“Recordações do Escrivão Isaías Caminha” – Lima Barreto
Resenha Livro - “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” – Lima
Barreto – Editora Brasiliense – São Paulo – 1961
“Verifiquei que até ao curso secundário as minhas
manifestações, quaisquer, de inteligência e trabalho, de desejos e ambições,
tinham sido recebidas senão com aplauso ou aprovação, ao menos como cousa justa
e do meu direito; e que daí por diante, desde que me dispus a tomar na vida o
lugar que parecia ser de meu dever ocupar, não sei que hostilidade encontrei,
não sei que estúpida má vontade me veio ao encontro, que me fui abatendo,
decaindo de mim mesmo, sentindo fugir-me toda aquela soma de ideias e crenças
que me alentaram na adolescência e puerícia.
Cri-me fora de minha sociedade, fora do agrupamento a que tacitamente eu concedia alguma cousa e que em troca me dava também alguma cousa” ISAÍAS CAMINHA
É
recorrente a opinião segundo a qual este (que é o primeiro romance publicado
por Lima Barreto) ser uma espécie de memória de conteúdo autobiográfico. É
necessário desde aqui fazer algumas ressalvas. Em que pese alguns traços autobiográficos,
a obra não deveria ser interpretada como uma expressão de recalque que prenuncia
a marginalidade do escritor.
Primeiro, é certo que todos os
trabalhos de Lima Barreto possuem algo de autobiográfico: o problema do
racismo, sentido na pele pelo escritor, é tema central em “Clara dos Anjos”; e
a sátira acerca da miséria intelectual de doutores, bacharéis e políticos é
tema corrente desde o “Triste Fim de Policarpo Quaresma” à obra póstuma “Bruzundanga”.
Segundo, em termos literais há
diferenças entre Isaías Caminha e Lima Barreto: o primeiro é proveniente do
interior e o segundo advém do Rio de Janeiro – a descoberta do Rio de Janeiro
evolverá as mudanças espirituais de Isaías; o primeiro granjeia os dons da
inteligência de um pai erudito e leitor de livros de história enquanto o pai de
Lima Barreto foi ao que consta um simples madeireiro português casado com uma
professora de primeiras letras; Isaías ao cabo da história junta-se com uma
mulher e consta que Lima Barreto não constituiu família e mal foi visto
com mulheres durante a vida; e, mais
importante, Isaías de certa forma capitula junto àquela sociedade baseada na
mediocridade intelectual ao se associar ao chefe de jornal e abandonar seus
sonhos e seu orgulho, coisa distinta de Lima Barreto, que propugna um ideal artístico
e literário que o move no sentido de uma narrativa de sátira, de uma arte
panfletária e de insurgência.
Outrossim, o próprio Lima Barreto
em carta discorre sobre a finalidade da presente obra: “(Pretendi) mostrar um
rapaz nas condições do Isaías, com todas as disposições, pode falhar, não em
virtude de suas qualidades intrínsecas, mas batido, esmagado, prensado pelo
preconceito”. “Se lá pus certas figuras e o jornal, foi para escandalizar e
provocar atenção para a minha brochura. Não sei se o processo é decente, mas
foi aquele que me surgiu para lutar contra a indiferença, a má vontade dos
nossos mandarins literários”.
Muito se pôde descobrir acerca da vida do escritor Lima
Barreto, especialmente por pesquisadores que levaram a cabo um trabalho de
publicação de obras inéditas após a morte do escritor. Consta que um grande
volume de documentos, cartas e papeis estavam encostados/abandonados num imóvel
de familiares do artista e só em meados do séc. XX pesquisadores tiveram
contato com este material (recuperaram cerca de 70% dos papeis segundo
Francisco de Assis Barbosa). Promoveram a maior repaginação editorial da obra
de Lima Barreto até então. Tal empreendimento foi feito duas gerações após a
morte do escritor, pela editora Brasiliense, então dirigida pelo historiador e
comunista Caio Prado Jr., contando com apoio técnico de Antônio Houaiss e M.
Cavalcanti Proença.
Como se
sabe, o escritor fluminense e sua obra estão situados no 1900 literários e
ficaram marcados pelo signo da inadequação junto ao círculos literários
oficiais. Até aquele período não se
cogita falar em escritor como um “ofício”, algo muito mais recente na história,
espécie de conquista tardia do modernismo em sua 2ª Fase. Os “escritores” em
geral em 1900 ou antes exercem outras profissões. Bernardo Guimarães, o
romântico autor de “Escrava Isaura”, é magistrado. José de Alencar é deputado
federal pelo Ceará. Joaquim Manuel de Macedo foi além de escritor, médico,
político e professor. Em geral havia até escritores e poetas de ofício, mas tal
carreira estava associada ao periodismo, e o jornalismo igualmente era uma
profissão meio boêmia, sem grandes foros de respeitabilidade, ao menos em face
de um pequeno grupo de escritores consagrados e, claro, da elite política do
país.
