“Três Vezes Zumbi” – Jean França e Ricardo Ferreira
Resenha Livro – Três Vezes Zumbi: a construção de um herói
brasileiro – Jean M. C. França e Ricardo A. Ferreira - Editora Três Estrelas
“Nenhuma categoria social lutou de forma veemente e
consequente contra a escravidão que a dos próprios escravos. Nem por terem
fracassado em seus esforços deixaram de condicionar em grau considerável o
processo histórico brasileiro, em quase todos os seus aspectos mais
importantes. No dia em que forem resgatadas da grande face oculta brasileira - face mais ampla e importante que a visível
e oficial – as revoltas escravas projetarão luz sobre um sem número de
contradições históricas que de outro modo sempre permanecerão incompreensíveis.
Na história das revoltas brasileiras, a de Palmares ocupa lugar ímpar. Não foi apenas
a primeira, mas a de maior envergadura”. Décio Freitas in “Palmares: a Guerra
dos Escravos”.
Este
ensaio dos professores da UNESP Jean França e Ricado Ferreira não se propõe a
ser mais uma biografia do Líder Zumbi ou um relato histórico do Quilombo dos
Palmares. A proposta do trabalho é fazer uma síntese das diversas leituras e
interpretações daquela insurreição e seu líder na história. Aqui reside o que
há de mais interessante no ensaio: desde os cronistas, viajantes estrangeiros e
homens de estado do Brasil colônia até as leituras mais contemporâneas daqueles
eventos elaborando uma noção de resistência, de luta contra o elemento opressor
Branco diante da barbárie da escravidão, até a construção do ícone de movimento
negro, Zumbi.
Os
autores identificam três grandes ondas que expressam diferentes noções acerca
de Palmares. São diferentes visões sociais de mundo e contextos históricos que também
vão se revelando conforme se observa como o Brasil colonial, o Brasil egresso
da independência política em 1822 e as renovações dos estudos que se destacam a
partir de Nina Rodrigues em fins do XIX e especialmente Edson Carneiro já em
meados do século XX; como em cada período surgiu formas muito distintas envolvendo a figura de Zumbi e Palmares.
No período colonial a insurreição de Palmares era entendida
como uma ameaça constituída à ordem vigente que se fundava no poderio quase
incontrastável dos latifundiários. Sociedade construída à sombra da monocultura
do açúcar, algodão e tabaco, sob a base do trabalho escravo. Como se sabe o
Brasil colonial reduzia seu número de letrados a uma ínfima minoria: bacharéis e
homens do estado que expressam o ponto de vista daquelas elites agrárias. Há
paralelamente o relato dos jesuítas: os religiosos a princípio não se opõem a
escravidão dos negros mas pretendem reformas no trato entre o senhor e seu
escravo no sentido de sua adequação aos preceitos religiosos cristãos. Acerca da
percepção dos colonos sobre a insurreição na Serra da Barriga:
“Ao longo dos Seiscentos e Setescentos, o quilombo despertou
grande interesse e mereceu atenção de muitos letrados do período, holandeses e
portugueses”. Pg. 149
O Palmares reconstruído por aqueles homens brancos e eventualmente
ligados à administração da coroa se voltam aos contornos militares e
administrativos do conflito.
“São extensas descrições da geografia da região, da
configuração e disposição dos mocambos, estimativas sobre a população, notas
sobre suas capacidades militares e, sobretudo, relatos de batalhas movidas
contra os revoltosos”. Pg. 149
No séc. XIX com eventos bastante dinâmicos que envolvem a
transferência da corte para o Brasil em 1808 e a nossa emancipação política
ulterior, parece reduzir o interesse dos letrados de então pelos acontecimentos
em Palmares. Quando se encontra menções, o grande Quilombo de Alagoas se mostra
como um foco de barbárie, um empecilho ao desenvolvimento da civilização
brasileira, nação que se constrói e identidade que deveria se forjar menos no
negro e mais no elemento branco e indígena[1].
Certa literatura ufanista por outro lado ressalta os feitos do paulista
Domingos Jorge Velho, bandeirante que alcançou a aniquilação de Palmares e foi
erigido à condição de herói nacional.
Este mesmo Domingos Jorge Velho seria retratado na 3ª onda de interpretação não como um herói, mas como um cruel vilão, na verdade, um particular que à custa da destruição de palmares exige datas das terras então conquistas – alguém movido portando pela ambição de riquezas.
