segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

“Manifesto do Partido Comunista” – Karl Marx e Friedrich Engels

“Manifesto do Partido Comunista” – Karl Marx e Friedrich Engels



Resenha Livro - “Manifesto do Partido Comunista” – Karl Marx e Friedrich Engels – Ed. Martim Claret
                
“Os Princípios Comunistas de modo algum se apoiam em ideias ou princípios inventados, ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo.
                
Eles são apenas a expressão geral das relações reais de uma luta de classes  existente, de um movimento histórico que ocorre diante de nossos olhos”. (p. 126)
                
As poucas linhas supracitadas por um lado revelam um dos vários aspectos a partir dos quais este “Manifesto” revela um caráter profético e por outro lado ilustra a especificidade do texto em face de todas as demais produções teóricas, jornalísticas e partidárias de Marx e Engels.

No que tange ao profético, constata-se que o Manifesto foi redigido em 1847 e publicado em 1848, pouco antes da derrota do levante operário parisiense de Junho de 1848: a história do manifesto, como veremos, reverbera os avanços e recuos do movimento operário. Sua disseminação em dado contexto, espaço e lugar é um barômetro das condições de organização da classe operária, observando-se maior repercussão do panfleto nas jornadas de 1871 com um novo levante desde a Comuna de Paris, ou ao um novo contexto de conformação de partidos operários. Um modelo partidário de um tipo diferente dos modelos associativos de meados do séc. XIX que até provocou a mudança do título nas edições posteriores.  

Quanto à especificidade do “Manifesto Do Partido Comunista”, deve-se aqui confrontar o texto com uma proposta de leitura científica da obra de Marx.

Durante muito tempo na história, pareceu ter sido comum uma leitura das obras de Marx sem a preocupação em face de algo que parece ser até trivial: cotejar cada produção, cada obra, cada artigo, com o momento correspondente da biografia intelectual do autor, de molde a situar as diferentes nuances teórico-metodológicas correspondentes a diferentes estágios de uma vida intelectual em evolução. Parte-se do pressuposto de que Marx não nasceu marxista e de que as grandes descobertas teóricas e contribuições para a intervenções práticas devem ser devidamente dosadas, consoante diferentes estágios, etapas de desenvolvimento intelectual: desde quando estudante de Direito de Bonn, até sua transferência à Universidade de Berlin donde Marx tem contato e se associa aos jovens hegelianos de esquerda, passando aos seus estudos de filosofia grega doutorando-se em Demócrito e Epicuro, passando pela sua atividade jornalística, já desde uma posição política progressista, até o contato junto ao movimento operário desde Paris, incrementado após os encontros junto a Engels (então já autor do “A Situação da Classe Trabalhadora da Inglaterra”), passando pela atividade política clandestina, os mais de dez anos dedicado aos estudos de economia política em Londres resultando nos trabalhos do “Capital”, cujas descobertas, L. Althusser equipara em relevância à contribuição de Galileu para a física e à contribuição dos gregos para a matemática.

Seria apenas em meados do séc. XX particularmente a partir de Galvano Della Vope e principalmente de Louis Althusser que se passaria de uma “leitura de orelha” das obras de Marx para uma proposta de interpretação científica do conjunto da produção do velho mouro: a conclusão a que chega Althusser, com algumas retificações ao longo da vida, é que não há uma solução de continuidade, mas antes um “corte epistemológico” dentre obras de juventude de Marx (Questão Judaica de 1843, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel de 1844, Manuscritos Econômico Filosóficos de 1844); um momento de corte (que em termos históricos é de longa duração e se situaria com a publicação de 1846 de "A "Ideologia Alemã", implicando o rompimento com a tradição do idealismo e galgando os conceitos do materialismo histórico para o repertório conceitual de Marx); um momento de maturação que se estende por obras que envolvem o “18 de Brumário” (1852) e “Contribuição à Crítica da Economia Política” (1859) até o momento de plena maturidade advindo do V. I de O Capital (1867), obra que Marx dedica mais de 10 anos para sua consecução e que possui as categorias teórico-metodológicas ausentes na fase juvenil e em fase de desenvolvimento na de maturação.

Os marxistas contrários ao ponto de vista Althusseriano, em geral, buscam encontrar respaldo entre uma solução de continuidade dentre as obras de “juventude” e “maturidade”. Parece-nos que em um aspecto tais autores buscam fundamentar seu raciocínio com acerto: através do legado hegeliano em Marx que se faz presente através da dialética (recolocada desde uma orientação materialista) e que torna possível inclusive a consecução de uma análise também histórica do “Capital”, particularmente, do capítulo “Da Assim Chamada Acumulação Primitiva”, passagens não de “teoria pura” (como diz Althusser), mas da história em suas múltiplas determinações dialéticas. Lênin fez ele próprio um estudo filosófico de Hegel para afirmar que aquele que quer dominar o marxismo necessariamente precisa entender a filosofia hegeliana – e se por um lado o cotejo entre a biografia intelectual, a avaliação da densidade teórica das obras e uma proposta de interpretação científica consoante os pressupostos da própria evolução intelectual de Marx em Althusser sejam pertinentes, algumas chaves explicativas permanecem em aberto.

“O Manifesto Comunista”, um livro considerado de “maturação”, não deve ser em primeiro lugar interpretado como uma obra teórica ou conceitual, mas uma intervenção política partidária de intervenção na realidade.

