segunda-feira, 25 de junho de 2018


“Três Vezes Zumbi” – Jean França e Ricardo Ferreira



Resenha Livro – Três Vezes Zumbi: a construção de um herói brasileiro – Jean M. C. França e Ricardo A. Ferreira - Editora Três Estrelas

“Nenhuma categoria social lutou de forma veemente e consequente contra a escravidão que a dos próprios escravos. Nem por terem fracassado em seus esforços deixaram de condicionar em grau considerável o processo histórico brasileiro, em quase todos os seus aspectos mais importantes. No dia em que forem resgatadas da grande face oculta brasileira  - face mais ampla e importante que a visível e oficial – as revoltas escravas projetarão luz sobre um sem número de contradições históricas que de outro modo sempre permanecerão incompreensíveis. Na história das revoltas brasileiras, a de Palmares ocupa lugar ímpar. Não foi apenas a primeira, mas a de maior envergadura”. Décio Freitas in “Palmares: a Guerra dos Escravos”.

                
Este ensaio dos professores da UNESP Jean França e Ricado Ferreira não se propõe a ser mais uma biografia do Líder Zumbi ou um relato histórico do Quilombo dos Palmares. A proposta do trabalho é fazer uma síntese das diversas leituras e interpretações daquela insurreição e seu líder na história. Aqui reside o que há de mais interessante no ensaio: desde os cronistas, viajantes estrangeiros e homens de estado do Brasil colônia até as leituras mais contemporâneas daqueles eventos elaborando uma noção de resistência, de luta contra o elemento opressor Branco diante da barbárie da escravidão, até a construção do ícone de movimento negro, Zumbi.
                
Os autores identificam três grandes ondas que expressam diferentes noções acerca de Palmares. São diferentes visões sociais de mundo e contextos históricos que também vão se revelando conforme se observa como o Brasil colonial, o Brasil egresso da independência política em 1822 e as renovações dos estudos que se destacam a partir de Nina Rodrigues em fins do XIX e especialmente Edson Carneiro já em meados do século XX; como em cada período surgiu formas muito distintas envolvendo a figura de Zumbi e Palmares.

No período colonial a insurreição de Palmares era entendida como uma ameaça constituída à ordem vigente que se fundava no poderio quase incontrastável dos latifundiários. Sociedade construída à sombra da monocultura do açúcar, algodão e tabaco, sob a base do trabalho escravo. Como se sabe o Brasil colonial reduzia seu número de letrados a uma ínfima minoria: bacharéis e homens do estado que expressam o ponto de vista daquelas elites agrárias. Há paralelamente o relato dos jesuítas: os religiosos a princípio não se opõem a escravidão dos negros mas pretendem reformas no trato entre o senhor e seu escravo no sentido de sua adequação aos preceitos religiosos cristãos. Acerca da percepção dos colonos sobre a insurreição na Serra da Barriga:

“Ao longo dos Seiscentos e Setescentos, o quilombo despertou grande interesse e mereceu atenção de muitos letrados do período, holandeses e portugueses”. Pg.  149

O Palmares reconstruído por aqueles homens brancos e eventualmente ligados à administração da coroa se voltam aos contornos militares e administrativos do conflito.

“São extensas descrições da geografia da região, da configuração e disposição dos mocambos, estimativas sobre a população, notas sobre suas capacidades militares e, sobretudo, relatos de batalhas movidas contra os revoltosos”. Pg. 149

No séc. XIX com eventos bastante dinâmicos que envolvem a transferência da corte para o Brasil em 1808 e a nossa emancipação política ulterior, parece reduzir o interesse dos letrados de então pelos acontecimentos em Palmares. Quando se encontra menções, o grande Quilombo de Alagoas se mostra como um foco de barbárie, um empecilho ao desenvolvimento da civilização brasileira, nação que se constrói e identidade que deveria se forjar menos no negro e mais no elemento branco e indígena[1]. Certa literatura ufanista por outro lado ressalta os feitos do paulista Domingos Jorge Velho, bandeirante que alcançou a aniquilação de Palmares e foi erigido à condição de herói nacional.

Este mesmo Domingos Jorge Velho seria retratado na 3ª onda de interpretação não como um herói, mas como um cruel vilão, na verdade, um particular que à custa da destruição de palmares exige datas das terras então conquistas – alguém movido portando pela ambição de riquezas.  

