“Raízes do Brasil” – Sérgio Buarque de Holanda
Resenha Livro - “Raízes do Brasil” – Sérgio Buarque de
Holanda – Companhia das Letras - 26ª Edição
“Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição
brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “homem
cordial” . A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão
gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço
definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e
fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no
meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam
significar “ boas maneiras” , civilidade. São antes de tudo expressões
legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade
há qualquer coisa de coercitivo — ela pode exprimir-se em mandamentos e em
sentenças. Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os
aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por
vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse este fato
significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no
cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de
demonstrar respeito. Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da
vida do que o brasileiro” Holanda. S. B. Pg 146-7
Sabe-se
que o primeiro cronista da nossa a história foi o Frei Vicente do Salvador,
franciscano da Bahia. Seu “História do Brasil” data de 1627. Assim como ele,
outros cronistas e viajantes deixaram relatos valiosos sobre o nosso passado
colonial, nossa herança rural, patriarcal cuja opulência e hábitos de fidalguia
herdados da tradição ibérica conviviam candidamente com o trabalho servil.
Todavia àquela altura não se pode cogitar de uma História enquanto disciplina
ou fonte de conhecimento autônomo, com seus próprios pressupostos
teórico-metodológicos. A História, bem como a Sociologia e demais ciências
humanas irão ter seus contornos e sentido de especialização só no séc. XIX com
o alemão Von Ranke e aqui no Brasil com o fundador da historiografia brasileira
propriamente dita, Varnhagen.
Pode-se aqui falar de uma primeira geração de historiadores
positivistas cuja história acerca das coisas brasileiras não raro cae num certo
ufanismo: uma história dos grandes eventos e das personalidades dos estadistas
e demais notáveis. Influenciados pelo naturalismo francês, alguns destes
pioneiros da nossa historiografia como um Euclides da Cunha ou um Capistrano de
Abreu interpretam o Brasil influenciados pelas noções de raça, pelo
determinismo geográfico, com certo protagonista do elemento Português – em seu
Capítulos da História Colonial, Capistrano embaralha o índio com elementos
paisagísticos, quase como um elemento irrelevante e acidental da nossa
trajetória – quando se sabe que o índio, em especial os tupis da região
litorâneo, jogaram um papel estratégico no desbravamento do interior, ou mesmo
antes associando-se aos portugueses na exploração do Pau Brasil, além de
miscigenação profunda envolvendo os mamelucos de modo que na São Paulo colonial
os habitantes, incluindo os colonizadores, falam a língua tupi, inclusive no
recinto doméstico.
Se a Semana da Arte Moderna de 1922 criou as condições para
a edificação de uma arte genuinamente nacional, não só quanto à temática –
considerando o “nacionalismo” dos românticos indianistas – mas quanto à forma,
ao estilo e mesmo aos propósitos, anos depois a revolução de 1930 colocaria em
marcha mudanças estruturais, com o desenvolvimento associado à intervenção
decisiva do Estado na economia e na sociedade. Uma revolução modernista na
historiografia brasileira ocorreria na década de 1930, com o advento de “Casa
Grande e Senzala” (1933) de G. Freire, “Evolução Política do Brasil” (1933) de
Caio Prado Júnior e este “Raízes do Brasil”[1]
(1936) de Sérgio Buarque de Holanda.
Trata-se de um momento em que a História se aproxima das
Ciências Sociais. Cada qual parte de pressupostos teóricos bastante distintos
mas movimentam-se no mesmo sentido de busca da especificidade Brasileira. Num país
donde o Estado antecedeu a Nação, cumpria a este grupo de intelectuais forjar
uma identidade nacional ou buscar as especificidades do Brasileiro sempre a
partir da reflexão acerca do nosso passado, de nossa herança colonial. “Raízes
do Brasil” é um notável ensaio que traça as linhas gerais da psicologia brasileira,
da cultura e da história das nossas ideias.
Para Sérgio Buarque o que há de
mais essencial no povo brasileiro envolve por um lado nossas raízes ibéricas e
por outro nossa herança rural, expresso no pessoalismo que se contrapõe à
impessoalidade do Estado e da lei, o desleixo com que o colono aqui tratou a
agricultura reproduzindo na lavoura de cana o métodos arcaicos dos índios sem o
uso de arados, a nossa cordialidade que envolve não exatamente bondade, mas um
sentimentalismo intimista que informa inclusive as relações comerciais para o
espanto de viajantes estrangeiros no país. Nada mais avesso ao trabalho
repetitivo, cotidiano, a longo prazo, em contraponto ao espírito de aventura
que busca grandes fortunas no menor intervalo de tempo.
Ao contrário da tradicional historiografia positivista ou
naturalista que interpreta o homem a partir das influências do meio, Sérgio
Buarque segue uma orientação culturalista. Apropriação da dialética tratando de
explicar nosso país a partir de oposições como cidade x campo, família x
estado, aventureiro x trabalhador.