Esta inadequação envolvendo Lima Barreto e seu tempo se
revela no problema das publicações. “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”
foi publicado em sua parte inicial por uma revista editada pelo próprio Lima
Barreto (Floreal) em 1907. “Clara dos Anjos” é livro concluído em 1922 e só
publicado em 1948. “Cemitério dos Vivos” foi redigido entre 1919-20 e só
lançado em 1956. E sua obra mais conhecida, o “O Triste Fim de Policarpo
Quaresma” foi publicado em 1917 bancado com recursos do escritor. Sabe-se que
Lima Barreto tentou duas vezes sem sucesso um reconhecido lugar na Academia
Brasileira de Letras.
Importa ponderar as razões pelas quais Lima Barreto não obteve
reconhecimento literário no seu tempo. O problema do racismo e a origem
suburbana– que é um dos aspectos impeditivos da apreciação da imaginação, do
estilo, do valor estético e da inteligência numa sociedade que em termos de
próprio Lima Barreto apenas se valoriza “Diplomados”, donde grassa a
mediocridade do bacharelismo, da prevalência da forma sobre o conteúdo, de um
jornalismo de favores ou “canalha” na atual acepção de José Arbex Jr. – é parte da explicação. Todavia poderíamos
propor como uma reflexão (ainda que reiterada e um pouco batida pela crítica) do
problema de Machado de Assis, ele também advindo do subúrbio, que inicia sua
carreira literária como tipógrafo de jornal, e mulato, todavia, diferentemente
de Lima Barreto, galgando apreciação literária e reconhecimento daquele pequeno
círculo de “doutores”.
Certamente há diferenças quanto ao brilho literário de ambos
os autores: e, ademais, Machado de Assis fundou o realismo literário dentro da
literatura brasileira, criando uma relativa inovação formal. Todavia,
parece-nos que o que mais contribuiu para a marginalidade de Lima Barreto,
diante de uma sociedade ainda pouco condescendente com literatos sem seu
respectivo diploma de bacharel e sua respectivas boas indicações (a lembrar que
o próprio Machado de Assis iniciou sua carreira como protegido por Manuel Antônio
de Almeida) foi o veio satírico dos romances, crônicas e narrativas. Lima
Barreto teria poucas chances de adentrar a um seleto clube de aristocratas
escritores ao eleger uma narrativa de combate em face de instituições como os
jornais, os críticos literários, os deputados, os militares e até mesmo os
ativistas revolucionários (que são ridicularizados como massa de manobra do
jornal O GLOBO em, “Recordações”). Lima
Barreto literalmente “atira para todos os lados”. O escritor é nos termos de seus críticos um “revoltado
em conflito permanente com o meio em que vivia” e ao que parece sua sátira vai
se tornando cada vez mais ácida conforme seu amor pelo país não vai sendo
correspondido. Mantém todavia seu orgulho e em suas palestras em Mirassol ao final
da vida parece eleger a “arte” como uma espécie de refúgio ou quase religião
para dar vazão às frustrações que
igualmente levaram-no ao abuso do álcool, às passagens de depressão, às internações
no manicômio e a uma morte prematura.
Filosofia e Literatura
Em 1897
Lima Barreto ingressou na escola Politécnica onde teve contatos com o
positivismo de Texeira Mendes. Mais importante que o positivismo foi o
despertar para a leitura de demais obras filosóficas – consta que leu Descartes,
Kant e Spencer. Do primeiro retiraria um princípio que levaria para sua
produção literária, o princípio da dúvida. Princípio que se extrai na percepção crítica com que
observou o Brasil da República Velha. Este é o ponto alto de sua literatura e
neste movimento ele merece uma nova classificação, distinta de um certo guarda
chuva de “pré-modernismo” com que se costuma embalá-lo.
O signo
da ousadia formal e a conformação da identidade nacional exigiram do movimento
modernista um olhar crítico sobre o passado: como um movimento revolucionário,
fizeram uma espécie de tábua rasa a partir da qual criaram algo de novo. Senão
vejamos qual é a base filosófica da obra de Lima Barreto nas suas palavras:
“A Dúvida metódica, senão sistemática, a tábua-rasa
preliminar, para se chegar à certeza”. “O romancista é de alguma forma um
descobridor – diria certa feita – e o melhor tratado de estética, nesse
sentido, ainda é o Discurso do Método, de Descartes”.
