segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

“A Abolição do Comércio Brasileiro de Escravos” – Leslie Bethell


“A Abolição do Comércio Brasileiro de Escravos” – Leslie Bethell

                                                    Navio Negreiro - Rugendas - 1830


Resenha Livro – “A Abolição do Comércio Brasileiro de Escravos: a Grã-Bretanha, o Brasil e a Questão do Comércio de Escravos – 1807 - 1869” – Leslie Bethell – Coleção Biblioteca Básica Brasileira – Senado Federal

“É impossível calcular com qualquer grau de precisão a população total do Brasil em 1800 ou a sua composição racial ou a proporção entre pessoas livres e escravos. Entretanto, uma estimativa razoável da população (excluídos os indígenas não convertidos, em número, talvez, de uns 800.000) pareceria situar-se entre 2 e 2,5 milhões. Dois terços, talvez três quartos, da população era de cor e entre um terço e metade eram escravos. Nas áreas de maior concentração – Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro – os escravos eram maioria”.

O problema da escravidão assumiu no processo de evolução histórica brasileiro um caráter específico, sui generis, que diz respeito à importância do braço escravos durante 300 anos de colonização diante de um economia baseada na monocultura para exportação de produtos agrícolas altamente dependentes do mercado mundial. Uma colônia e um império que se apoia sobre a produção do açúcar, do algodão, do tabaco e a partir do século XIX e, em constante expansão, do café. 

Os negros trazidos da África advinham de colônias portuguesas: em sua maioria eram angolanos, congoleses e moçambicanos. O comércio de escravos era dominado principalmente por comerciantes portugueses e o trabalho bruto do escravo, seja na agricultura seja na exploração das jazidas de ouro e diamantes a partir de fins do XVII, teve importância decisiva para estabelecer recursos para as finanças do estado, para ocupação territorial e a interiorização da própria metrópole no país. A escravidão gerou não só a opulência da classe senhorial mas uma acumulação que criaria condições para o desenvolvimento do comércio externo e de um incipiente mercado consumidor.

No Brasil colonial não eram só os grandes proprietários rurais que detinham a posse de escravos: havia negros escravos servindo igrejas, mosteiros e hospitais, sem contar o estado que contava com o braço escravo para a construção de obras públicas e melhoramentos urbanos. Muitos trabalhavam para viúvas e indivíduos nas cidades e eram alugados para a prestação de serviços esporádicos. É certo que em diversos pontos do país predominou o trabalho escravo indígena em termos parecidos com as encomendas espanholas: é o caso da capitania de São Vicente e os estados meridionais. Mas maiores dificuldades houvera com a escravização do índio, seja por sua inadaptação ao labor, seja pela intervenção dos inacianos em constante conflito com colonos e bandeirantes, até a expulsão dos jesuítas do Brasil no reinado de D. José (1759).

Estima-se que ao longo do período que vai das primeiras décadas do XVI com o assentamento dos primeiros colonos no país até a abolição da escravatura no Brasil em 1888 tenham sido trazidos ao Brasil algo em torno de 3 milhões de escravos. Nosso país foi o último país das Américas a abolir a escravidão em 1888, dois anos após Cuba e trinta e cinco anos depois da Argentina.

Este estudo de Leslie Bethell retrata um capítulo desta história, qual seja, a luta política e diplomática pela abolição do comércio de escravos no Atlântico, luta tendo como protagonista a Grã-Bretanha que, ainda em 1807, determinou a proibição aos súditos ingleses de comercializar escravos. Não obstante a iniciativa inglesa de abolir aquele comércio, seria necessária uma mobilização diplomática e mesmo militar para sustar o comércio de escravos em todo o mundo. A leitura atenta deste livro revela como os sentimentos abolicionistas que certamente moveu alguns súditos ingleses de boa fé, inclusive através da criação de diferentes associações abolicionistas, não pode, todavia, imputar à iniciativa britânica razões  essencialmente humanitárias para abolição.

Como se sabe a Inglaterra foi o berço da Revolução Industrial (1760-1860), do desenvolvimento da produção em escala industrial, e, o mais importante, da substituição do trabalho artesanal pelo trabalho assalariado com a utilização de máquinas. Era interesse da maior potência econômica do período o fim do protecionismo econômico que informavam o pacto colonial de até então. Era igualmente do interessa da Inglaterra a abolição da escravatura como forma de se criar as condições para o desenvolvimento de mercados consumidores das mercadorias inglesas. Ademais, a Inglaterra mantinha interesses em expandir seu comércio no continente africano: qual seja, a abertura da África para a agricultura, para a colonização e para o comércio, sob a direção inglesa. Em fins do séc. XIX a estas cogitações mais imediatas somariam ideias de tipo nitidamente racista que delegam ao homem branco colonizador o “fardo da civilização”: o imperialismo inglês em África e Ásia seria justificado também por bases ideológicas racistas, de superioridade racial, o que mais uma vez contrasta com as vozes minoritárias que buscaram abolir o comércio de escravos ou a própria escravidão pela injustiça inerente deste modo de produção.

