sábado, 26 de janeiro de 2019

“O Alienista” – Machado de Assis


“O Alienista” – Machado de Assis



Resenha Livro - “O Alienista” – Machado de Assis – Clássicos Saraiva

O que dizer daquele que foi o mais memorável conto[1] do mais importante escritor da literatura brasileira? Como se explica que um escritor mulato, gago e epilético, nascido no morro do livramento, filho de mãe açoriana e pai pintor de paredes granjeou o e respeito e admiração de uma sociedade onde grassava ainda a escravidão ? Dadas estas circunstâncias, Machado de Assis se tornou em vida admirado e reconhecido como expoente das letras nacionais.

Como é exaustivamente lecionado na disciplina escolar de literatura, o itinerário por que transitou Machado de Assis envolveu duas etapas diferentes da história da literatura nacional: do romantismo em sua 3ª fase com romances de tipo urbano, descrevendo histórias de tipo sentimental e com a concretização dos enlaces amorosos e posteriormente o realismo, a partir do Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), em que se torna nítida uma proposta artística livre de velhas amarras da literatura então constituída, com a substituição da subjetividade pela objetividade, pela análise psicológica dos personagens, pelas proposições filosóficas que enveredam ora para o trágico ora para o cômico. O que pouco se fala, entretanto, é sobre as razões desta mudança ou poderíamos dizer do salto qualitativo entre o Machado de Assis de “A Mão e a Luva” (1874) e o de “Dom Casmurro “(1899) para ficarmos em dois exemplos.

Robert Schwarts interpreta tal mudança  como decorrente da situação social do próprio autor. O autor em seus primeiros romances teria escrito de forma mais comportada para atender ao gosto constituído então – uma literatura mais convencional que possibilitaria ao já talentoso e jovem Machado de Assis uma aceitação aos meios literários de então que, sob o romantismo, tinha em José de Alencar o seu maior expoente. Seria após a sua consolidação como escritor reconhecido que poderia lançar mão de sua inventividade, da experimentação quanto ao conteúdo e à forma dos seus trabalhos. Outros recorrem à biografia do escritor dizendo que a velhice e a saúde debilitada o teriam motivado ao desapego às normas literárias e aos compromissos públicos. Cita-se que o Bruxo do Cosme Velho teria passado por uma crise dos 40 anos que o teria levado a um maior pessimismo com relação ao homem. E, de fato, repercutindo uma certa visão social de mundo burguesa da qual Machado de Assis inequivocamente é tributário[2], as ações de seu personagens são reiteradamente motivadas ora pelo egoísmo, ora pela vaidade, implicando num certo ceticismo com relação às boas intenções supostamente desmotivada de interesses.

“O Alienista” foi publicado em 1882 e em pouco mais de 50 páginas relata não só a história do médico Simão Bacamarte como sugere reflexões que envolvem os limites da loucura e da razão, da relatividade entre o certo e o errado e dos limites da razão e da ciência para a descrição, mapeamento e compreensão do espírito humano. O livro é uma sátira das correntes cientificistas que tiveram enorme peso a partir de meados do XIX no Brasil e no mundo: o cientificismo evolucionista de Darwin, o determinismo racial de Spancer e o positivismo de August Comte. Por outro lado, quando “O Alienista” foi escrito Freud tinha nada menos do que 26 anos. Período anterior aos estudos da loucura em Foucault. O pensador francês chegou a conclusões que tem interessante paralelo com o conto: em Foucault a loucura é um fenômeno histórico e foi no contexto em que o estudo da loucura envolveu um caráter científico que surgiram os primeiros manicômios, tal como a Casa Verde de Bacamarte.

O protagonista da história é uma espécie de caricatura de sábio que, sob o manto do argumento da ciência, tinham uma pretensão de, através do método, deduzir a verdade de todas as coisas. Bacamarte foi filho da nobreza de Itaguaí, vila pacata do interior do Rio de Janeiro. Estudou medicina na Europa e era conhecido como o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Ao retornar de seus estudos foi convidado pelo rei a lecionar em Coimbra mas preferiu voltar à sua terra natal e se dedicar ao estudo dos loucos.

Bacamarte deduz seus estudos da experiência e assim consegue recursos oficiais para a construção de um manicômio em Itaguaí. Inicialmente, o médico entende ser o problema da loucura uma ilha. 

Posteriormente, define a loucura como um continente: sua definição da loucura diz respeito à situação em que o indivíduo não se encontra no mais perfeito equilíbrio mental. E assim, espreita e diligencia na vila a cata de loucos que são ora o vaidoso, ora o pródigo, ora o ambicioso – nesta toada interna a própria mulher ao constatar que a mesma passou algum tempo decidindo entre dois colares a serem usados num baile. É como se a análise detida e minuciosa do indivíduo na maioria das vezes revelasse alguma imperfeição que teria como conclusão a ideia de que todo mundo é...louco. Olhar o ser humano com uma lupa leva a conclusão de que todos tem um pouco de loucura. Nesta orientação, o médico irá recolher à Casa Verde a nada menos do que 4/5 da população engendrando uma rebelião na então pacata Itaguaí. Não prosseguiremos no relato da narrativa em observância aos leitores que desejam saborear este magnífico conto, ao mesmo tempo realista e fantástico, que, através do humor e do trágico, remete o leitor à compaixão de homens embaralhados em vícios e virtudes.




[1] Para alguns, novela.
[2] Machado de Assis se dizia monarquista, liberal e abolicionista.

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