quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

“O Noviço” – Martins Pena

“O Noviço” – Martins Pena



Resenha livro – “O Noviço / O Judas em Sábado de Aleluia” – Martins Pena – Editora Ática

Resenha Livro – “O Noviço / O Juiz de Paz na Roça” – Martins Pena – Editora Sol Objetivo

“Se se perdessem todas as leis, escritos, memórias da história brasileira dos primeiros cinquenta anos desde século XIX e nos ficassem somente as comédias de (Martins) Pena, era possível reconstruir por elas a fisionomia moral desta época”. Sílvio Romero (1851 – 1914) – Crítico Literário
         
O enunciado acerca da obra deste precursor da dramaturgia no Brasil não esgota as novidades e a importância geral das peças acerca dos costumes da corte ou mesmo do interior do Brasil das primeiras décadas do século XIX.

Martins Pena se sobressai de fato como introdutor do teatro de costumes no Brasil e ao fazê-lo retratou a sociedade de seu tempo ensejando um importante interesse histórico: desde as relações sociais e conjugais, até os abusos do poder dos juízes de paz, da corrupção com a falsificação de moedas[1], até o paternalismo envolvendo funcionários públicos,  muitos dos impasses de outrora continuam. 

O que há de se constatar é uma certa atualidade, como veremos, em muitas das passagens das peças, e aqui reside um ponto que parece dizer tanto à perspicácia do artista que retrata o seu tempo quanto ao contexto histórico especial que perpassa um processo histórico de longa duração desde 1808 com a vinda da Família Real portuguesa e a instalação da sede da corte no Rio de Janeiro[2], a elevação do Brasil a condição de Reino Unido de Portugal Brasil e Algaveres em 1815, a Revolução do Porto em 1820 com objetivos de aniquilar com o Antigo Regime, restituir/reestabelecer Portugal no interior do Império português o que foi interpretado por deputados brasileiros como um movimento no sentido de reecolonização do Brasil, dando impulso ao movimento de independência, que teria prosseguimento com o dia do Fico em 9 de Janeiro de 1822, o 7 de Setembro (cujo significado concreto é de pouca relevância tendo sido o grito do Ipiranga sequer repercutido nos jornais da época com uma única exceção[3]), até a aclamação de D. Pedro como Imperador.

Este panorama deve nos orientar no sentido de que o contexto em que Martins Pena escreveu suas peças é um momento decisivo para o país, fase da independência, da consolidação inicial da nacionalidade, mas de um país ainda eivado pela escravidão, pelo patrimonialismo, pela corrupção que engessa o serviço público, pelo compadrio, pela força do poder local associada ao modelo jurídico institucional português do Antigo Regime. E no “privado” pelas relações conjugais eivadas por interesses pecuniários, algo se não distinto dos dias de hoje, diferente na forma, havendo na comédia de costumes, sempre uma orientação moralista que em “O Noviço” revela o crime da bigamia, a condenação um tanto velada da viúva que não se ressente do falecido e busca um novo amante (por quem acaba enganada) e um cruel destino da jovem namoradeira (Maricota) em contraponto ao modelo de jovem “recatada e do lar” (Chiquinha) – peça “O Judas em Sábado de Aleluia”.

O que queremos indicar aqui é que ao retratar os costumes de uma conjuntura histórica que dizia respeito à fase do advento da nacionalidade, ou talvez, em face do peso ou fardo do nosso passado ou herança de vícios com a nação em nascimento, Martins Pena acabou se tornando algo profético ou atual. Assim diz um de seus personagens que “as leis criminais fizeram-se para os pobres” (fala então Ambrósio em “O Noviço”) ou práticas de corrupção em entes públicos como o suborno para a não convocação à Guarda Nacional (“O Judas em Sábado de Aleluia”) ou a arbitrariedade judicial (“O Juiz de Paz na Roça”). Todos revelam uma atualidade incrível das peças.