“As Recordações do Escrivão Isaías Caminha” é a história do
embotamento de uma inteligência viva advinda da “tristeza, da compreensão e da
desigualdade do nível mental do seio familiar”. Circunstâncias específicas
fizeram com que o pequeno Isaías adquirisse um gosto vasto pelos estudos e
leituras. Desde o interior de onde nutria sonhos de engrandecer ainda mais o
conhecimento parte para o RJ e nutre expectativas patéticas envolvendo as instituições
do Brasil, o parlamento, os jornais e os jornalistas, os políticos, os artistas
e mesmo a própria cidade. Em pouco tempo enfrenta a dura realidade, do
preconceito de cor, da opressão decorrente de uma vida de privações
financeiras, observa a mediocridade intelectual dos pasquins e jornais, a má
vontade e corrupção de agentes públicos, o pouco caso das mulheres, frustrações que vão gradualmente embotando a
inteligência de Isaías que vai se submetendo, quedando-lhe o orgulho (não sem
lamentar), como se de tanto levar chicotadas fosse uma vela que se apagasse. Ao
final é chamado de tonto pelo diretor R. L. por ter perdido uma oportunidade de
se aproveitar de mulher italiana que o solicitava em seus aposentos para fins
sexuais – um fim trágico cômico ao escrivão que retornaria ao interior.
Uma boa crítica literária não se passa apenas com elogios –
um texto para apologia é próximo do inútil e fora da tradição crítica. A parte
alta deste romance/memória são as descrições vivas de um período histórico do
Brasil: o Rio de Janeiro da República Velha, as relações pouco escrupulosas
entre políticos e jornalistas, estes últimos não primando pela imparcialidade,
sempre escrevendo em troca de cargos públicos, prestígio e dinheiro, e de uma maneira geral uma sociedade
corrompida e atravessada por vícios, donde jornalistas, poetas e literatos se
assemelham a prostitutas, ganhando relevo a personagem Viscondessa de V. , metade
meretriz, metade poetiza.
Interessante que insurreições ocorrem. Mas o sujeito
operário tem presença residual. A ausência deste protagonista faz das explosões atividades desorganizadas e espontâneas num momento de incipiente urbanização e de
nascimento do proletariado no Brasil: são movimentos sem organização e direção. O
PCB seria fundado em 1922. Uma greve geral (1917) ocorrera no país com presença marcante do movimento anarquista e chegou a parar São Paulo por 30 dias. Observar que os
insurgentes respondiam os policiais “à bala” no romance de Lima Barreto:
“Na Rua do Ouvidor armava-se barricadas, cobria-se o
pavimento de rolhas para impedir as cargas de cavalaria. As forças eram
recebidas à bala e respondiam. Plinio de Andrade, com quem há muito não me encontrava,
veio a morrer num desses combates. Da sacada do jornal eu pude ver os
amotinados. Havia a poeira de garotos e moleques; havia o vagabundo, o
desordeiro profissional, o pequeno burguês, empregado, caixeiro e estudante;
havia emissários de políticos descontentes. Todos se misturavam, afrontavam as
balas, unidos pela mesma irritação e pelo mesmo ódio à polícia, onde uns viam
seu inimigo natural e outros o Estado, que não dava a felicidade e a abundância”
O estilo literário de Lima Barreto é coloquial, baseado em
períodos curtos e que remete à linguagem do jornalista. Mas há alguns erros de
construção que sugerem falta de revisão, repetição de palavras, vírgulas, etc.
Foi o provável pretexto para ataques de inimigos que se sentiram afetados com a
literatura satírica da Lima Barreto – seria o mesmo um mal escritor? Aqui o
estilo não tem o brilho de um Machado de Assis mas surge como detalhe que está
muito longe de desmerecer a obra.
Lima Barreto quebra no meio uma tradição literária secular que
se baseava num certo ufanismo e que criou as condições para a crítica social do
modernismo. É um escritor plenamente moderno, ainda que anterior à Semana de
22. Fez de certo ponto na Literatura o que Paulo Prado e seu “Retrato do Brasil”
fizera para a historiografia do Brasil. Paulo Prado contrariou o senso comum
(para quem o brasileiro é um povo carnavalesco) e, em um ensaio histórico poderoso,
concluiu que o brasileiro é um povo triste. Seu livro não foi bem aceito mas
abria uma crítica e um precedente para os modernistas da historiografia. E que triste
fim é o de Lima Barreto, confirmando a tristeza brasileira de Paulo Prado.
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