quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

“Recordações do Escrivão Isaías Caminha” – Lima Barreto

“Recordações do Escrivão Isaías Caminha” – Lima Barreto



Resenha Livro - “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” – Lima Barreto – Editora Brasiliense – São Paulo – 1961

“Verifiquei que até ao curso secundário as minhas manifestações, quaisquer, de inteligência e trabalho, de desejos e ambições, tinham sido recebidas senão com aplauso ou aprovação, ao menos como cousa justa e do meu direito; e que daí por diante, desde que me dispus a tomar na vida o lugar que parecia ser de meu dever ocupar, não sei que hostilidade encontrei, não sei que estúpida má vontade me veio ao encontro, que me fui abatendo, decaindo de mim mesmo, sentindo fugir-me toda aquela soma de ideias e crenças que me alentaram na adolescência e puerícia.

Cri-me fora de minha sociedade, fora do agrupamento a que tacitamente eu concedia alguma cousa e que em troca me dava também alguma cousa” ISAÍAS CAMINHA
                
É recorrente a opinião segundo a qual este (que é o primeiro romance publicado por Lima Barreto) ser uma espécie de memória de conteúdo autobiográfico. É necessário desde aqui fazer algumas ressalvas. Em que pese alguns traços autobiográficos, a obra não deveria ser interpretada como uma expressão de recalque que prenuncia a marginalidade do escritor.

Primeiro, é certo que todos os trabalhos de Lima Barreto possuem algo de autobiográfico: o problema do racismo, sentido na pele pelo escritor, é tema central em “Clara dos Anjos”; e a sátira acerca da miséria intelectual de doutores, bacharéis e políticos é tema corrente desde o “Triste Fim de Policarpo Quaresma” à obra póstuma “Bruzundanga”.

Segundo, em termos literais há diferenças entre Isaías Caminha e Lima Barreto: o primeiro é proveniente do interior e o segundo advém do Rio de Janeiro – a descoberta do Rio de Janeiro evolverá as mudanças espirituais de Isaías; o primeiro granjeia os dons da inteligência de um pai erudito e leitor de livros de história enquanto o pai de Lima Barreto foi ao que consta um simples madeireiro português casado com uma professora de primeiras letras; Isaías ao cabo da história junta-se com uma mulher e consta que Lima Barreto não constituiu família e mal foi visto com  mulheres durante a vida; e, mais importante, Isaías de certa forma capitula junto àquela sociedade baseada na mediocridade intelectual ao se associar ao chefe de jornal e abandonar seus sonhos e seu orgulho, coisa distinta de Lima Barreto, que propugna um ideal artístico e literário que o move no sentido de uma narrativa de sátira, de uma arte panfletária e de insurgência.

Outrossim, o próprio Lima Barreto em carta discorre sobre a finalidade da presente obra: “(Pretendi) mostrar um rapaz nas condições do Isaías, com todas as disposições, pode falhar, não em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas batido, esmagado, prensado pelo preconceito”. “Se lá pus certas figuras e o jornal, foi para escandalizar e provocar atenção para a minha brochura. Não sei se o processo é decente, mas foi aquele que me surgiu para lutar contra a indiferença, a má vontade dos nossos mandarins literários”.

Muito se pôde descobrir acerca da vida do escritor Lima Barreto, especialmente por pesquisadores que levaram a cabo um trabalho de publicação de obras inéditas após a morte do escritor. Consta que um grande volume de documentos, cartas e papeis estavam encostados/abandonados num imóvel de familiares do artista e só em meados do séc. XX pesquisadores tiveram contato com este material (recuperaram cerca de 70% dos papeis segundo Francisco de Assis Barbosa). Promoveram a maior repaginação editorial da obra de Lima Barreto até então. Tal empreendimento foi feito duas gerações após a morte do escritor, pela editora Brasiliense, então dirigida pelo historiador e comunista Caio Prado Jr., contando com apoio técnico de Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença.

Como se sabe, o escritor fluminense e sua obra estão situados no 1900 literários e ficaram marcados pelo signo da inadequação junto ao círculos literários oficiais.  Até aquele período não se cogita falar em escritor como um “ofício”, algo muito mais recente na história, espécie de conquista tardia do modernismo em sua 2ª Fase. Os “escritores” em geral em 1900 ou antes exercem outras profissões. Bernardo Guimarães, o romântico autor de “Escrava Isaura”, é magistrado. José de Alencar é deputado federal pelo Ceará. Joaquim Manuel de Macedo foi além de escritor, médico, político e professor. Em geral havia até escritores e poetas de ofício, mas tal carreira estava associada ao periodismo, e o jornalismo igualmente era uma profissão meio boêmia, sem grandes foros de respeitabilidade, ao menos em face de um pequeno grupo de escritores consagrados e, claro, da elite política do país.

