“A Abolição do Comércio de Escravos No Brasil” Parte II – Leslie Bethell
Françoise Biard - Abolição da Escravidão nas Colônias Francesas em 1849
Resenha Livro - “A Abolição do Comércio de Escravos No
Brasil” Parte II – Leslie Bethell –
Coleção Biblioteca Básica Brasileira – Senado Federal
Este estudo do pesquisador britânico Leslie Bethell
exigiu-nos a divisão da resenha em duas partes. A primeira aborda questões mais
gerais do problema do comércio de escravos, as razões de fundo sócio-econômicos
que levaram a Grã-Bretanha a abolir o tráfico entre suas próprias colônias ocidentais
(1807) e a divisão em que estava a classes proprietária brasileira quanto ao
tema. (Ver: http://esperandopaulo.blogspot.com/2019/02/a-abolicao-do-comercio-brasileiro-de.html
)
Nesta segunda parte discutiremos os aspectos de direito
interno e internacional que implicaram gradualmente na contenção e extinção
daquele comércio, as lutas políticas e as intervenções militares que culminaram
na promulgação da lei Eusébio de Queirós em setembro de 1850 com a extinção
efetiva do comércio negreiro no Brasil, sob a ameaça da força naval britânica de
um lado e o risco da reação nacionalista brasileira que desde décadas observava
de forma passiva a arbitrariedade inglesa intervindo em águas territoriais
brasileiras. A Inglaterra chegou mesmo a tratar, conforme interpretação
unilateral do tratado anglo-brasileiro de 1826, embarcações suspeita do
comércio proibido como navios piratas, sujeitando súditos brasileiros aos
tribunais ingleses e à busca e apreensão de navios em águas territoriais, rios
e portos do Brasil.
“Esse influxo sem precedentes de mais de 175.000 escravos
num período de três anos antes da abolição final (1831) despertou, numa forma
mais extremada, uma emoção que sempre estivera presente no Brasil, ainda que,
em geral, de forma latente: o medo da africanização. Num país em que os
escravos negros formavam uma proporção tão grande da população total, o
argumento de que a continuada importação maciça de africanos degradava e
barbarizava um país já atrasado e – como os escravos eram os inimigos naturais
dos seus senhores – constituía uma ameaça sempre crescente para a segurança
interna e a dominação branca era muito mais efetiva do que os argumentos
abolicionistas convencionais sobre a imoralidade do comércio de escravos ou a
superioridade do trabalho livre e das máquinas sobre a mão de obra escrava”.
Em que pese à existência de um movimento abolicionista tanto
na Inglaterra quanto no Brasil, neste último caso ainda muito incipiente, a
divisão da classe dirigente quanto ao problema do tráfico dizia respeito muito
menos às razões humanitárias do que aos interesses de curto, médio e longo
prazo dos países envolvidos. Havia setores que bem lembravam a insurreição de
escravos de São Domingos do Haiti
(1791) e mesmo da revolta dos malês na
Bahia (1835) como sinais dos grandes riscos por que passava o Brasil face à
entrada anual de dezenas de milhares de negros de África, especialmente desde
os portos da Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.
Além disso, já desde as primeiras décadas do século XIX era
perceptível à classe dominante brasileira que o comércio de escravos estavam
com os dias contados. A Grã-Bretanha entabularia tratados com Portugal, Espanha
e posteriormente com os EUA para o combate do comércio. Navios de busca
britânicos atuavam constantemente nas costas da África e América e tribunais
mistos anglo-brasileiros e anglo-portugueses agiam condenando as embarcações,
destruindo-as ou incorporando-as à frota naval inglesa e, eventualmente,
liberando os escravos que sobreviviam ante os meses que iam da captura das
embarcações às decisões finais dos tribunais. Os ingleses buscavam sempre levar
as embarcações capturadas ao tribunal misto de Serra Leoa: não se deve
negligenciar as dificuldades àquela época de manter um tribunal marítimo em
terras africanas onde grassam a malária e a febre amarela. De outro lado, a
regra sempre era que nos tribunais mistos, o voto brasileiro tendia à
absolvição e o voto britânico tendia à condenação. Ocorre que por dificuldades
tanto políticas quanto logísticas os brasileiros na maior parte das vezes não
conseguiam manter seu representante no tribunal misto de Serra Leoa facilitando
a condenação.
