“Fuga da História?” – Domenico Losurdo
Resenha Livro – 207 “Fuga da História? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas hoje” – Domenico Losurdo – Editora Revan
Domenico Losurdo é historiador marxista italiano com uma vasta produção teórica. É um autor particularmente importante para a esquerda em função de sua capacidade de fazer uma crítica radical, que muitas vezes envolve também posicionamentos bastante recorrentes dentro da esquerda. É professor de filosofia da história da Universidade de Urbino e tem uma pesquisa específica sobre a questão do totalitarismo, sobre as ideias de Gramsci e uma contribuição bastante original sobre a história da URSS, principalmente a partir de sua biografia de Stálin, um título que coloca a discussão sobre o stalinismo em termos realistas e objetivos.
Lênin morre em 1924 quando os camponeses russos ainda cultivam a terra com instrumentos feitos de madeira, da mesma forma como o faziam durante o feudalismo – o país ainda está impactado pelos efeitos da guerra civil, sob a mira de diversas nações imperialistas. Stálin assume a direção do partidona década de 1920, organiza e prepara o povo russo para a vitoriosa guerra patriótica e deixa o poder na década de 1950 sendo URSS a segunda potência mundial. Um revolução em níveis jamais vistos de desenvolvimento de forças produtivas foram feitas ao ponto de assombrarem os mais céticos críticos do ocidente. O mesmo pode-se falar sobre aumento do nível de escolaridade de uma gama gigantesca da população. São fatos históricos comumente ocultados por discursos ideológicos que tem vasta influência também na esquerda.
“Fuga da História” retoma este ofício do historiador que acima de tudo é um crítico radical – e que, no caso de Losurdo, se soma a uma saborosa narrativa cheia de ironias, o que torna a leitura ainda mais interessante. Outrossim, “Fuga da História” tem um outro significado, a “praga da autofobia”. Comumente, grupos étnicos, religiosos ou mesmo políticos quando sofrem uma perseguição diuturna podem capitular ao ponto de adotar como seu o ponto de vista de seus opressores. Fazem-no até o ponto de desprezar e odiar a si próprios. Este é o sentido geral deste apanhado de textos sobre o significado da Revolução Russa e da Revolução Chinesa: observa-se como a praga da autofobia acaba sendo assimilada por aqueles que se proclamam marxistas, mas renegam a experiência de outubro e falam de uma “Volta a Marx”. Diz Losurdo:
“Eis que emerge a palavra de ordem “volta a Marx”. Seria fácil demonstrar que Marx é o filósofo mais decisivamente crítico da filosofia dos retornos. Em sua época, desprezou aqueles que, em polêmica com Hegel, queriam voltar a Kant ou, definitivamente, a Aristóteles! Volta a entrar, no abc do materialismo histórico, a tese segundo a qual a teoria se desenvolve a partir da história, da materialidade dos processos históricos. O grande pensador revolucionário não hesitou em reconhecer o débito teórico contraído por ele em relação à breve experiência da Comuna de Paris: atualmente, ao contrário, décadas e décadas de um período histórico particularmente intenso, da Revolução de Outubro à chinesa, cubana, etc., devem ser declaradas destituídas de significado e de relevância no que diz respeito à “autêntica” mensagem de salvação já consignada, de uma vez por todas, em textos sagrados, que teriam apenas de ser redescobertos e reanalisados religiosamente”.
Bom ressaltar que os ensaios foram redigidos em meados dos anos 1990, momento de ofensiva do neoliberalismo e seu discurso de “fim do socialismo real” ou mesmo “fim da história” – nesta situação de bastante confusão que a “autofobia” tem o condão de atingir as fileiras comunistas. Para Losurdo a autocrítica é o contraponto necessário e urgente da autofobia. A autocrítica é o acerto de contas com o passado, enquanto justamente a autofobia é a “Fuga da História”.
