quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

“História da Cidade de São Paulo” - Afonso de E. Taunay


“História da Cidade de São Paulo” -  Afonso de E. Taunay



Resenha Livro - “História da Cidade de São Paulo” -  Afonso de E. Taunay – Poeteiro Editor Digital

“Em ambiente tão singelo era natural que a vida dos primeiros paulistanos fosse a mais uniforme e tediosa.

A esta uniformidade só interrompiam, espaçadamente, os grandes acontecimentos familiares, nascimentos, esponsais, moléstias e falecimentos ou então a ocorrência de festas sacras.

Vivia a vila quase sempre erma. Nas vizinhanças das festividades públicas povoava-se com a chegada dos proprietários dos estabelecimentos agrícolas circunvizinhos.

A vida fazendeira daqueles pequenos agricultores e pequenos criadores corria no ramerrão quotidiano do plantio e da colheita, do pastoreio e da contenção do pessoal servil”.

Há alguns anos surgiu a notícia de que um grupo do provável quilate anarquista pichara um monumento de bandeirantes na região do Ipiranga em São Paulo. 

Tintaram de rosa a estátua de belo relevo com homens montados a cavalo em movimento. Talvez os nossos colegas não sabiam que o monumento foi idealizado por um artista ligado diretamente ao movimento modernista de 1922 que pode ser considerado sob diferentes pontos de vista exceto como conservador. Foi antes uma vanguarda de artistas que prenunciaram uma proposta de arte formalmente brasileira, não só com temas pitorescos do país. Arte nacional quanto ao conteúdo, mas buscando distinguir-se igualmente na forma, com um escopo mais amplo de busca das raízes do país e da identidade nacional. O artista em questão foi amigo de Paulo Prado e Mário de Andrade. Já os ataques ao monumento bandeirante revelaria o mesmo irracionalismo que o de queimar edições do Macunaíma sob o argumento da obra ser racista.

Seja como for, esta transloucada ação no Ipiranga deveria ao menos ser um bom pretexto para o estudo mais detido da história de São Paulo e, se quisermos, do problema dos bandeirantes. É certo que a coroa serviu-se dos trabalhos do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho para aniquilar o Quilombo dos Palmares. Mas os mesmos bandeirantes abriram caminho para a interiorização da ocupação do país, com frentes pioneiras desbravando Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso em busca do ouro e diamantes, isto a partir de fins do séc. XVII.

Na São Paulo colonial, ilhada como esteva diante da serra do mar, os colonizadores se serviram antes da mão de obra indígena do que da mão de obra africana que predominaria nos engenhos de açúcar de Pernambuco e Bahia. Houve aqui conflitos importantes entre colonizador e os jesuítas que buscavam assentar os índios em povoações e aldeamentos com regras que buscavam nem sempre com sucesso estabelecer normas de conduta ilibadas.

Quando o Papa Urbano VII determina a ilegalidade da escravidão os conflitos irão se avolumar até o ministro todo poderoso do monarca português D. José, o famoso Marques de Pombal, deliberar pela expulsão dos jesuítas do Brasil. Tal determinação culminaria nas chamadas Guerras Guaraníticas que unificaria jesuítas e índios de um lado e as coroas ibéricas de outro.

O que é certo é que os bandeirantes foram de certa forma retratados por uma certa historiografia mais tradicional ao patamar de entes representativos dos paulistas e paulistanos: varonis, corajosos, ambiciosos de aventura, ciosos de independência e autonomia. Esta interpretação tem algum fundo de verdade : foram muitos os momentos em que a gente da terra solenemente ignorava as determinações da coroa em benefício dos interesses locais.

“Em São Paulo escrevia o Governador-Geral, Câmara Coutinho, a D. Pedro II: “não só não se deu execução a baixa da moeda, mas não quiseram aceitar nem me responderam”. Em outra ocasião afirmou: “a vila de São Paulo já há muitos anos que é república de per si, sem observância de lei nenhuma assim divina como humana”.