Esta inadequação envolvendo Lima Barreto e seu tempo se revela no problema das publicações. “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” foi publicado em sua parte inicial por uma revista editada pelo próprio Lima Barreto (Floreal) em 1907. “Clara dos Anjos” é livro concluído em 1922 e só publicado em 1948. “Cemitério dos Vivos” foi redigido entre 1919-20 e só lançado em 1956. E sua obra mais conhecida, o “O Triste Fim de Policarpo Quaresma” foi publicado em 1917 bancado com recursos do escritor. Sabe-se que Lima Barreto tentou duas vezes sem sucesso um reconhecido lugar na Academia Brasileira de Letras.

Importa ponderar as razões pelas quais Lima Barreto não obteve reconhecimento literário no seu tempo. O problema do racismo e a origem suburbana– que é um dos aspectos impeditivos da apreciação da imaginação, do estilo, do valor estético e da inteligência numa sociedade que em termos de próprio Lima Barreto apenas se valoriza “Diplomados”, donde grassa a mediocridade do bacharelismo, da prevalência da forma sobre o conteúdo, de um jornalismo de favores ou “canalha” na atual acepção de José Arbex Jr.  – é parte da explicação. Todavia poderíamos propor como uma reflexão (ainda que reiterada e um pouco batida pela crítica) do problema de Machado de Assis, ele também advindo do subúrbio, que inicia sua carreira literária como tipógrafo de jornal, e mulato, todavia, diferentemente de Lima Barreto, galgando apreciação literária e reconhecimento daquele pequeno círculo de “doutores”.

Certamente há diferenças quanto ao brilho literário de ambos os autores: e, ademais, Machado de Assis fundou o realismo literário dentro da literatura brasileira, criando uma relativa inovação formal. Todavia, parece-nos que o que mais contribuiu para a marginalidade de Lima Barreto, diante de uma sociedade ainda pouco condescendente com literatos sem seu respectivo diploma de bacharel e sua respectivas boas indicações (a lembrar que o próprio Machado de Assis iniciou sua carreira como protegido por Manuel Antônio de Almeida) foi o veio satírico dos romances, crônicas e narrativas. Lima Barreto teria poucas chances de adentrar a um seleto clube de aristocratas escritores ao eleger uma narrativa de combate em face de instituições como os jornais, os críticos literários, os deputados, os militares e até mesmo os ativistas revolucionários (que são ridicularizados como massa de manobra do jornal O GLOBO em, “Recordações”).  Lima Barreto literalmente “atira para todos os lados”.  O escritor é nos termos de seus críticos um “revoltado em conflito permanente com o meio em que vivia” e ao que parece sua sátira vai se tornando cada vez mais ácida conforme seu amor pelo país não vai sendo correspondido. Mantém todavia seu orgulho e em suas palestras em Mirassol ao final da vida parece eleger a “arte” como uma espécie de refúgio ou quase religião para dar vazão  às frustrações que igualmente levaram-no ao abuso do álcool, às passagens de depressão, às internações no manicômio e a uma morte prematura.

Filosofia e Literatura

Em 1897 Lima Barreto ingressou na escola Politécnica onde teve contatos com o positivismo de Texeira Mendes. Mais importante que o positivismo foi o despertar para a leitura de demais obras filosóficas – consta que leu Descartes, Kant e Spencer. Do primeiro retiraria um princípio que levaria para sua produção literária, o princípio da dúvida. Princípio  que se extrai na percepção crítica com que observou o Brasil da República Velha. Este é o ponto alto de sua literatura e neste movimento ele merece uma nova classificação, distinta de um certo guarda chuva de “pré-modernismo” com que se costuma embalá-lo.

O signo da ousadia formal e a conformação da identidade nacional exigiram do movimento modernista um olhar crítico sobre o passado: como um movimento revolucionário, fizeram uma espécie de tábua rasa a partir da qual criaram algo de novo. Senão vejamos qual é a base filosófica da obra de Lima Barreto nas suas palavras:

“A Dúvida metódica, senão sistemática, a tábua-rasa preliminar, para se chegar à certeza”. “O romancista é de alguma forma um descobridor – diria certa feita – e o melhor tratado de estética, nesse sentido, ainda é o Discurso do Método, de Descartes”.