Vejamos algumas passagens que revelam a propósito a
orientação webberiana do nosso autor:
“É compreensível, assim, que jamais se tenha naturalizado
entre gente hispânica a moderna religião do trabalho e o apreço à atividade
utilitária. Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais
nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo
pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor,
exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação. E assim, enquanto povos
protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas
colocam-se ainda largamente no ponto de vista da Antigüidade clássica. O que
entre elas predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o
negócio e de que a atividade produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação
e o amor”. Pg. 38
“Se semelhantes característicos predominaram com notável
constância entre os povos ibéricos, não vale isso dizer que provenham de alguma
inelutável fatalidade biológica ou que, como as estrelas do céu, pudessem
subsistir à margem e à distância das condições de vida terrena. Sabemos que, em
determinadas fases de sua história, os povos da península deram provas de
singular vitalidade, de surpreendente capacidade de adaptação a novas formas de
existência. Que especialmente em fins do século xv puderam mesmo adiantar se
aos demais Estados europeus, formando unidades políticas e econômicas de
expressão moderna. Mas não terá sido o próprio bom êxito dessa transformação
súbita, e talvez prematura, uma das razões da obstinada persistência, entre
eles, de hábitos de vida tradicionais, que explicam em parte sua originalidade?”.
Pg. 36
De uma certa maneira
a incapacidade do português de desenvolver a colônia a partir de uma orientação
bem delimitada e estratégica ao invés do furor, da anarquia, do retirar o
máximo da terra com o menor dos esforços tem definitivamente explicações que
envolvem a questão da cultura. Em Portugal como se sabe o feudalismo não deitou
raízes profundas. Uma burguesia mercantil granjeou ascensão social e o independência
nacional portuguesa foi consolidado já no séc. XIV com a Revolução de Avis,
antes de qualquer outro país europeu. Por suposto, tal burguesia estava muito
longe de se assemelhar aos seus pares franceses da Revolução de 1789 que
constitui o Estado controlado pela lei e condições ótimas para o
desenvolvimento do capitalismo – a burguesia mercantil portuguesa aspira não ao
acúmulo de riquezas, mas à fidalguia, despreza o trabalho, em especial o trabalho
manual, em detrimento da busca de títulos de nobreza, consoante a visão social
de mundo medieval. O gosto pelo discurso rebarbativo, o bacharelismo e o
desprezo pelo trabalho manual causou estranheza ao pintor francês Auguste F.
Biard que nos trouxe belos quadros retratando o Brasil do séc. XIX. Aquela
influencia de cultura de fidalguia observou o pintor quando foi orientado a
contratar um escravo para carregar seus instrumentos de trabalho, sendo mal
visto pelos brasileiros quando pintava e carregava seus instrumentos por conta
própria.
Todavia, uma análise restrita ao problema cultural se por um
lado nos oferece retratos preciosos do passado, ainda possui limites nas
questões mais fundamentais: por que o brasileiro é cordial? Por que da confusão
entre o público e o privado que revela nosso patrimonialismo. Qual a base que
engendra a nossa aversão natural à burocracia que remete a impessoalidade, à
norma jurídica abstrata que contrasta com as vicissitudes da realidade – este último
fato relacionado com a forma deturpada com que o liberalismo grassou entre nós.
Ausente em Sérgio Buarque de Holanda uma análise mais materialista da história
capaz de conferir-lhe sentidos que ultrapassem uma interpretação pessoal, ainda
que muito bem feita. Ainda assim, além da riqueza de informações, este notável
livro de história oferece interpretações pertinentes e de certa forma se soma
ao marxista Caio Prado Júnior quando propugna uma revolução que dissipe nossas
raízes ibéricas – até então, a respostas dadas pelos homens ilustrados deu-se
em torno de sistemas em geral teleológicos e com suposta vocação de
aplicabilidade universal, como o nosso positivismo, muito em voga em fins do XIX.
Uma colônia agro-exportadora de poucos produtos suscetíveis às variações do
mercado europeu, sob o predomínio dos Senhores de Engenho e dos Barões de Café
e sob a base do modo de produção escravagista. De opinião semelhante ao de Caio
Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda:
“Se, conforme opinião sustentada em capítulo anterior, não
foi a rigor uma civilização agrícola o que os portugueses instauraram no
Brasil, foi, sem dúvida, uma civilização de raízes rurais. É efetivamente nas
propriedades rústicas que toda a vida da colônia se concentra durante os
séculos iniciais da ocupação européia: as cidades são virtualmente, se não de
fato, simples dependências delas. Com pouco exagero pode dizer-se que tal
situação não se modificou essencialmente até à Abolição. 1888 representa o
marco divisório entre duas épocas; em nossa evolução nacional, essa data assume
significado singular e incomparável”. Pg. 73
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