“O Noviço” – Martins Pena
Resenha livro – “O Noviço / O Judas em Sábado de
Aleluia” – Martins Pena – Editora Ática
Resenha Livro – “O Noviço / O Juiz de Paz na Roça”
– Martins Pena – Editora Sol Objetivo
“Se se perdessem todas as leis, escritos, memórias
da história brasileira dos primeiros cinquenta anos desde século XIX e nos
ficassem somente as comédias de (Martins) Pena, era possível reconstruir por
elas a fisionomia moral desta época”. Sílvio Romero (1851 – 1914) – Crítico Literário
O enunciado
acerca da obra deste precursor da dramaturgia no Brasil não esgota as novidades
e a importância geral das peças acerca dos costumes da corte ou mesmo do
interior do Brasil das primeiras décadas do século XIX.
Martins Pena se sobressai de fato como introdutor
do teatro de costumes no Brasil e ao fazê-lo retratou a sociedade de seu tempo
ensejando um importante interesse histórico: desde as relações sociais e
conjugais, até os abusos do poder dos juízes de paz, da corrupção com a falsificação
de moedas[1],
até o paternalismo envolvendo funcionários públicos, muitos dos impasses de outrora continuam.
O
que há de se constatar é uma certa atualidade, como veremos, em muitas das
passagens das peças, e aqui reside um ponto que parece dizer tanto à
perspicácia do artista que retrata o seu tempo quanto ao contexto histórico
especial que perpassa um processo histórico de longa duração desde 1808 com a
vinda da Família Real portuguesa e a instalação da sede da corte no Rio de
Janeiro[2], a
elevação do Brasil a condição de Reino Unido de Portugal Brasil e Algaveres em
1815, a Revolução do Porto em 1820 com objetivos de aniquilar com o Antigo
Regime, restituir/reestabelecer Portugal no interior do Império português o que
foi interpretado por deputados brasileiros como um movimento no sentido de
reecolonização do Brasil, dando impulso ao movimento de independência, que
teria prosseguimento com o dia do Fico em 9 de Janeiro de 1822, o 7 de Setembro
(cujo significado concreto é de pouca relevância tendo sido o grito do Ipiranga
sequer repercutido nos jornais da época com uma única exceção[3]),
até a aclamação de D. Pedro como Imperador.
Este panorama deve nos orientar no sentido de que
o contexto em que Martins Pena escreveu suas peças é um momento decisivo para o
país, fase da independência, da consolidação inicial da nacionalidade, mas de
um país ainda eivado pela escravidão, pelo patrimonialismo, pela corrupção que
engessa o serviço público, pelo compadrio, pela força do poder local associada
ao modelo jurídico institucional português do Antigo Regime. E no “privado” pelas
relações conjugais eivadas por interesses pecuniários, algo se não distinto dos
dias de hoje, diferente na forma, havendo na comédia de costumes, sempre uma
orientação moralista que em “O Noviço” revela o crime da bigamia, a condenação um
tanto velada da viúva que não se ressente do falecido e busca um novo amante
(por quem acaba enganada) e um cruel destino da jovem namoradeira (Maricota) em
contraponto ao modelo de jovem “recatada e do lar” (Chiquinha) – peça “O Judas
em Sábado de Aleluia”.
O que queremos indicar aqui é que ao retratar os
costumes de uma conjuntura histórica que dizia respeito à fase do advento da
nacionalidade, ou talvez, em face do peso ou fardo do nosso passado ou herança
de vícios com a nação em nascimento, Martins Pena acabou se tornando algo
profético ou atual. Assim diz um de seus personagens que “as leis criminais
fizeram-se para os pobres” (fala então Ambrósio em “O Noviço”) ou práticas de
corrupção em entes públicos como o suborno para a não convocação à Guarda Nacional
(“O Judas em Sábado de Aleluia”) ou a arbitrariedade judicial (“O Juiz de Paz
na Roça”). Todos revelam uma atualidade incrível das peças.