Em que pese a escravização do índio, há de se constatar uma situação muito mais complexa do que a mera relação unilateral de opressão. Houve muita miscigenação entre brancos e índios na São Paulo colonial fazendo com que a vila (1560) e cidade (1711) tivessem como língua corriqueira o próprio Tupi. Os índios foram engajados em operações militares, principalmente na região sul, na Colônia do Sacramento. Os índios eram senhores dos domínios do interior e auxiliavam os colonizadores no desbravamento de novas rotas e na busca de riquezas – eram também protagonistas da história e jamais um mero elemento paisagístico.

Consta que o primeiro homem branco a estabelecer-se em São Paulo acima da serra do mar tenha sido João Ramalho por volta de 1515. Não se sabe se este era degredado, fugitivo ou um naufrago. Estabeleceu relações amistosas com os índios tupis, casou-se com a filha de um chefe indígena e contribuiu decisivamente para os primeiros assentamentos coloniais em São Paulo.

A história da cidade de São Paulo de Affonso Taunay ainda é tributária de um certo positivismo metodológico: suas fontes principais são as oficiais, as atas da câmara, os testamentos e os inventários. Isto não impede o autor de descrever aspectos não só político-administrativos da cidade, mas inventariar sobre a imprensa em São Paulo, os costumes, a educação jesuítica, a extraordinária  influência cultural da Faculdade de Direito sobre a cidade, entre outros.

Sua história percorre todo o período colonial, com virtual estagnação de uma cidade ilhada do mundo por seu relevo geográfico, passando pelos percalços relacionados ao aumento do custo de vida e a redução demográfica face à descoberta do ouro. Os costumes destas eras mais distantes revelariam um povo arredio a estrangeiros o que se mostra pelo pouquíssimo número de hospedarias até meados do séc. XIX. As mulheres muito raramente saiam às ruas, na maioria das vezes em razão de eventos religiosos, acompanhadas e conduzidas pelo homem da casa e sempre cobertas de pano escuro.

As coisas mudariam a partir da cultura do café em meados do XIX do Vale do Paraíba até São Paulo englobando cidades de importância até hoje como Campinas e Itu. Ao mesmo tempo, é em fins do séc. XIX que surge a iluminação pública, parques, cafés,  as melhorias da edilidade com a construção de viadutos, o melhoramento do caminho do mar facilitando as comunicações com o porto de Santos, o bonde elétrico que percorre bairros já então em consolidação como Santa Efigênia,  Brás e Luz. 

Em São Paulo o movimento abolicionista teve largo alcance, contando com o entusiasmado apoio da mocidade acadêmica da Faculdade de Direito e expoentes como Castro Alves e Luiz Gama. O mesmo pode se dizer do movimento republicano com a sua famosa Convenção de Itu de 1870. 

Mas certamente a base material que poderá explicar o grande desenvolvimento e protagonismo de São Paulo dentro da nação foi a iniciativa de vanguarda de atrair imigrantes estrangeiros para o trabalho livre em face das paulatinas leis da abolição do tráfico (1850) à abolição da escravatura (1888). Principalmente a partir de 1870 foram milhares e depois dezenas de milhares de imigrantes, na maioria italianos, alemães, espanhóis e portuguesas, que se direcionavam às lavouras de café. Naquele primeiro momento o café vivia um momento de alta valorização no mercado mundial possibilitando a acumulação de capital e o desenvolvimento da indústria que foi igualmente pioneira em São Paulo.  Após relativa desvalorização em fins do XIX a conhecida convenção de Taubaté buscou restaurar o valor do produto no mercado.

Gostaríamos que os nossos amigos pichadores do Monumento do Ipiranga ou da Igreja da Sé tivessem contato com a história da cidade de São Paulo principalmente para entenderem que o esquecimento e a aniquilação da memória (que se dá com a danificação dos monumentos) pavimentam a repetição das mesmas arbitrariedades que julgam estarem combatendo.
      
(*) Imagem - Bandeirantes combatendo índios botocudos no interior de São Paulo - 1827

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