Autor e Obras

Luís Carlos Martins Pena nasceu no Rio de Janeiro em 05.01.1815. Ficou órfão de pai quando tinha um ano e de mãe quando tinha 10 anos, tendo sido educado pelo tio materno. Embora não tivesse vocação para o comércio, foi obrigado a estudar contabilidade e leis de comércio de 1832 e 1835. Tal fato pode sugerir algo de auto-biográfico quanto ao personagem central Carlos, do Noviço, garoto matreiro e apaixonado pela prima, porém internado num convento por um tio mal intencionado que intentava desfazer o casamento para, com os votos de pobreza do sobrinho, tirar de vista um herdeiro da herança da rica cônjuge e tia do noviço. Carlos descobre os movimentos sinuosos e mal intencionados do tio, bem como revela a sua não inclinação pela vida monástica, foge do convento e causa enorme tribulias junto aos frades:

“CARLOS- E que culpa tenho eu, se tenho a cabeça esquentada? Para que querem violentar minhas inclinações? Não nasci para frade, não tenho jeito nenhum para estar horas inteiras no coro a rezar com os braços encruzados. Não me vai o jejuar: tenho, pelo menos três vezes ao dia uma fome de todos os diabos. Militares é o que quisera ser; para aí chama-se a inclinação. Bordoadas, espadeiradas, rusgas é que me regalam; esse é o meu gênio. Gosto de teatro, e de lá ninguém vai ao teatro, à exceção de Frei Maurício, que frequenta a plateia de casaca e cabeleira, para esconder a coroa”.

No limite um Padre Mestre dos Noviços e outros figurantes da igreja vivenciaram momentos cômicos, de rebuliço e confusão em função das brejeirices do Noviço mais rebelde do convento – a maior delas quando se veste de mulher e envia suas vestes à pobre Rosa, causando um “tumulto público”. Fora os risos, a Igreja e a religião não são objeto de crítica: dentre as falas, fica-se claro que é a ganância de Ambrósio e a inocência de Florência (sua segunda mulher) que é uma viúva rica e se deixa seduzir pelo oportunista, os responsáveis por fazer com que Carlos, jovem sem qualquer inclinação para a vida no monastério, para lá seja enviado. Diferente portando das ponderações de “O Seminarista” (1872) de Bernardo de Guimarães, uma tragédia romântica cujo mote é justamente os efeitos deletérios da falta de inclinação e a vida forçada no seminário.

Todavia, é importante ressaltar: o teatro de costumes se desenvolve em Martins Pena a partir de uma narrativa moralista, com uma intencionalidade clara de instrumentalizar a arte como forma de educar ou intervir na sociedade. Certamente estamos aqui nos albores da narrativa nacional e não se observa uma sondagem das cogitações psicológicas/internas das personagens, de suas contradições com uma depuração que as inovações do realismo literário a partir de Machado de Assis e especificamente Eça de Queirós desde Portugal (que em sua fase realista, também assinalava um sentido reformador) alcançaram. Aqui se observa ainda um tom moralista e maniqueísta que se adéqua formalmente a um teatro de estilo de comédia, voltado a entreter, arte acessível a um público em sua maioria iletrado, e como não poderia deixar de ser, dadas as circunstâncias históricas, com certa superficialidade na tintura dos traços psicológicos. Nesta forma que combina um discurso moral e o gracejo, cada personagem agrega características pontuais, uns são bons, outros são maus, uns são fortes, outros são fracos, uns são honestos, outros são desonestos – a contradição e a complexidade do indivíduo no teatro, encontraríamos muito depois, podendo suscitar 1940 com “Vestido de Noiva” de Nelson Rodrigues e 1950 com o “Pagador de Promessas” de Dias Gomes.
Infelizmente atual

“O Juiz de Paz na Roça” foi a primeira peça escrita por Martins Pena – redigida em 1837 e encenada no teatro São Pedro em 10.08.1839. Desde o ponto de vista histórico, retrata a vida difícil dos lavradores (pequenos proprietários, categoria comumente negligenciada pela historiadores) no interior do Brasil. Costumam viver em pequenas propriedades como é o caso de Manuel João, têm pouca monta de capital e de escravos e naquela conjuntura de leis restritivas de abolição do tráfico[4], encontram enormes dificuldades de subsistência – na história falta carne seca para família e para o escravo só sobra laranja com farinha. A história retrata o recrutamento de ofício pelo Juiz de Paz de cidadãos como Manuel João para a Guarda Nacional.