Quanto aos interesses dos britânicos na África, válido citar passagem de uma carta de Lord Palmerston (ministro de Negócios Estrangeiros) de outubro de 1838:

“Queremos vender nossas mercadorias à África e as mandamos para lá. Os africanos que quiserem comprar nos pagarão o que desejarmos. Se insistirmos em termos escravos, eles produzirão escravos. Se...pudermos evitar que europeus tragam escravos da África, converteremos o comércio numa troca de mercadorias”.

A constituição de sujeitos de direito que viabilize as condições da compra e venda da força de trabalho assalariada é um imperativo oriundo da nova etapa industrial do capitalismo, etapa da qual a Inglaterra e França exercem um papel de vanguarda: a revolução industrial e a revolução francesa se enlaçam como movimentos que sujeitam a política mundial a mudanças decisivas, a começar pelo problema da escravidão.

É interessante observar nesta pesquisa extremamente bem documentada dos movimentos diplomáticos envolvendo as nações interessadas como as elites brasileiras estavam bastante divididas quanto ao tema. O tráfico implicava no despejo de dezenas de milhares de africanos anualmente no país, especialmente nos portos de Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Uma população de maioria escrava poderia engendrar uma insurreição de escravos negros ao estilo da rebelião de São Domingos no Haiti (1791). A revolta dos malês na Bahia em 1835 incrementou os receios e as hesitações de setores mais sensíveis aos inconvenientes da abolição.

Há inclusive uma obra do nosso primeiro grande romancista, Joaquim Manoel Macedo, denominado “Vítimas Algozes” (1869). O livro retrata de certa forma este receio de setores da classe proprietária na perpetuação da escravidão dado os seus inconvenientes: o maior deles, aparentemente, dizia respeito aos interesses econômicos dos proprietários considerando a baixa produtividade do trabalho escravo, a sabotagem deliberada na execução das tarefas, a negligencia e falta de cuidados no labor, a destruição das ferramentas e meios de produção, para não dizer dos movimentos de insubordinação que poderiam levar até ao assassinato do latifundiário e sua família, o envenenamento e a destruição das fazendas.

Mas as forças da inércia, representada especialmente por conservadores como Bernardo Pereira de Vasconcelos, acabavam tendo, paradoxalmente, um posicionamento objetivamente mais nacionalista e contestatório: durante a vigência dos tratados de 1815, 1817 e 1826, a Inglaterra manobrou no sentido de incrementar a repressão, violando normas do direito internacional, atuando sobre águas territoriais brasileiras, ocupando mesmo rios e portos do território nacional em busca de navios suspeitos de tráfico. Além disso, há uma interpretação unilateral do preambulo do tratado de 1826 pelos ingleses tratando os navios de comércio de escravos como piratas. A consequência aqui é que navios piratas não seriam levados aos tribunais mistos anglo-brasileiros de Serra Leoa ou Rio de Janeiro, mas aos tribunais marítimos britânicos, que passavam a ter jurisdição sobre súditos brasileiros. Foi em torno da pressão diplomática inglesa que se engendrou um sentimento nacionalista de setores mais conservadores da política nacional, diretamente vinculado aos tradicionais proprietários rurais, protestando contra a arbitrariedade inglesa. Escaramuças entre populares e marujos ingleses ocorreram de forma reiterada neste período entre 1815-1850.

Pelo menos desde a década de 1830 não se encontra uma defesa aberta do comércio de escravos pelo Atlântico. São cada vez mais raras as vozes que defendem o instituto da escravidão. O que se coloca é a necessidade de um prazo, maior ou menor, de transição entre o trabalho escravo e o trabalho livre.

A classe dirigente brasileira manobrou sentindo que a abolição tanto do comércio quanto do instituto da escravidão eram uma questão de tempo. Era necessário estabelecer um equilíbrio entre forças sociais diferentes, do proprietário rural ao comerciante, dos livre-cambistas aos defensores do protecionismo, dos gabinetes liberais (mais tendentes a posições abolicionistas) aos gabinetes conservadores (que corroboraram para o aumento dos conflitos com a Grã-Bretanha). Era necessário pensar em formas alterativas para suprir as fazendas de mão de obra através do trabalho de colonos, o que só seria realizado com êxito a partir de 1870.  

Nesta primeira parte da resenha procuramos fazer um mapeamento geral dos temas abordados neste livro de Leslie Bethell. Numa segunda parte trataremos dos tratados de 1815, 1817, 1826 e da lei de 1831 que proibiu os súditos brasileiros de participarem do comércio de escravos, culminando na extinção do tráfico em 1850 com a Lei Eusébio de Queiróz.     

Nenhum comentário:

Postar um comentário