“A
Abolição do Comércio Brasileiro de Escravos” – Leslie Bethell
Resenha
Livro – “A Abolição do Comércio Brasileiro de Escravos: a Grã-Bretanha, o
Brasil e a Questão do Comércio de Escravos – 1807 - 1869” – Leslie Bethell –
Coleção Biblioteca Básica Brasileira – Senado Federal
“É
impossível calcular com qualquer grau de precisão a população total do Brasil
em 1800 ou a sua composição racial ou a proporção entre pessoas livres e
escravos. Entretanto, uma estimativa razoável da população (excluídos os
indígenas não convertidos, em número, talvez, de uns 800.000) pareceria
situar-se entre 2 e 2,5 milhões. Dois terços, talvez três quartos, da população
era de cor e entre um terço e metade eram escravos. Nas áreas de maior
concentração – Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro – os escravos
eram maioria”.
O
problema da escravidão assumiu no processo de evolução histórica brasileiro um
caráter específico, sui generis, que diz respeito à importância do braço
escravos durante 300 anos de colonização diante de um economia baseada na monocultura
para exportação de produtos agrícolas altamente dependentes do mercado mundial.
Uma colônia e um império que se apoia sobre a produção do açúcar, do algodão, do
tabaco e a partir do século XIX e, em constante expansão, do café.
Os
negros trazidos da África advinham de colônias portuguesas: em sua maioria eram
angolanos, congoleses e moçambicanos. O comércio de escravos era dominado
principalmente por comerciantes portugueses e o trabalho bruto do escravo, seja
na agricultura seja na exploração das jazidas de ouro e diamantes a partir de
fins do XVII, teve importância decisiva para estabelecer recursos para as
finanças do estado, para ocupação territorial e a interiorização da própria
metrópole no país. A escravidão gerou não só a opulência da classe senhorial
mas uma acumulação que criaria condições para o desenvolvimento do comércio
externo e de um incipiente mercado consumidor.
No
Brasil colonial não eram só os grandes proprietários rurais que detinham a
posse de escravos: havia negros escravos servindo igrejas, mosteiros e
hospitais, sem contar o estado que contava com o braço escravo para a
construção de obras públicas e melhoramentos urbanos. Muitos trabalhavam para
viúvas e indivíduos nas cidades e eram alugados para a prestação de serviços esporádicos.
É certo que em diversos pontos do país predominou o trabalho escravo indígena
em termos parecidos com as encomendas espanholas: é o caso da capitania de São Vicente
e os estados meridionais. Mas maiores dificuldades houvera com a escravização
do índio, seja por sua inadaptação ao labor, seja pela intervenção dos inacianos
em constante conflito com colonos e bandeirantes, até a expulsão dos jesuítas do
Brasil no reinado de D. José (1759).
Estima-se
que ao longo do período que vai das primeiras décadas do XVI com o assentamento
dos primeiros colonos no país até a abolição da escravatura no Brasil em 1888
tenham sido trazidos ao Brasil algo em torno de 3 milhões de escravos. Nosso
país foi o último país das Américas a abolir a escravidão em 1888, dois anos
após Cuba e trinta e cinco anos depois da Argentina.
Este
estudo de Leslie Bethell retrata um capítulo desta história, qual seja, a luta
política e diplomática pela abolição do comércio de escravos no Atlântico, luta
tendo como protagonista a Grã-Bretanha que, ainda em 1807, determinou a
proibição aos súditos ingleses de comercializar escravos. Não obstante a
iniciativa inglesa de abolir aquele comércio, seria necessária uma mobilização
diplomática e mesmo militar para sustar o comércio de escravos em todo o mundo.
A leitura atenta deste livro revela como os sentimentos abolicionistas que
certamente moveu alguns súditos ingleses de boa fé, inclusive através da
criação de diferentes associações abolicionistas, não pode, todavia, imputar à
iniciativa britânica razões essencialmente
humanitárias para abolição.
Como
se sabe a Inglaterra foi o berço da Revolução Industrial (1760-1860), do
desenvolvimento da produção em escala industrial, e, o mais importante, da
substituição do trabalho artesanal pelo trabalho assalariado com a utilização
de máquinas. Era interesse da maior potência econômica do período o fim do
protecionismo econômico que informavam o pacto colonial de até então. Era
igualmente do interessa da Inglaterra a abolição da escravatura como forma de
se criar as condições para o desenvolvimento de mercados consumidores das
mercadorias inglesas. Ademais, a Inglaterra mantinha interesses em expandir seu
comércio no continente africano: qual seja, a abertura da África para a
agricultura, para a colonização e para o comércio, sob a direção inglesa. Em
fins do séc. XIX a estas cogitações mais imediatas somariam ideias de tipo
nitidamente racista que delegam ao homem branco colonizador o “fardo da
civilização”: o imperialismo inglês em África e Ásia seria justificado também por
bases ideológicas racistas, de superioridade racial, o que mais uma vez
contrasta com as vozes minoritárias que buscaram abolir o comércio de escravos
ou a própria escravidão pela injustiça inerente deste modo de produção.