Autor e Obras
Luís Carlos Martins Pena nasceu no Rio de Janeiro
em 05.01.1815. Ficou órfão de pai quando tinha um ano e de mãe quando tinha 10
anos, tendo sido educado pelo tio materno. Embora não tivesse vocação para o
comércio, foi obrigado a estudar contabilidade e leis de comércio de 1832 e
1835. Tal fato pode sugerir algo de auto-biográfico quanto ao personagem
central Carlos, do Noviço, garoto matreiro e apaixonado pela prima, porém
internado num convento por um tio mal intencionado que intentava desfazer o
casamento para, com os votos de pobreza do sobrinho, tirar de vista um herdeiro
da herança da rica cônjuge e tia do noviço. Carlos descobre os movimentos
sinuosos e mal intencionados do tio, bem como revela a sua não inclinação pela
vida monástica, foge do convento e causa enorme tribulias junto aos frades:
“CARLOS- E que culpa tenho eu, se tenho a cabeça
esquentada? Para que querem violentar minhas inclinações? Não nasci para frade,
não tenho jeito nenhum para estar horas inteiras no coro a rezar com os braços
encruzados. Não me vai o jejuar: tenho, pelo menos três vezes ao dia uma fome
de todos os diabos. Militares é o que quisera ser; para aí chama-se a
inclinação. Bordoadas, espadeiradas, rusgas é que me regalam; esse é o meu
gênio. Gosto de teatro, e de lá ninguém vai ao teatro, à exceção de Frei
Maurício, que frequenta a plateia de casaca e cabeleira, para esconder a coroa”.
No limite um Padre Mestre dos Noviços e outros figurantes
da igreja vivenciaram momentos cômicos, de rebuliço e confusão em função das brejeirices
do Noviço mais rebelde do convento – a maior delas quando se veste de mulher e
envia suas vestes à pobre Rosa, causando um “tumulto público”. Fora os risos, a
Igreja e a religião não são objeto de crítica: dentre as falas, fica-se claro
que é a ganância de Ambrósio e a inocência de Florência (sua segunda mulher)
que é uma viúva rica e se deixa seduzir pelo oportunista, os responsáveis por
fazer com que Carlos, jovem sem qualquer inclinação para a vida no monastério,
para lá seja enviado. Diferente portando das ponderações de “O Seminarista”
(1872) de Bernardo de Guimarães, uma tragédia romântica cujo mote é justamente
os efeitos deletérios da falta de inclinação e a vida forçada no seminário.
Todavia, é importante ressaltar: o teatro de
costumes se desenvolve em Martins Pena a partir de uma narrativa moralista, com
uma intencionalidade clara de instrumentalizar a arte como forma de educar ou
intervir na sociedade. Certamente estamos aqui nos albores da narrativa
nacional e não se observa uma sondagem das cogitações psicológicas/internas das
personagens, de suas contradições com uma depuração que as inovações do
realismo literário a partir de Machado de Assis e especificamente Eça de
Queirós desde Portugal (que em sua fase realista, também assinalava um sentido
reformador) alcançaram. Aqui se observa ainda um tom moralista e maniqueísta
que se adéqua formalmente a um teatro de estilo de comédia, voltado a entreter,
arte acessível a um público em sua maioria iletrado, e como não poderia deixar
de ser, dadas as circunstâncias históricas, com certa superficialidade na
tintura dos traços psicológicos. Nesta forma que combina um discurso moral e o
gracejo, cada personagem agrega características pontuais, uns são bons, outros
são maus, uns são fortes, outros são fracos, uns são honestos, outros são
desonestos – a contradição e a complexidade do indivíduo no teatro,
encontraríamos muito depois, podendo suscitar 1940 com “Vestido de Noiva” de
Nelson Rodrigues e 1950 com o “Pagador de Promessas” de Dias Gomes.
Infelizmente atual
“O Juiz de Paz na Roça” foi a primeira peça
escrita por Martins Pena – redigida em 1837 e encenada no teatro São Pedro em 10.08.1839.
Desde o ponto de vista histórico, retrata a vida difícil dos lavradores
(pequenos proprietários, categoria comumente negligenciada pela historiadores)
no interior do Brasil. Costumam viver em pequenas propriedades como é o caso de
Manuel João, têm pouca monta de capital e de escravos e naquela conjuntura de
leis restritivas de abolição do tráfico[4],
encontram enormes dificuldades de subsistência – na história falta carne seca
para família e para o escravo só sobra laranja com farinha. A história retrata
o recrutamento de ofício pelo Juiz de Paz de cidadãos como Manuel João para a
Guarda Nacional.
