Relíquias da Casa Velha V. II –
Machado de Assis
Resenha Livro – Relíquias da Casa
Velha V. II – Machado de Assis – Catania Editora
Machado de Assis nasceu durante o
período regencial no Morro do Livramento no Rio de Janeiro. Neto de escravos
alforriados, filho de um pai sapateiro e de uma mãe lavadeira, foi antes de
tudo um autodidata. Trabalhou como tipógrafo, passou ao jornalismo (consta que
cobria sessões do parlamento) e a produção literária propriamente dita. Teve um
destino diferente de um Lima Barreto, este último igualmente mulato e
talentoso, ambos vivendo numa sociedade onde grassava a cultura da escravidão, o
preconceito de cor, o bacharelismo e um ambiente de letrados bastante restrito,
de maneira geral associado ao compadrio e ao favorecimento pessoal em
detrimento do talento natural: porém Lima Barreto não obteve o reconhecimento
em vida pelos seus romances e contos, ao contrário de Machado de Assis. O Bruxo
do Cosme Velho foi inicialmente protegido de Manuel Antônio de Almeida, o autor
do “Memórias de um Sargento de Milícias”. Já antes trabalhava como tipógrafo na Imprensa
Nacional. A frequência na livraria do editor Paula Brito colocaria Machado de Assis
em maior proximidade com homens das letras: nascido no subúrbio, Machado de
Assis foi ascendendo socialmente no centro da corte.
Costuma-se, ao menos para fins
didáticos, dividir a obra de Machado de Assis em duas fases. Livros como “A Mão e a Luva”, “Ressurreição” e “Helena” ainda repercutem o romantismo vigente,
ainda que já em sua fase de transição. A chamada 3ª fase do romantismo tem como
característica um maior comprometimento da narrativa com a realidade,
principalmente quando comparada com as tramas fantásticas que informam o
romantismo byronista de Álvares de Azevedo. Esta fase final do romantismo
envolve uma literatura folhetinesca, associada ao periodismo e muito lido pelas
mulheres daquele tempo. Em Machado de Assis já se constata aqui uma literatura
superior, com a descrição de tipos sociais, algumas sondagens psicológicas e
tons de ironia. Insta salientar que o período que demarca este momento da
literatura envolvia mudanças importantes: o advento do abolicionismo e do
republicanismo são fatores que pressionam o movimento literário a ater-se aos
problemas suscitados pelo desenvolvimento histórico: Joaquim Manuel de Macedo
com seus “Vítimas Algozes” e os poemas de Castro Alves são dois exemplos deste
movimento. Outros de certa forma antecedem mesmo o regionalismo que seria
melhor desenvolvido muito depois, com os modernistas de segunda geração, como a
história de amor que se passa em Goiás descrita por Visconde de Taunay ou o
Garimpeiro descrevendo o interior mineiro em Berardo Guimarães.
Mas o salto de qualidade, a fase
propriamente madura de Machado de Assis adveio em 1881 com Memórias Póstumas de
Brás Cubas que inaugura o realismo literário no Brasil. A proposta de se narrar
uma história pelo olhar de um defunto autor, alguém morto e portanto desligado
de cogitações relacionadas à opinião alheia implicará numa narrativa tão franca
que importará revelar como desde um espelho as mais íntimas sensações e
pensamentos, colocando de maneira mais evidente os interesses pessoais, a vaidade,
o egoísmo e os gestos mesmo de solidariedade que são tomados como quem promove
um investimento pecuniário em troca de algum retorno. Como diria o próprio
Machado de Assis, frequentemente a verdade é um osso duro de roer e este
realismo não só nos serve hoje como fonte privilegiada para acesso aos usos e
costumes do passado mas para o acesso aos mais íntimos pendores da alma humana.
Este Relíquias de Casa Velha V.
II envolve contos que vão de 1875 a 1884. Ele contempla assim este período de
transição do Machado de Assis romântico ao Machado de Assis realista. Mas
talvez seja desnecessária estas classificações quando se observa que mesmo
antes do Memórias Póstumas de Brás Cubas, muitos dos contos já antecedem
algumas temáticas machadianas: o problema da loucura como descrita no
personagem Damasceno para quem a lua era uma ilusão, o problema do tempo, a
sorte, o azar e especialmente as circunstâncias que, através do acaso, levará
alguns ao sucesso e outros ao mais estrondoso fracasso. Ou então o tema da
morte: “a vida é transitória, a verdade reside na morte”.
Os tipos sociais descritos por
Machado de Assis dizem respeito predominantemente aos figurantes do ambiente
urbano: são moças, viúvas, desembargadores, bacharéis, amanuenses, fazendeiros,
estudantes. A vida de certa forma é decidida ao acaso, ao sabor de
circunstâncias incontroláveis, um pouco diferente do determinismo que
informaria os romances naturalistas posteriores: em Machado de Assis, a sorte
ou o azar, ou as circunstâncias e o acaso, e não o meio físico e social, são a provável
explicação para o desenlace das tramas. Em que pese este realismo machadiano
envolva uma certa percepção burguesa de mundo em que os sentimentos podem ser
friamente calculados como as relações mercantis, Machado de Assis não seria o
maior escritor da história da literatura brasileira se seus personagens fossem meramente
mesquinhos. Machado de Assis exprime os dilemas de consciência e não raro
faz-nos rir do que parece trágico engendrando compaixão e entendimento em face
de seus personagens eivados de contradições.
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