“As Recordações do Escrivão Isaías Caminha” é a história do embotamento de uma inteligência viva advinda da “tristeza, da compreensão e da desigualdade do nível mental do seio familiar”. Circunstâncias específicas fizeram com que o pequeno Isaías adquirisse um gosto vasto pelos estudos e leituras. Desde o interior de onde nutria sonhos de engrandecer ainda mais o conhecimento parte para o RJ e nutre expectativas patéticas envolvendo as instituições do Brasil, o parlamento, os jornais e os jornalistas, os políticos, os artistas e mesmo a própria cidade. Em pouco tempo enfrenta a dura realidade, do preconceito de cor, da opressão decorrente de uma vida de privações financeiras, observa a mediocridade intelectual dos pasquins e jornais, a má vontade e corrupção de agentes públicos, o pouco caso das mulheres,  frustrações que vão gradualmente embotando a inteligência de Isaías que vai se submetendo, quedando-lhe o orgulho (não sem lamentar), como se de tanto levar chicotadas fosse uma vela que se apagasse. Ao final é chamado de tonto pelo diretor R. L. por ter perdido uma oportunidade de se aproveitar de mulher italiana que o solicitava em seus aposentos para fins sexuais – um fim trágico cômico ao escrivão que retornaria ao interior.

Uma boa crítica literária não se passa apenas com elogios – um texto para apologia é próximo do inútil e fora da tradição crítica. A parte alta deste romance/memória são as descrições vivas de um período histórico do Brasil: o Rio de Janeiro da República Velha, as relações pouco escrupulosas entre políticos e jornalistas, estes últimos não primando pela imparcialidade, sempre escrevendo em troca de cargos públicos, prestígio e  dinheiro,  e de uma maneira geral uma sociedade corrompida e atravessada por vícios, donde jornalistas, poetas e literatos se assemelham a prostitutas, ganhando relevo a personagem Viscondessa de V. , metade meretriz, metade poetiza.

Interessante que insurreições ocorrem. Mas o sujeito operário tem presença residual. A ausência deste protagonista faz das explosões atividades desorganizadas e espontâneas num momento de incipiente urbanização e de nascimento do proletariado no Brasil: são movimentos sem organização e direção. O PCB seria fundado em 1922. Uma greve geral (1917) ocorrera no país com presença marcante do movimento anarquista e chegou a parar São Paulo por 30 dias. Observar que os insurgentes respondiam os policiais “à bala” no romance de Lima Barreto:

“Na Rua do Ouvidor armava-se barricadas, cobria-se o pavimento de rolhas para impedir as cargas de cavalaria. As forças eram recebidas à bala e respondiam. Plinio de Andrade, com quem há muito não me encontrava, veio a morrer num desses combates. Da sacada do jornal eu pude ver os amotinados. Havia a poeira de garotos e moleques; havia o vagabundo, o desordeiro profissional, o pequeno burguês, empregado, caixeiro e estudante; havia emissários de políticos descontentes. Todos se misturavam, afrontavam as balas, unidos pela mesma irritação e pelo mesmo ódio à polícia, onde uns viam seu inimigo natural e outros o Estado, que não dava a felicidade e a abundância”

O estilo literário de Lima Barreto é coloquial, baseado em períodos curtos e que remete à linguagem do jornalista. Mas há alguns erros de construção que sugerem falta de revisão, repetição de palavras, vírgulas, etc. Foi o provável pretexto para ataques de inimigos que se sentiram afetados com a literatura satírica da Lima Barreto – seria o mesmo um mal escritor? Aqui o estilo não tem o brilho de um Machado de Assis mas surge como detalhe que está muito longe de desmerecer a obra.

Lima Barreto quebra no meio uma tradição literária secular que se baseava num certo ufanismo e que criou as condições para a crítica social do modernismo. É um escritor plenamente moderno, ainda que anterior à Semana de 22. Fez de certo ponto na Literatura o que Paulo Prado e seu “Retrato do Brasil” fizera para a historiografia do Brasil. Paulo Prado contrariou o senso comum (para quem o brasileiro é um povo carnavalesco) e, em um ensaio histórico poderoso, concluiu que o brasileiro é um povo triste. Seu livro não foi bem aceito mas abria uma crítica e um precedente para os modernistas da historiografia. E que triste fim é o de Lima Barreto, confirmando a tristeza brasileira de Paulo Prado.  

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