A Liga Comunista, então na clandestinidade, realiza um congresso em Londres (1847) e publica o seu programa, redigido por Marx e Engels[1]. A Liga fora uma associação inicialmente alemã que posteriormente se propõe a ser um grupo internacional (Associação Operária Internacional). Ocorre que a história do Manifesto e de sua recepção/difusão parece refletir a história do movimento operário. Seu lançamento está relacionado com a derrota dos trabalhadores parisienses em Junho de 1848: inicialmente o texto é pouco divulgado em face da derrota. Nos lugares onde há Ascenso do movimento operário como a Polônia da década de 90 do séc.XIX há sinais de circulação e ampliação do circulo de leitura do documento, ocorrendo também o inverso: nos momentos de refluxo e derrota suspende-se a circulação do Manifesto.

Por outro lado, sabe-se que em 1848 Marx ainda não perfaz um estudo sistemático da “Crítica da Economia Política”. Parece haver questões conceituais silentes no texto, como o problema da mercadoria, negligenciado em detrimento da propriedade privada. O Manifesto dá centralidade à propriedade privada – que é a expressão jurídica do capital – sem fazer menção ao problema da mercadoria (tema do 1º Capítulo do Volume  I do Capital). A expropriação da propriedade privada é a primeira medida programática do programa partidário, não se colocando em questão de forma mais detida a socialização dos meios de produção desde as fábricas, a extração de mais valor e sua interdição dentro de um projeto societário alternativo e outras temáticas cujo arsenal conceitual decorreriam da crítica da economia política, algo determinado posteriormente no pensamento de Marx.  

Todavia, a leitura do livro possui passagens já de uma avançada compreensão acerca da Luta de Classes e sua universalidade na história desde sociedades pré-capitalistas; a transitoriedade da sociabilidade burguesa que naquele contexto tanto luta contra resquícios do feudalismo e da velha sociedade do Antigo Regime (para a qual conta com o apoio do proletariado) quanto já encontra embates diretos contra o proletariado – predominando em nível mundial a segunda tendência. E em dois aspectos, do Manifesto aparece o brilhantismo de uma capacidade intelectual capaz de fazer prognósticos mais de 160 depois bastante atuais:

(1)    As Crises Capitalistas: no passado as relações feudais de produção entram em contradição com as forças produtivas desenvolvidas pelo comércio e pela indústria, potencializando o advento de crises a partir das quais irrompem as novas sociedades sob o jugo da burguesia, com os novos arranjos institucionais. Marx identifica nas crises capitalistas que envolvem a superprodução que coexiste junto à miséria de uma ampla maioria um sinal de uma nova contradição, situando um aurora de uma nova sociabilidade comunista. As modernas indústrias concentram o proletariado como um exército e a burguesia cria seu próprio coveiro:

“Hoje assistimos a um processo parecido. As relações burguesas de produção e de circulação, as relações burguesas de propriedade, a moderna sociedade burguesa, que conjurou meios de produção e de circulação tão poderosos assemelha-se ao feiticeiro que não consegue mais dominar as forças infernais que evocou. Há décadas, a história da indústria e do comércio é somente a história da revolta das modernas forças produtivas contra modernas relações de produção, contra relações de propriedade que são as condições de existência da burguesia e de seu domínio”.   

(2)    Aquilo que hoje chamamos de globalização já é previsto plenamente por Marx, com detalhes, num momento em que o Capitalismo e a Burguesia ainda se debatem em Europa na constituição de Estados Nacionais, quando  é parte inclusive do próprio programa partidário a conformação de uma frente partidário junto ao “terceiro estado” em face do Antigo Regime em países atrasados. Por outro lado, dentre o eixo programático, bandeiras como “Imposto Progressivo”, “Centralização do Crédito” ou “Aumento das Fábricas Nacionais”, longe de se reduzirem ao programa comunista, seriam parte programática perfeitamente cogitadas pelos capitalistas, particularmente em contexto de acirramento de lutas de classes, como forma de contenção da revolução.  

Se o Manifesto é a expressão (consciente e madura) de um movimento real, a conclusão dentro do contexto da globalização pós URSS é a de que o movimento operário foi levado a uma derrota parcial. Todavia, a leitura do livro deve trazer sensações opostas ao pessimismo  àqueles que ainda reivindicam o horizonte comunista tantos anos depois. Trata-se da esperança depositada por Marx ao proletariado como coveiro da burguesia e sujeito protagonista da mudança no sentido da sociedade não mais cingida em classes sociais: a única classe social na história capaz de emancipar toda a humanidade. Em especial considerando o proletariado de 1847, submetido a jornadas de mais de 10 horas, habitando locais de moradia e trabalho insalubres, sem acesso aos bens culturais e comparado pelos pares liberais “a animais de carga”. São estes sujeitos que Marx deposita todas as esperanças para o Futuro, violando os ceticismo de muitos da esquerda de hoje que negligenciam a centralidade da classe que vive do trabalho. Alguns dizem “Adeus Trabalho” e proclamam um novo sujeito dentre um rastro de minorias e movimentos dispersos (mulheres, homossexuais, verdes), não unificados numa luta em torno da origem comum da exploração: o modo de produção capitalista. Eis a grande mensagem do Manifesto: o princípio da esperança em torno da centralidade e do protagonismo da classe trabalhadora. 





[1] Ou mais exatamente, o segundo reconhece ter sido o manifesto predominantemente redigido por Marx em Prefácio da Obra. 

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