Quanto
aos interesses dos britânicos na África, válido citar passagem de uma carta de
Lord Palmerston (ministro de Negócios Estrangeiros) de outubro de 1838:
“Queremos
vender nossas mercadorias à África e as mandamos para lá. Os africanos que
quiserem comprar nos pagarão o que desejarmos. Se insistirmos em termos
escravos, eles produzirão escravos. Se...pudermos evitar que europeus tragam
escravos da África, converteremos o comércio numa troca de mercadorias”.
A
constituição de sujeitos de direito que viabilize as condições da compra e
venda da força de trabalho assalariada é um imperativo oriundo da nova etapa
industrial do capitalismo, etapa da qual a Inglaterra e França exercem um papel
de vanguarda: a revolução industrial e a revolução francesa se enlaçam como
movimentos que sujeitam a política mundial a mudanças decisivas, a começar pelo
problema da escravidão.
É
interessante observar nesta pesquisa extremamente bem documentada dos
movimentos diplomáticos envolvendo as nações interessadas como as elites
brasileiras estavam bastante divididas quanto ao tema. O tráfico implicava no
despejo de dezenas de milhares de africanos anualmente no país, especialmente
nos portos de Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Uma população de maioria
escrava poderia engendrar uma insurreição de escravos negros ao estilo da rebelião
de São Domingos no Haiti (1791). A revolta dos malês na Bahia em 1835 incrementou
os receios e as hesitações de setores mais sensíveis aos inconvenientes da
abolição.
Há
inclusive uma obra do nosso primeiro grande romancista, Joaquim Manoel Macedo,
denominado “Vítimas Algozes” (1869). O livro retrata de certa forma este receio
de setores da classe proprietária na perpetuação da escravidão dado os seus inconvenientes:
o maior deles, aparentemente, dizia respeito aos interesses econômicos dos
proprietários considerando a baixa produtividade do trabalho escravo, a
sabotagem deliberada na execução das tarefas, a negligencia e falta de cuidados
no labor, a destruição das ferramentas e meios de produção, para não dizer dos
movimentos de insubordinação que poderiam levar até ao assassinato do
latifundiário e sua família, o envenenamento e a destruição das fazendas.
Mas
as forças da inércia, representada especialmente por conservadores como
Bernardo Pereira de Vasconcelos, acabavam tendo, paradoxalmente, um
posicionamento objetivamente mais nacionalista e contestatório: durante a
vigência dos tratados de 1815, 1817 e 1826, a Inglaterra manobrou no sentido de
incrementar a repressão, violando normas do direito internacional, atuando
sobre águas territoriais brasileiras, ocupando mesmo rios e portos do território
nacional em busca de navios suspeitos de tráfico. Além disso, há uma
interpretação unilateral do preambulo do tratado de 1826 pelos ingleses
tratando os navios de comércio de escravos como piratas. A consequência aqui é
que navios piratas não seriam levados aos tribunais mistos anglo-brasileiros de
Serra Leoa ou Rio de Janeiro, mas aos tribunais marítimos britânicos, que
passavam a ter jurisdição sobre súditos brasileiros. Foi em torno da pressão
diplomática inglesa que se engendrou um sentimento nacionalista de setores mais
conservadores da política nacional, diretamente vinculado aos tradicionais
proprietários rurais, protestando contra a arbitrariedade inglesa. Escaramuças
entre populares e marujos ingleses ocorreram de forma reiterada neste período
entre 1815-1850.
Pelo
menos desde a década de 1830 não se encontra uma defesa aberta do comércio de
escravos pelo Atlântico. São cada vez mais raras as vozes que defendem o
instituto da escravidão. O que se coloca é a necessidade de um prazo, maior ou
menor, de transição entre o trabalho escravo e o trabalho livre.
A
classe dirigente brasileira manobrou sentindo que a abolição tanto do comércio
quanto do instituto da escravidão eram uma questão de tempo. Era necessário
estabelecer um equilíbrio entre forças sociais diferentes, do proprietário
rural ao comerciante, dos livre-cambistas aos defensores do protecionismo, dos
gabinetes liberais (mais tendentes a posições abolicionistas) aos gabinetes conservadores
(que corroboraram para o aumento dos conflitos com a Grã-Bretanha). Era
necessário pensar em formas alterativas para suprir as fazendas de mão de obra
através do trabalho de colonos, o que só seria realizado com êxito a partir de
1870.
Nesta
primeira parte da resenha procuramos fazer um mapeamento geral dos temas
abordados neste livro de Leslie Bethell. Numa segunda parte trataremos dos
tratados de 1815, 1817, 1826 e da lei de 1831 que proibiu os súditos
brasileiros de participarem do comércio de escravos, culminando na extinção do
tráfico em 1850 com a Lei Eusébio de Queiróz.
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