De outro lado havia os interesses diretos dos proprietários
rurais que tinham hegemonia nas câmaras municipais e nos juízos locais.
Invariavelmente quando barcos suspeitos de tráfico eram remetidos aos juízos
municipais os mesmos eram absolvidos e não há razões para duvidar que muito do comércio
ilegal sobreviveu ante o suborno e a propina.
O comércio de tráficos no Brasil foi abolido formalmente
através de uma lei interna em 1831. Estabeleceu-se um prazo de 3 anos para que
o país se preparasse para obter sua mão de obra através de outros meios.
Imigrantes e colonos de fato começaram a aparecer no Brasil tendo como
movimento pioneiro a criação da Fazenda Angélica do senador Vergueiro
(1840-50). Mas ainda eram iniciativas muito limitadas, longe de atender à
demanda de um país todo ele apoiado na produção rural em larga escala voltada
ao comércio externo mediante o trabalho escravo. De qualquer forma, nestes três
anos o número de escravos introduzidos no país aumentou espantosamente, e, após
alguma vacilação nos anos posteriores à proibição, o comércio, agora ilegal,
voltou a subir. Em 1840 entraram no Brasil provavelmente 30.000 escravos.
Durante a década de 1940 o número só aumentou culminando em 60.000 em 1848
para, após a lei Eusébio de Queiróz, reduzir-se para 3.287, extinguindo-se o
tráficos cerca de 2 ou 3 anos depois. Certamente a lei foi fruto de uma
situação de impasse criado pelos artifícios com que os contrabantistas burlavam
o cerco sobre o comércio e o crescente endurecimento inglês.
Começou na Grã-Bretanha a fazer-se sentir opiniões em
jornais e no parlamento colocando-se contra a estratégia de força imposta pela
marinha inglesa no combate ao tráfico: além do policiamento do atlântico
revelar-se custoso, a intervenção britânica causou mais de uma vez conflitos
com um país que tinha desde a sua independência ou mesmo antes quando da
abertura dos portos em 1808 uma relação comercial privilegiada com os ingleses.
Estas críticas contra o sistema britânico tiveram na prática um resultado
inverso: para garantir o abolição do comércio, diante da renitência do Brasil
adotar um novo tratado que substituísse o pacto de 1826 fazia-se necessário um
endurecimento ainda maior. A cláusula de equipamento que persistia ao menos
formalmente fora dos tratados permitia que os navios que carregassem qualquer
equipagem relacionada ao comércio de escravos poderia ser condenado. A cláusula
de direito de busca que na verdade já vinha estabelecida no tratado de 1817
(incorporado pelo Brasil independente) também deveria ser ampliada,
principalmente diante da bandeira americana que não permitia a intervenção sumária
de busca e apreensão dos navios ingleses. De qualquer forma, em 1850 foi o
recrudescimento da pressão militar britânica que compeliu o Brasil a adotar uma
lei efetiva contra o comércio.
Se o Brasil não agisse imediatamente, poderia
ver a sua soberania nacional e independência flagrantemente violados.
Por outro
lado, uma guerra com a Inglaterra naquele momento era duplamente arriscado: não só face ao poderio militar inglês mas devido aos eventos envolvendo o ditador Rosas. A Guerra do Prata também envolveu risco a soberania do Brasil
na região meridional e no conflito que envolveu Brasil, Argentina e Uruguai, o
apoio naval inglês era imprescindível.
Durante o primeiro trimestre de 1851, só foram
reportados dois desembarques de escravos bem sucedidos ao longo de toda a costa
do Brasil, do Pará ao Rio Grande do Sul: um no Rio de janeiro e outro em
Pernambuco. Com a abolição o preço dos escravos no país aumentou
substancialmente de modo que os fazendeiros do sudeste, desde o Rio de Janeiro e
São Paulo, passaram a adquirir escravos das antigas regiões associadas ao
comércio de açúcar, agora já em decadência. Todavia, a próxima medida no sentido
de se assegurar a liberdade do negro só ocorreria com a Lei do Vente Livre
(1871), a Lei dos Sexagenários (1885) e a abolição total dos escravos no ano de
1888, quase 40 anos após a lei Eusébio de Queiróz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário