“Na Capitania de São Vicente” –
Washington Luiz
Resenha livro - “Na Capitania de São
Vicente” – Washington Luiz – Edições do Senado Federal Volume 24 – Brasília –
2004
Washington Luiz deverá ser
primeiramente lembrado como o último presidente da chamada República Velha
(1889-1930). Era chefe da nação quando da crise econômica de 1929 e foi no
contexto de sua transição e da crise da chamada política do café com leite que
se engendrou o movimento revolucionário vitorioso de 1930 dirigido por Getúlio
Vargas e sua Aliança Liberal. O que porém poucos devem saber é que o presidente
autor da famosa frase “governar é abrir estradas” foi também um profícuo historiador,
particularmente das coisas paulistas.
Washington Luiz formou-se em Direito
na Faculdade do Largo de São Francisco e desde os arquivos de São Paulo
trabalhou nos primeiros anos do séc. XX pesquisando o passado colonial da
cidade bandeirante, escrevendo partes de suas pesquisas no Jornal do Comércio e
na revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro da qual foi colaborador.
Ao assumir os cargos de prefeito e
presidente do estado de São Paulo teve de se ocupar menos dos estudos da
história. Contudo, deve-se ao ex-presidente a expansão do conhecimento do nosso
passado com a publicação de documentos por meio do Arquivo do Estado – são as
fontes do historiador que dizem respeito a testamentos, inventários, missivas e
atas da Câmara Paulista. Há muitas
lacunas nesta documentação, há papeis ilegíveis e comidos pelas traças. Na São
Paulo colonial onde a educação é reduzida a alguns agrupamentos jesuíticos com
o analfabetismo reinante, a redação dos escrivãos é dificilmente legível pelo
historiador de hoje.
Este trabalho foi publicado em 1956:
após o exílio do Brasil diante da revolução de 1930, Washington Luiz esteve em
Portugal durante alguns anos onde pôde complementar suas pesquisas acerca do
passado paulista em Coimbra. Este ensaio trata da capitania de São Vicente
durante os 1500 e 1600, quando se estabelece nas vilas de São Vicente, de
Santos, de Santo André e de São Paulo pequenas povoações cercadas por todos os
lados de índios bravios, de corsários ingleses e franceses. É reinante a pobreza
material e cultural que grassava mesmo
dentre os elementos nobres da população.
São Paulo estando a 70 km do litoral
e a 750 metros de altitude em relação ao mar seria oficialmente fundada em
janeiro de 1554, pouco após a expedição demarcatória de Martim Afonso de Souza
(1530), da distribuição das terras do Brasil para capitães e donatários
e a divisão do território brasileiro em capitanias hereditárias (1532).
Considerando as dificuldades de
acesso e comunicação ao planalto de Piratininga, era extremamente difícil a
autoridade real impor sua política: apenas um navio por ano fazia o trajeto de
São Vicente à metrópole. Diante das notícias de ouro descobertos nos
territórios espanhóis, os reis de Portugal a começar por D. João III buscaram
estabelecer na medida do possível a ocupação territorial do Brasil, a defesa de
suas fronteiras diante de franceses, ingleses e corsários e a busca através de
entradas do ouro, da prata e da mão de obra escrava indígena, esta última
predominante na capitania de São Vicente.
Foi justamente a busca pelo ouro e
por escravos gentios que motivaram as bandeiras que estenderam o conhecimento
dos territórios e criavam arraias e povoações desde o litoral até o interior
por Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais. Ainda nos anos de 1600, quando apenas
algumas faíscas de ouro haviam sido descobertas no Jaraguá em São Paulo há
notícias de bandeiras paulistas que atingem o São Francisco onde se relata a existência
da prata. A existência das riquezas minerais esteve presente durante todo o
período em exame incentivando a vinda de todo tipo de aventureiros. Os
bandeirantes então chamados de sertanistas mobilizavam o povo, formavam tropas de
índios aliados como os tupis (dos quais fizeram parte Tibiraçá e o português João
Ramalho que, não se sabe se degredado ou fugitivo de navio, foi dos primeiros
elementos brancos a se estabelecer no planalto paulista, casando-se com a filha
do chefe indígena e pavimentando a articulação entre colonizadores e os
índios). Declarava-se a guerra justa contra índios carijós e tupinambás (estes
frequentemente aliados dos franceses).
Há aqui a necessidade de um
parênteses. Uma certa orientação de tipo culturalista tem entrado em voga na análise
da história brasileira ressaltando o protagonismo do índio enquanto elemento
constitutivo da sociedade colonial – e isto é até certo ponto correto,
considerando desde os primeiros escambos entre navegadores e índios antes do
esforço de ocupação do território brasileiro com as capitanias hereditárias e o
governo geral; também é exato diante da incorporação do índio ao mundo de tipo
medieval que informa a visão social de mundo portuguesa especialmente com a
intervenção dos jesuítas. Sabe-se que os índios eram decisivos nas entradas,
conhecedores que eram dos afluentes dos rios e dos melhores meios de transporte
pelo interior. Mas estes dados não devem nos fazer perder de vista que os
índios brasileiros ainda se constituíam nos primeiros anos da colônia em
situação de barbárie: a antropofagia era uma prática disseminada e não foram
poucos aventureiros do sertão que terminaram digeridos por tribos que eram do
tipo nômade, sem o desenvolvimento sequer da agricultura, vivendo da pesca e da
caça, e bebendo o cauim, a bebida alcoólica fermentada da mandioca que dava naturalmente.
