segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Relíquias da Casa Velha V. II – Machado de Assis


Relíquias da Casa Velha V. II – Machado de Assis



Resenha Livro – Relíquias da Casa Velha V. II – Machado de Assis – Catania Editora

Machado de Assis nasceu durante o período regencial no Morro do Livramento no Rio de Janeiro. Neto de escravos alforriados, filho de um pai sapateiro e de uma mãe lavadeira, foi antes de tudo um autodidata. Trabalhou como tipógrafo, passou ao jornalismo (consta que cobria sessões do parlamento) e a produção literária propriamente dita. Teve um destino diferente de um Lima Barreto, este último igualmente mulato e talentoso, ambos vivendo numa sociedade onde grassava a cultura da escravidão, o preconceito de cor, o bacharelismo e um ambiente de letrados bastante restrito, de maneira geral associado ao compadrio e ao favorecimento pessoal em detrimento do talento natural: porém Lima Barreto não obteve o reconhecimento em vida pelos seus romances e contos, ao contrário de Machado de Assis. O Bruxo do Cosme Velho foi inicialmente protegido de Manuel Antônio de Almeida, o autor do “Memórias de um Sargento de Milícias”.  Já antes trabalhava como tipógrafo na Imprensa Nacional. A frequência na livraria do editor Paula Brito colocaria Machado de Assis em maior proximidade com homens das letras: nascido no subúrbio, Machado de Assis foi ascendendo socialmente no centro da corte.

Costuma-se, ao menos para fins didáticos, dividir a obra de Machado de Assis em duas fases. Livros como “A Mão e a Luva”, “Ressurreição” e “Helena” ainda repercutem o romantismo vigente, ainda que já em sua fase de transição. A chamada 3ª fase do romantismo tem como característica um maior comprometimento da narrativa com a realidade, principalmente quando comparada com as tramas fantásticas que informam o romantismo byronista de Álvares de Azevedo. Esta fase final do romantismo envolve uma literatura folhetinesca, associada ao periodismo e muito lido pelas mulheres daquele tempo. Em Machado de Assis já se constata aqui uma literatura superior, com a descrição de tipos sociais, algumas sondagens psicológicas e tons de ironia. Insta salientar que o período que demarca este momento da literatura envolvia mudanças importantes: o advento do abolicionismo e do republicanismo são fatores que pressionam o movimento literário a ater-se aos problemas suscitados pelo desenvolvimento histórico: Joaquim Manuel de Macedo com seus “Vítimas Algozes” e os poemas de Castro Alves são dois exemplos deste movimento. Outros de certa forma antecedem mesmo o regionalismo que seria melhor desenvolvido muito depois, com os modernistas de segunda geração, como a história de amor que se passa em Goiás descrita por Visconde de Taunay ou o Garimpeiro descrevendo o interior mineiro em Berardo Guimarães.

Mas o salto de qualidade, a fase propriamente madura de Machado de Assis adveio em 1881 com Memórias Póstumas de Brás Cubas que inaugura o realismo literário no Brasil. A proposta de se narrar uma história pelo olhar de um defunto autor, alguém morto e portanto desligado de cogitações relacionadas à opinião alheia implicará numa narrativa tão franca que importará revelar como desde um espelho as mais íntimas sensações e pensamentos, colocando de maneira mais evidente os interesses pessoais, a vaidade, o egoísmo e os gestos mesmo de solidariedade que são tomados como quem promove um investimento pecuniário em troca de algum retorno. Como diria o próprio Machado de Assis, frequentemente a verdade é um osso duro de roer e este realismo não só nos serve hoje como fonte privilegiada para acesso aos usos e costumes do passado mas para o acesso aos mais íntimos pendores da alma humana.

Este Relíquias de Casa Velha V. II envolve contos que vão de 1875 a 1884. Ele contempla assim este período de transição do Machado de Assis romântico ao Machado de Assis realista. Mas talvez seja desnecessária estas classificações quando se observa que mesmo antes do Memórias Póstumas de Brás Cubas, muitos dos contos já antecedem algumas temáticas machadianas: o problema da loucura como descrita no personagem Damasceno para quem a lua era uma ilusão, o problema do tempo, a sorte, o azar e especialmente as circunstâncias que, através do acaso, levará alguns ao sucesso e outros ao mais estrondoso fracasso. Ou então o tema da morte: “a vida é transitória, a verdade reside na morte”.

Os tipos sociais descritos por Machado de Assis dizem respeito predominantemente aos figurantes do ambiente urbano: são moças, viúvas, desembargadores, bacharéis, amanuenses, fazendeiros, estudantes. A vida de certa forma é decidida ao acaso, ao sabor de circunstâncias incontroláveis, um pouco diferente do determinismo que informaria os romances naturalistas posteriores: em Machado de Assis, a sorte ou o azar, ou as circunstâncias e o acaso, e não o meio físico e social, são a provável explicação para o desenlace das tramas. Em que pese este realismo machadiano envolva uma certa percepção burguesa de mundo em que os sentimentos podem ser friamente calculados como as relações mercantis, Machado de Assis não seria o maior escritor da história da literatura brasileira se seus personagens fossem meramente mesquinhos. Machado de Assis exprime os dilemas de consciência e não raro faz-nos rir do que parece trágico engendrando compaixão e entendimento em face de seus personagens eivados de contradições.     

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