Certamente dentre as críticas atuais que perpassam a obra do “O Juiz de Paz na Roça”, nenhuma delas parece cair melhor do que a arbitrariedade do poder jurisdicional, ainda que aqui se deva evitar o anacronismo – ler desejos pessoais ou aspectos do presente do passado conferindo um erro de cronologia. Os Juízes Togados de hoje eram distintos do modelo dos juízes de paz, em geral juízes leigos em direito (fato aliás reiterado na peça com efeitos cômicos), com ampla jurisdição (poderíamos dizer competência mais propriamente, tratando de assuntos judiciais, administrativos, eleitorais e de polícia) e, importante, eram juízes eleitos, ainda que por um reduzido eleitorado proprietário. O Juiz de Paz mais do que tudo era parte de uma articulação do Poder Local que remete a uma estrutura de poder do Antigo Regime que, num Império Continental como o Português que envolvia possessões em África e Ásia, dependia de relações bastante específicas de imbricação de poder baseadas na concessão de honras e mercês, na ampliação do poder local em troca da obediência ao Poder Régio – uma mútua relação de dependência, legitimação e concessão de poder. De outro modo não é de se estranhar que uma herança com relação aos abusos de poder, especificamente envolvendo magistrados, não tenham vínculos com esta conformação tradicional de poder local, desnudada de forma irônica e engraçada na figura de um Juiz Glutão que concilia duas partes que litigam em torno de um Porco propondo que o suíno seja remetido ao....Juiz, preferencialmente cozinhado com ervilhas. Vejamos:

“JUIZ – Não posso deferir por estar muito atravancado com um roçado; portanto, requeira ao suplente, que é meu compadre Pantaleão.
MANUEL ANDRÉ – Mas, Sr. Juiz, ele também está ocupado com uma plantação.
JUIZ- Você Replica? Olhe que o mando para cadeia.
MANUEL ANDRE – Vossa Senhoria não pode prender-me à toa; a Constituição não manda.
JUIZ- A Constituição! Está Bem! Eu, o Juiz de Paz, hei por bem derrogar a Constituição! Sr. Escrivão, tome termo que a Constituição está derrogada, e mande-me prender este homem.
MANUEL ANDRÉ – Isto é uma injustiça!
JUIZ – Ainda Fala? Suspendo-lhe as garantias...”

Está em curso a operação Lava Jato que em termos jurídicos já tem levado à sociedade propostas como a relativização da vedação do uso de provas ilícitas no processo e efetivou a repercussão em rede nacional de interceptação telefônica resguardada por segredo de justiça que de acordo com o art. 10 da lei 9296 deveria levar o Juiz Sérgio Moro a ter cometido crime pela supracitada lei com pena de reclusão de 2 a 4 anos e multa[5]. A operação Lava Jato é a peça jurídica central do golpe de estado que está em curso no Brasil com ativa participação do poder judiciário. Não se trata do mesmo poder judiciário dos poderes provinciais baseados no poder local do Brasil dos primeiros anos do séc. XIX – mas a mesma arbitrariedade ridicularizada por Martins Pena está amplamente divulgada na internet nas audiências da Lava Jato dirigidas pelo Juiz Sérgio Moro, neste momento, um dos principais inimigos da esquerda, dos democratas e dos patriotas do país. Que o humor deixe de ser combatido pelas “minorias” da esquerda pós moderna (feministas, LGBTS, etc.) e volte a ser uma nova e potente ferramenta para desmascarar pequenos déspotas como o Juiz da Operação Lava Jato. Novas peças aos moldes de Martins Pena são necessárias.
  
   




[1] Fato histórico que ocorreu após a fundação do Banco do Brasil nos anos seguintes à independência.  
[2] A própria vinda da corte ao Rio de Janeiro promoveu importantes mudanças na cidade e no país, com o desenvolvimento do mercado interno com o crescimento urbano, a fundação da imprensa régia, fundação da Academia Real Militar, do Museu Real, do Jardim Botânico, Missão de Artistas e de Naturalistas e criação da Casa da Agricultura na Bahia. E particularmente ao que nos interessa, a construção do Real Teatro São João inaugurado em 1813 com a ópera O Juramento dos Numes.
[3] Trata-se do jornal fluminense "O Espelho", datado de 20 de setembro
[4] O Brasil assina um Tratado de Cessação do Tráfico de escravos Brasil-Inglaterra (1826), mas além de resistência quanto à vigência da norma no país, o Brasil é negligente na aplicação da lei, em que pese importantes pressões britânicas – longe de ser humanitária, a cessão do tráfico para Inglaterra era parte de um projeto que envolvia uma nova orientação de regime de trabalho assalariado em seus domínios, que tivesse condão de criar um mercado consumidor para seus produtos em face de suas distintas etapas da Revolução Industrial. Depois de pressão, apreensão de navios e ameaças diplomáticas, a abolição definitiva no Brasil ocorre em 1850.  
[5] Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.

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