Consta inclusive que estas práticas de canibalismo não eram exatamente uma
forma de vingança diante de um rival em guerra. A carne humana era apreciada
pelos índios, o ritual de antropofagia envolvia toda a tribo quando as mulheres
anciãs eram responsáveis pela retirada das tripas e a divisão da caça ao grupo.
Como uma matilha de lobos, portanto.
De outra monta, esta vertente
culturalista alimenta uma versão da história segundo a qual os bandeirantes
seriam meros vilões que oprimiram os índios para impor sua cultura e seus
interesses sócio-econômicos. Mais uma vez aqui a versão dos fatos parece ser
parcial. As entradas não foram exatamente dirigidas pela alta aristocracia
portuguesa que comandava indiretamente a guerra justa desde posição
privilegiada, livre de riscos pessoais e pecuniários. Quem se mobilizava para
as entradas eram antes de tudo os mamelucos, filhos de índios com brancos e
habituados à condições de existência de extrema pobreza e penúria, sem saber
quando e o que irá comer, suscetível ao calor extremo, às chuvas e inundações
dos rios do planalto e aos ataques dos carijós, tupinambás e corsários. Há relatos de pessoa da terra que quando
instada a obedecer os ditames da Inquisição responde em tom de ameaça: “acabarei
com a inquisição a flechadas”. (pg. 124).
Isto significa dizer que as entradas
e a busca pelo ouro e gentio no sertão envolvia uma mobilização militar das
pessoas da terra (colonos mamelucos) e índios aliados – muitas das mobilizações
são mesmo defensivas e buscam socorrer povoados e arraiais atacados pelo
gentio. Com o ouro o mameluco busca mercês e títulos de nobreza. Com o ouro os
reis de Espanha e Portugal buscavam equiparar-se para a guerra.
“A obediência dos bandeirantes a
seus cabos não era imposta pela força ou em virtude de regras
pré-estabelecidas; mas aceita voluntariamente por todos como condição para o
bom êxito da empresa, na qual todos eram interessados, tendo em vista a
existência individual e a própria existência coletiva. Uma espécie desse
instinto coletivo que une todos, quando todos sentem que trabalham
perigosamente para o interesse comum.
Quando entravam pelo sertão, iam
armados de arcabuzes, escopetas, mosquetes, espadas, como armas ofensivas, as
melhores da época; e, como armas defensivas, iam com alcochoados de algodão,
com que se revestiam, úteis contra as setas indígenas que neles se amorteciam.
Os índios auxiliares só dispunham de arco e flechas e muitos deles só serviam
para transportar pequenas cargas, como ferramentas, e, talvez, alguns poucos
mantimentos para os primeiros dias. Levavam também grilhões para aprisionamento
do índio vencido”. (pg. 228).
Os índios assim estão associados aos
colonos através de uma relação de extermínio, escravidão e cruzamento. Uma
diferente ordem de interesses reside na relação do índio com o jesuíta que se
posiciona contra a escravidão e frequentemente se mobiliza para evitar as
entradas que se destinam não só à busca do ouro, mas à escravização dos
indígenas. Acerca dos jesuítas suas origens remontam a 1540:
“Os jesuítas faziam votos de
pobreza, de castidade e de obediência e se organizaram para defender e
revigorar a fé católica, então extremamente abalada pela reforma e robuster os
princípios cristãos por todos os meios honestos, com o desprendimento dos bens
terrestres e principalmente com o desprezo da vida. Organizou-se com um
Superior Geral – Inácio de Loyola – em Roma e com diversos provinciais nas
diferentes regiões do mundo”.
As transformações decisivas de São
Paulo que faria da capitania, posteriormente da província imperial e do estado republicano uma metrópole mundial
viriam muito depois. A descoberta do ouro e o ciclo mineiro na verdade
engendrou o esvaziamento da cidade e o encarecimento da vida. Foi com o
desenvolvimento do café a partir de meados do século XIX que a então província
viria a ter um novo papel protagonista. São Paulo foi pioneira na introdução da
mão de obra livre através de colonos italianos, alemães, espanhóis e
portugueses e o alto valor do café no mercado mundial garantiu a acumulação
capitalista para a industrialização, para instalação pioneira de ferrovias[1] e bondes,
para o desenvolvimento cultural com o importante papel da escola de direito no
Largo de São Francisco. Hoje o Estado de São Paulo tem um PIB maior do que o de
toda a Argentina[2],
é o estado mais industrializado do Brasil, com os maiores batalhões de
trabalhadores de todo o país. Estudar e compreender o desenvolvimento histórico
paulista bem como afastar alguns mitos pós-modernos que cercam a história
regional são tarefas essenciais para uma análise mais profícua da chamada
questão nacional.
Imagem - ANTIGO Pátio do
Colégio. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São
Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: .
Acesso em: 08 de Mar. 2019. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7
ISBN: 978-85-7979-060-7
[1] A São Paulo Railway
Company (SPR) foi a primeira ferrovia construída em São Paulo, e a segunda no
Brasil. Financiada com capital inglês, sua construção foi iniciada em 1860,
enfrentando muitas dificuldades técnicas durante a implantação, principalmente
no trecho da Serra do Mar.
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