Certamente dentre as críticas atuais que perpassam
a obra do “O Juiz de Paz na Roça”, nenhuma delas parece cair melhor do que a
arbitrariedade do poder jurisdicional, ainda que aqui se deva evitar o
anacronismo – ler desejos pessoais ou aspectos do presente do passado
conferindo um erro de cronologia. Os Juízes Togados de hoje eram distintos do
modelo dos juízes de paz, em geral juízes leigos em direito (fato aliás
reiterado na peça com efeitos cômicos), com ampla jurisdição (poderíamos dizer
competência mais propriamente, tratando de assuntos judiciais, administrativos,
eleitorais e de polícia) e, importante, eram juízes eleitos, ainda que por um
reduzido eleitorado proprietário. O Juiz de Paz mais do que tudo era parte de
uma articulação do Poder Local que remete a uma estrutura de poder do Antigo
Regime que, num Império Continental como o Português que envolvia possessões em
África e Ásia, dependia de relações bastante específicas de imbricação de poder
baseadas na concessão de honras e mercês, na ampliação do poder local em troca
da obediência ao Poder Régio – uma mútua relação de dependência, legitimação e
concessão de poder. De outro modo não é de se estranhar que uma herança com
relação aos abusos de poder, especificamente envolvendo magistrados, não tenham
vínculos com esta conformação tradicional de poder local, desnudada de forma
irônica e engraçada na figura de um Juiz Glutão que concilia duas partes que
litigam em torno de um Porco propondo que o suíno seja remetido ao....Juiz,
preferencialmente cozinhado com ervilhas. Vejamos:
“JUIZ – Não posso deferir por estar muito
atravancado com um roçado; portanto, requeira ao suplente, que é meu compadre
Pantaleão.
MANUEL ANDRÉ – Mas, Sr. Juiz, ele também está
ocupado com uma plantação.
JUIZ- Você Replica? Olhe que o mando para cadeia.
MANUEL ANDRE – Vossa Senhoria não pode prender-me
à toa; a Constituição não manda.
JUIZ- A Constituição! Está Bem! Eu, o Juiz de Paz,
hei por bem derrogar a Constituição! Sr. Escrivão, tome termo que a
Constituição está derrogada, e mande-me prender este homem.
MANUEL ANDRÉ – Isto é uma injustiça!
JUIZ – Ainda Fala? Suspendo-lhe as garantias...”
Está em curso a operação Lava Jato que em termos
jurídicos já tem levado à sociedade propostas como a relativização da vedação do
uso de provas ilícitas no processo e efetivou a repercussão em rede nacional de
interceptação telefônica resguardada por segredo de justiça que de acordo com o
art. 10 da lei 9296 deveria levar o Juiz Sérgio Moro a ter cometido crime pela
supracitada lei com pena de reclusão de 2 a 4 anos e multa[5]. A
operação Lava Jato é a peça jurídica central do golpe de estado que está em
curso no Brasil com ativa participação do poder judiciário. Não se trata do
mesmo poder judiciário dos poderes provinciais baseados no poder local do Brasil dos primeiros anos do séc. XIX – mas a
mesma arbitrariedade ridicularizada por Martins Pena está amplamente divulgada
na internet nas audiências da Lava Jato dirigidas pelo Juiz Sérgio Moro, neste
momento, um dos principais inimigos da esquerda, dos democratas e dos patriotas
do país. Que o humor deixe de ser combatido pelas “minorias” da esquerda pós
moderna (feministas, LGBTS, etc.) e volte a ser uma nova e potente ferramenta
para desmascarar pequenos déspotas como o Juiz da Operação Lava Jato. Novas
peças aos moldes de Martins Pena são necessárias.
[1] Fato histórico que ocorreu
após a fundação do Banco do Brasil nos anos seguintes à independência.
[2] A própria vinda da corte ao Rio de Janeiro promoveu
importantes mudanças na cidade e no país, com o desenvolvimento do mercado
interno com o crescimento urbano, a fundação da imprensa régia, fundação da
Academia Real Militar, do Museu Real, do Jardim Botânico, Missão de Artistas e
de Naturalistas e criação da Casa da Agricultura na Bahia. E particularmente
ao que nos interessa, a construção do Real Teatro São João inaugurado em 1813
com a ópera O Juramento dos Numes.
[4] O Brasil assina um Tratado de Cessação do Tráfico de escravos
Brasil-Inglaterra (1826), mas além de resistência quanto à vigência da norma no
país, o Brasil é negligente na aplicação da lei, em que pese importantes
pressões britânicas – longe de ser humanitária, a cessão do tráfico para
Inglaterra era parte de um projeto que envolvia uma nova orientação de regime
de trabalho assalariado em seus domínios, que tivesse condão de criar um
mercado consumidor para seus produtos em face de suas distintas etapas da
Revolução Industrial. Depois de pressão, apreensão de navios e ameaças
diplomáticas, a abolição definitiva no Brasil ocorre em 1850.
[5] Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de
comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da
Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.
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