Astrogildo Pereira, então secretário-geral do PC, lança as bases para uma primeira interpretação mais materialista do fenômeno histórico enxergando no quilombo manifestação de luta de classes, local de resistência em face dos poderes constituídos. Para os marxistas, Zumbi surge como um ícone dos oprimidos e com os movimentos identitários em fins dos anos 1980 como um símbolo da consciência negra[2]. Outro destaque dado pela mais recente historiografia revela o caráter multi-étnico de Palmares. Estudos arqueológicos que estão em curso revelam a presença de cerâmica indígena, e mais de um historiador diz haverem no Quilombo não só negros, mas índios, mestiços e até brancos.
Uma questão a ser formulada aqui é: quais das distintas
versões se aproximam da verdade, do que de fato ocorreu em Palmares e quem foi
seu líder. Os documentos são bastante contraditórios nesse sentido. Para
alguns, Zumbi é uma espécie de patente político militar e não um indivíduo
em específico. Outros dizem que Zumbi advém da cultura Banto e tem caráter de
divindade. Outros ao contrário dizem Zumbi significar diabo. Mais recentemente
a historiografia passou a se referir de um lado a Ganga Zumba, primeiro “rei”
de Palmares, e que, ao fazer um acordo e ser morto pelos combatentes oficiais,
abriria espaço para o verdadeiro Zumbi, aquele que se recusou a capitular até a
morte. Algumas versões dizem que, ao constatar a derrota militar, Zumbi se
suicida jogando-se de um penhasco. Outros combatentes também se suicidam
revelando preferir a morte à vida no cativeiro, sujeito a castigos que vão do
pelourinho até a amputação de braços e pernas. Outros relatos dizem que Zumbi
pelejou até a morte, com honradez.
Os autores em seu prefácio sinalizam para certa concepção
equivocada de intangibilidade da verdade na história. Não estamos com isso
endossando o ponto de vista Positivista, que de fato pretendia uma história
definitiva, a verdade vista através dos documentos (fontes primárias), ou nas
palavras do pai fundador da historiografia positivista Von Ranke, “Die
Geschichte wie es eigentlich gewesen hat” – a história como de fato aconteceu.
As diferentes versões da história evoluíram ao lado das inovações no campo
político e teórico- metodológico da disciplina História. É possível contar a
história da Palmares sob diversos enfoques e vieses políticos, mas é a
confrontação crítica dos documentos por meio do materialismo histórico o meio
de se aproxima mais da verdade[3] da história.
Negar a verdade pode simplesmente significar que os relatos dos jesuítas e
cronistas dos séculos XVII e XVIII são tão verdadeiros quanto às pesquisas
arqueológicas em curso na Serra da Barriga - são verdadeiros parcialmente na medida em que revelam à reação das autoridades e da sociedade colonial à rebelião. Para usar uma bela ilustração de
Michel Löwy, se a verdade científica das ciências exatas e da natureza não se
equiparam às das ciências sociais, pode pensar-se num mirante com diferentes andares
em que cada narrativa terá um campo de visão mais ou menos vasto, bem como mais
ou menos próximo do que ocorreu no principal quilombo das Américas Espanhola[4]
e Portuguesa. O que os autores chamam de narrativa esquerdista nada mais fez do
que elaborar uma história materialista, chamando atenção para, não “o risco” de
Palmares para país sob o jugo da escravidão, mas como iniciativa pioneira de
resistência do setor mais oprimido daquela sociedade.
A direita ainda mantém os
seus heróis como os Bandeirantes e homens de estado que nomeiam rus e avenidas das cidades brasileiras. A esquerda aliada aos setores explorados e
oprimidos deve se permitir a eleger os seus heróis, papel legítimo atribuído ao
Quilombo dos Palmares e especialmente a Zumbi.
[1] A
maior expressão do “nacionalismo” indianista é José de Alencar.
[2]
Nesse sentido, o 20 de Novembro, dia da consciência negra ocorre na provável data
da morte de Zumbi em 1695.
[3]
Sem com isso “torturar” os documentos para que eles digam o que se tem como
pressuposto teórico, o que foi o caso de nossos primeiros marxistas pouco
familiarizados na doutrina de Marx.
[4] A
título de exemplo, o Quilombo de Saramaka no Suriname.
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