E nesse trabalho necessário de esclarecimento e autocrítica, que talvez somos levados a observar que onde há mais confusão nas fileiras da esquerda é nas análises da China. Podemos sondar as organizações e forças políticas de esquerda aqui no Brasil, dentre marxista-leninistas, trotskystas ou anarquistas, e haverão muitos que dirão que na República Popular Chinesa está em curso ou se concretizou restauração capitalista. Sobre este tema se posiciona Losurdo:
“Sob essa luz, precipitados e superficiais tornam-se os discursos que falam, com um juízo de valor positivo ou negativo, de “restauração do capitalismo”. Convém, em vez disso, considerar uma preciosa indicação metodológica de Gramsci. Ele formulou a tese que a revolução burguesa na França abrange um período que vai de 1789 a 1871, isto é, do colapso do antigo regime até a III República. Para que uma revolução possa considerar-se concluída, não é suficiente uma nova classe conquistar ou consolidar o poder; é necessário também que ela encontre uma forma política relativamente estável de gestão do poder. Entre 1789 e 1871 sucedem-se de modo tumultuado as mais variadas formas políticas (a monarquia constitucional, experiências republicanas de breve duração, a ditadura militar, o Império, o regime bonapartista etc.) até a burguesia francesa encontrar na república parlamentar a forma política normal e estável de exercício de seu poder e de sua hegemonia. No que diz respeito à China, a novidade surgida da revolução está ainda à procura não só da forma política, mas também de conteúdos econômico-sociais em que deveria encontrar expressão estável. Estamos em presença de um processo de longa duração e em pleno desenvolvimento, o qual já conseguiu resultados extraordinários, mas seus ulteriores desenvolvimentos e seu êxito são totalmente imprevisíveis”.
Talvez mais grave e simbólico seja o caso do Tibet. Losurdo lembra que Mao Tse Tung já bem considerava o Tibet como “parte integrante do território nacional chinês”. E mais. Se no passado colonial a memória chinesa remete a espoliação, ao racismo e à guerra, sob o regime comunista desde 1949, uma série de reformas fizeram com que o povo do Tibet tivesse acesso a direitos humanos nunca antes conhecidos e um sensível aumento da expectativa de vida. O mais provável é que um referendum no Tibet teria como maioria pela continuidade da província à República Popular Chinesa, em que pese toda a propaganda imperialista e o papel desempenhado por Dalai Lama, que, sob um pretenso e falso discurso de defesa dos direitos humanos, aparenta convencer uma certa “esquerda democrática”. E aqui os riscos são imensos porque o imperialismo verdadeiramente opera sob este falso e hipócrita discurso dos “direitos humanos” e de uma “universalidade democrática”: e aqui o caso da Nicarágua e sua revolução sandinista é exemplar.
“(...) deveria ainda ser fresca a recordação da tragédia que se abateu sobre a Nicarágua sandinista. A seu tempo, os EUA submeteram-na ao bloqueio econômico e militar, minaram seus portos, puseram-na sob uma guerra não declarada, mas sanguinária, suja e contrária ao direito internacional. Diante de tudo isso, o governo sandinista viu-se constrangido a tomar medidas tímidas de defesa contra agressão externa e a reação interna. E Washington exibia-se como defensor dos direitos democráticos ultrajados pelo “totalitarismo” sandinista. É como imaginar um carrasco que, depois de haver procedido à execução, põe-se a gritar escandalizado pela cor pálida e cadavérica da sua vítima. Uma atitude grotesca: todavia não faltaram almas generosas para se associarem aos brados de escândalo do carrasco e à condenação das medidas “liberticidas” de Ortega, cujo espaço de manobra diante da agressão foi progressivamente reduzido e anulado”.
A conclusão do processo histórico foi a derrota eleitoral dos sandinistas e a vitória do imperialismo. Conclui Losurdo:
“Só os lacaios e os imbecis podem celebrar essa infâmia e essa tragédia como triunfo da democracia. Exigir a introdução em Cuba do pluripartidarismo ocidental significa, nas atuais condições, trabalhar para uma réplica do triunfo do carrasco imperialista”.
E aqui no Brasil bem sabemos que o discurso imperialista da “democracia” em contraponto ao “totalitarismo comunista” tem grande inserção, especialmente dentre trotskystas que abertamente defendem a restauração capitalista de Cuba.
A editora Revan tem feito uma ótima contribuição para esquerda ao traduzir e introduzir ao público brasileiro este original historiador marxista. A lição principal deste livro de ensaios é esta: esclarecer o processo da fuga da história decorrente da”praga da autofobia” e fazer o contraponto por meio dos pressupostos teórico-metodológicos do marxismo e do materialismo histórico em particular para realizar a autocrítica.
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