Astrogildo Pereira, então secretário-geral do PC, lança as bases para uma primeira interpretação mais materialista do fenômeno histórico enxergando no quilombo manifestação de luta de classes, local de resistência em face dos poderes constituídos. Para os marxistas, Zumbi surge como um ícone dos oprimidos e com os movimentos identitários em fins dos anos 1980 como um símbolo da consciência negra[2]. Outro destaque dado pela mais recente historiografia revela o caráter multi-étnico de Palmares. Estudos arqueológicos que estão em curso revelam a presença de cerâmica  indígena, e mais de um historiador diz haverem no Quilombo não só negros, mas índios, mestiços e até brancos.

Uma questão a ser formulada aqui é: quais das distintas versões se aproximam da verdade, do que de fato ocorreu em Palmares e quem foi seu líder. Os documentos são bastante contraditórios nesse sentido. Para alguns, Zumbi é uma espécie de patente político militar e não um indivíduo em específico. Outros dizem que Zumbi advém da cultura Banto e tem caráter de divindade. Outros ao contrário dizem Zumbi significar diabo. Mais recentemente a historiografia passou a se referir de um lado a Ganga Zumba, primeiro “rei” de Palmares, e que, ao fazer um acordo e ser morto pelos combatentes oficiais, abriria espaço para o verdadeiro Zumbi, aquele que se recusou a capitular até a morte. Algumas versões dizem que, ao constatar a derrota militar, Zumbi se suicida jogando-se de um penhasco. Outros combatentes também se suicidam revelando preferir a morte à vida no cativeiro, sujeito a castigos que vão do pelourinho até a amputação de braços e pernas. Outros relatos dizem que Zumbi pelejou até a morte, com honradez.

Os autores em seu prefácio sinalizam para certa concepção equivocada de intangibilidade da verdade na história. Não estamos com isso endossando o ponto de vista Positivista, que de fato pretendia uma história definitiva, a verdade vista através dos documentos (fontes primárias), ou nas palavras do pai fundador da historiografia positivista Von Ranke, “Die Geschichte wie es eigentlich gewesen hat” – a história como de fato aconteceu. As diferentes versões da história evoluíram ao lado das inovações no campo político e teórico- metodológico da disciplina História. É possível contar a história da Palmares sob diversos enfoques e vieses políticos, mas é a confrontação crítica dos documentos por meio do materialismo histórico o meio de se aproxima mais da verdade[3] da história. Negar a verdade pode simplesmente significar que os relatos dos jesuítas e cronistas dos séculos XVII e XVIII são tão verdadeiros quanto às pesquisas arqueológicas em curso na Serra da Barriga - são verdadeiros parcialmente na medida em que revelam à reação das autoridades e da sociedade colonial à rebelião. Para usar uma bela ilustração de Michel Löwy, se a verdade científica das ciências exatas e da natureza não se equiparam às das ciências sociais, pode  pensar-se num mirante com diferentes andares em que cada narrativa terá um campo de visão mais ou menos vasto, bem como mais ou menos próximo do que ocorreu no principal quilombo das Américas Espanhola[4] e Portuguesa. O que os autores chamam de narrativa esquerdista nada mais fez do que elaborar uma história materialista, chamando atenção para, não “o risco” de Palmares para país sob o jugo da escravidão, mas como iniciativa pioneira de resistência do setor mais oprimido daquela sociedade. 

A direita ainda mantém os seus heróis como os Bandeirantes e homens de estado que nomeiam rus e avenidas das cidades brasileiras. A esquerda aliada aos setores explorados e oprimidos deve se permitir a eleger os seus heróis, papel legítimo atribuído ao Quilombo dos Palmares e especialmente a Zumbi.  




[1] A maior expressão do “nacionalismo” indianista é José de Alencar.
[2] Nesse sentido, o 20 de Novembro, dia da consciência negra ocorre na provável data da morte de Zumbi em 1695.
[3] Sem com isso “torturar” os documentos para que eles digam o que se tem como pressuposto teórico, o que foi o caso de nossos primeiros marxistas pouco familiarizados na doutrina de Marx.
[4] A título de exemplo, o Quilombo de Saramaka no Suriname.

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