueísmos, mas elaborando as complexidades das personagens. Uma
literatura que chama a atenção para as injustiças sociais sem com isso ser meramente
panfletária e superficial.
Paulo
Honório começa descrevendo-se como um homem de 50 anos, pouco instruído e que
começou a vida lá de baixo, fazendo bicos quando criança nas ruas da cidade.
Foi acumulando capital por conta própria. Adquiriu a fazenda de São Bernardo
através da manipulação de Padilha, um escrevinhador de jornais com ideias de
esquerda além de proprietário da fazenda abandonada. Paulo Honório fez-lhe empréstimos de dinheiro enquanto cobiçava São Bernardo. Aguardou o
momento de fraqueza do devedor e pressionou-o sob ameaças a ceder-lhe a
Fazenda.
A
partir de estão, o empreendimento passa a ser a maior preocupação do nosso
narrador. Para diminuir a mortalidade dos matutos e aumentar a produção, Paulo
Honório proíbe a aguardente em São Bernardo. O fazendeiro tem interesse em
obter favores do governo para o seu maquinário e constrói uma escola: não como
um ato de solidariedade mas como um investimento.
“A
escola é um capital, os alicerces da igreja são um capital”.
A
certa feita, Paulo Honório descobre o agora professor da escola Padilha supostamente injuriando-o
aos matutos e difundindo ideias revolucionárias. O fazendeiro reage com pontapés
e injúrias contra o empregado dizendo que São Bernardo não é a Rússia. Depois,
humilha Padilha negando-lhe o pagamento do ordenado, requerendo que o Professor
seja “camarada”.
Este
temperamento brutal, duro e insensível não deixa de ser posteriormente
reconhecido pelo autor-narrador. A maior parte da vida ponderou suas escolhas
por aquilo que lhe fosse mais lucrativo: mas o trágico desenvolvimento da sua vida,
a partir do surgimento de Madalena, além da decadência econômica de São
Bernardo, irão fazê-lo pensar se tudo aquilo que fora construído valera a pena:
o açude, a igreja, a escola, a estrada, a luz e o telefone instalados na fazenda.
Não
se sabe se Paulo ama efetivamente Madalena. Certamente Madalena jamais amou
Paulo. O protagonista conclui a proposta do casamento como se propusesse um
negócio: a princípio o fazendeiro desejava casar apenas para ter um herdeiro
para guardar São Bernardo. O enlace foi aceito e Madalena, uma alma boa e
generosa, logo passa a se preocupar com a sorte e a pobreza dos moradores de
São Bernardo. A moça era professora e instruída, falava e escrevia palavras
ininteligíveis para Paulo Honório. Este só lia no máximo manuais de
escrituração mercantil e de agricultura. E os seus ciúmes nascem e parecem ser o
principal efeito de seu suposto amor. A vida familiar desperta atenção do
fazendeiro para as suas fraquezas: sua ignorância e grosseria, seus modos de
homem do mato, sua barba mal feita e corpo sujo de quem trabalho o dia inteiro
no campo. A experiência amorosa de Paulo Honório revela-se assim pelo ciúmes, pelo
ódio e pela insegurança.
A
desagregação daquele mundo rural forjado em 3 séculos de regime colonial, agrário-exportador
e escravista, com a marca da pessoalidade no mando e da centralização
político-administrativa em torno de poderes locais. A instância máxima
do poder público e familiar dos coronéis, agora em crise. São estes o pano de
fundo das tramas de Graciliano Ramos. Mudanças sociais, políticas e econômicas dos
anos 1930, no Brasil com a revolução de Vargas e no Mundo com os impactos da I
Guerra, da Revolução Russa de 1917 e da Crise de 1929.
A
modernização de longa duração que ganha maior dinâmica no Brasil a partir de
meados do séc. XIX tem como origens uma multiplicidade de fatores que envolvem
a abolição do tráfico, a Guerra do Paraguai, a cultura do café, a introdução
das linhas de ferro, a urbanização, o desenvolvimento da imprensa, do ensino e das artes.
Mas certamente ainda há muito daqueles aspectos do passado colonial que foram herdados
e sobrevivem. Os chamados sentidos da colonização enunciados por Caio Prado Jr.
ainda revelam algo de nossa paisagem tanto econômica como política, seja com
a permanência da concentração fundiária brasileira[1] e seja com a perpetuação
de velhas oligarquias dirigindo politicamente o país.
[1] Grandes propriedades somam apenas 0,91% do
total dos estabelecimentos rurais brasileiros, mas concentram 45% de toda a
área rural do país. Por outro lado, os estabelecimentos com área inferior a dez
hectares representam mais de 47% do total de estabelecimentos do país, mas
ocupam menos de 2,3% da área total. Dados 2006.
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