“O Duelo” – A. P. Tchekhov
Resenha Livro – 208- “O Duelo” – A. P. Tchekhov – Ed. 34 – Trad. Marina Tenório
O escritor russo A. Tchekhov desenvolveu e mesmo especializou-se no gênero dos contos, fato que diria respeito a questões específicas de sua trajetória de vida. Nascido na cidade portuária de Taganrog no sul da Rússia em 1860, o escritor é filho de um humilde comerciante local e de avós servos. Diferentemente, portanto, de escritores advindos da aristocracia russa do XIX, Tchekhov tem esta característica de origem social baixa: em 1879 ingressa na Faculdade de Medicina de Moscou e para sobreviver, sustentar a família e cobrir as despesas estudantis, passa a publicar seus primeiros contos em periódicos de jornais moscovitas. Aqui seria o seu ponto de partida como contista.
Mesmo após a formatura de Tchekhov como médico, sua fama como escritor já estava se consolidando e em 1886 passa a escrever para a revista Nóvoie Vrênia. Se por uma questão contingencial os contos seriam o gênero literário decididamente mais desenvolvidos na obra do escritor, e aqui destacamos os contos mais famosos, “A dama do cachorrinho” (1899) e “O assassinato” (1895), Tchekhov também desenvolveria trabalhos no gênero do teatro “Tio Vânia” (1897); “Três irmãs” (1901); e “O Jardim das cerejeiras” (1904), além das novelas.
A título de esclarecimento, podemos situar a novela como um meio termo entre o conto e o romance. Não só obviamente no que se refere ao número de páginas, mas à extensão e profundidade das histórias, aos desmembramentos da narrativa, eventualmente mesmo até ao número das personagens. “O Duelo” é uma novela publicada por Tchekhov no ano de 1891.
Na sociologia, um recurso interpretativo comumente utilizado é o do “tipo ideal”. Sua origem remete ao sociólogo alemão Max Webber e, na persecução de modelos comuns para finalidades interpretativas, realça-se os aspectos do fenômeno analisado quase como uma caricatura que evidencia por ex. um grande nariz ou qualquer outro traço em evidência. O “tipo ideal” e a caricatura possuem este caráter de esclarecimento ao atender aos aspectos mais evidentes e que saltam aos olhos do fenômeno – e, por suposto, a finalidade do tipo ideal é a de servir como chave explicativa do exame sociológico. Algo parecido pode ser dito no âmbito literatura. É frequente na cultura de cada povo alguns personagens bastante populares que são reiterados nos distintos gêneros, da literatura à música, etc. No Brasil, para citarmos apenas um e o mais famoso, temos o malandro, que desponta das músicas de Chico Buarque de Holanda até Macunaíma de Mário de Andrade.
Na Cultura Russa desenvolveu-se no século XIX o equivalente a também um personagem popular, a figura do homem supérfluo, personagem retratado por Turguêniev em Rúdin (ver resenha aqui: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2015/01/rudin-ivan-turgueniev.html) e outros.
A origem do homem supérfluo é a modernização da Rússia desde meados do séc. XIX tendo como marco essencial o fim da servidão. A influência de ideias liberais, de filósofos que se contrapõem ao peso da tradição secular da religião ortodoxa, as mudanças mesmas no estilo de vida nas capitais engendram uma intelligentsia que teria feito como que a tradição, segundo alguns críticos, teria sido mutilada pela civilização.
Segundo o posfácio de Marina Tenório:
“Voltemos, porém, ao séc. XIX. Nesse período, começa a ganhar força um novo grupo social, os raznotchíntsi. Saídos de vários estamentos (clero, camponeses, mercadores, soldados, funcionários públicos) e agora com formação superior, não voltavam à própria classe, mas passavam a exercer sobretudo profissões liberais. Essa camada foi o grande celeiro daquilo que depois veio a ser conhecido como intelligentsia russa. Nos meados do século, é ela que começa a ganhar posições de destaque e a ditar tendências no pensamento social, filosófico, artístico, fazendo a aristocracia perder sua posição exclusiva de elite cultural”
Laiévski representa o homem supérfluo e é o protagonista da história “O Duelo”. Foge com Nadiéjda Fiódorovna de São Petersburgo: a mulher era casada, mas ambos se amam e decidem se refugiar numa pequena província no Cáucaso, banhada pelo Mar Negro. Antes desta aventura, planejada de modo que aos dois parecia os banhos de mar, o sol, a vida em harmonia com a natureza e longe da cidade, a Laiéviski não parecia que haveria os percalços. Não ponderou os pequenos e graves inconvenientes. Quando chegaram ao Cáucaso tiveram que enfrentar o sol escaldante, mosquitos, a mesma refeição que enjoara o protagonista, o tédio mortal e o mal olhar e julgamento de todos os moradores que em pouco tempo sabiam que aquele casal vivia numa situação inadmissível aos olhos de deus, tendo ora a mulher seduzido um homem que poderia perfeitamente ter constituído uma família e tendo o homem seduzido uma mulher casada e destruído uma família.
Laiévski vai se desesperando com sua situação e deseja romper, mas não tem como deixar Nadiéjda para trás, diante de inúmeros credores, falta de dinheiro e principalmente pena da mulher. Sua conduta é vacilante, na verdade. Von Koren, um zoólogo que odeia o protagonista, reforça sua falta de indulgência consigo próprio. Diz Laiéviski:
“Sou um homem fútil, medíocre, degradado! O ar que respiro, esse vinho, o amor, em uma palavra, a vida, eu a comprei até agora com mentiras, ócio e covardia. Até agora fiquei enganando os outros e a mim mesmo, sofria com isso e os meus sofrimentos eram baratos e vulgares. Eu me curvo timidamente diante do ódio de Von Koren porque de tempos em tempos eu mesmo me odeio e me desprezo”.
Do outro lado, Nadiéjda deixa-se seduzir por dois outros homens distintos, em momentos diferentes, completando a total desmoralização do casal, particularmente diante círculo social do pequeno distrito local. Seu desespero também a leva a pensar em fugir de modo que cada um do par pensa em fugir do outro, sem revelar seus segredos: o fim do amor que se revelara desde o equívoco da empreitada. Toda esta situação parece sem saída quando, numa discussão com Von Koren, Laiévski é desafiado a um Duelo.
O Duelo é uma prática que remete aos tempos medievais, não só na Rússia. Está relacionado ao princípio da honra, que foi ferida: o propósito do duelo é restaurá-la. Não avançaremos aqui, desde que não é a intenção desde resenhador revelar os últimos detalhes do livro e incentivar a leitura da novela.
De outra forma, A. Tchekhov é um escritor muito longe de ser despolitizado, mas que nem por isso se situa, num plano de interpretação de suas intencionalidades políticas, dentro de um campo facilmente identificável. Parece estar mais identificado com questões existenciais e profundas, o que faz com que sua obra, escrita em fins do séc. XIX, ainda nos seja muito comoventes.
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