“A Contestação Necessária” – Florestan Fernandes
Resenha Livro – 206 “A Contestação Necessária: Retratos intelectuais de incorformados e revolucionários” – Florestan Fernandes – Ed. Expressão Popular
Esta compilação de artigos e retratos de intelectuais e lutadores sociais foi inicialmente reunida pelo professor Florestan Fernandes no ano de 1995 sob a denominação de “Em Busca do Socialismo”. O trabalho seria recusado pela Editora Cortez e publicado postumamente sob a denominação “A Contestação Necessária” pelas editoras Ática e Xamã. Não se trata aqui se uma seleção de pesquisadores que influenciariam a produção teórica de Florestan Fernandes: desde suas pesquisas sobre os Tubinambás, à inserção dos negros na sociedade de classes, bem como aos limites históricos da revolução burguesa no Brasil, todo este arcabouço teórico estão bem delimitados em suas pesquisas, conferências e aulas. Também não se trata de um trabalho de história das ideias: os retratos de intelectuais inconformados e revolucionários envolve um recorte diferenciado, tendo como critério personagens que desde uma atuação no Brasil ou na América Latina, intervieram no sentido da revolução ou da reforma radical no sentido do socialismo.
Aliás, aqui é importante destacar um critério político importante para Florestan Fernandes e que, de resto, envolve toda sua estratégia política. Em diversas passagens de seus artigos o professor reivindica a passagem revolucionária, mas observa a importância de uma unidade junto aos reformistas ou mesmo aos “burgueses radicais”, dedicando aqui todo um capítulo a Fernando de Azevedo, um defensor de Educação Pública, professor e fundador da USP, sem qualquer perspectiva de ruptura institucional. Esta aliança entre reforma e revolução fica evidente em diversas passagens, mas particularmente neste capítulo:
“Façamos a revolução na escola antes que o povo a faça nas ruas’ . Está num livro dele (de Fernando de Azevedo). “Feita a revolução nas escolas, o povo a fará nas ruas, embora essa vinculação não seja necessária. Na China, em Cuba, na Rússia, sem passar pela escola, o povo fez a revolução nas ruas. Mas em um país como o Brasil, é necessário criar um mínimo de espírito crítico generalizado, cidadania universal e desejo coletivo de mudança radical para se ter a utopia de construir uma sociedade nova que poderá terminar no socialismo reformista ou no socialismo revolucionário. Eu prefiro a última alternativa. Fernando de Azevedo optaria pela primeira. Ambas são alternativas que nos põe no fluxo da história (...)”.
Esta mesma combinação entre reformas radicais diante de uma sociedade em que a burguesia débil e atrasada não concretizou qualquer revolução e em seu atraso histórico se aliou ao capitalismo financeiro e ao imperialismo irá explicar a opção, até os anos de 1994-5, de Florestan Fernandes, tanto pelo PT quando por Lula. Aliás, Luís Inácio abre a coletânea de artigos, menos pelos seus méritos individuais e mais como organizador coletivo e figura simbólica que representa. E, reforçamos, a opção estratégica de Florestan, dentro da qual reformistas e revolucionários caminham juntos em um mesmo partido envolve uma interpretação histórica que envolve particularmente a debilidade da burguesia brasileira e um programa que resolva os impasses de reformas inconclusas.
No prefácio da edição da Expressão Popular, Roberto Leher esclarece:
“Na perspectiva florestaniana é preciso buscar a chave interpretativa da fragilidade do projeto burguês (fragilidade em termos de um projeto autopelido de nação) patenteado pela cessão de funções cruciais para os militares, na correlação de forças das lutas de classes. Em sua interpretação, os subalternos não lograram força para interpelar de modo imperativo os dominantes que, por isso, puderam seguir com sua “revolução sem revolução” sem maiores sobre saltos. “Os de baixo não davam um basta, porque temiam agravar seus males. Os de cima comandavam sem receber dos de baixo uma cobrança definitiva”. (pg. 58).
E 20 anos após a morte de Florestan, observamos o encerramento catastrófico e desmoralizante do PT que envolve não só seus dirigentes reformistas, mas toda a esquerda. É toda a esquerda, incluindo seu setor revolucionário, que se encontra fragilizada e desmoralizada frente aos trabalhadores que, diante da lama da corrupção e da consecução de políticas de ajustes neoliberais, desconfiam (e diríamos com razão) dos socialistas.
Certamente Florestan Fernandes preparou esta coletânea de textos num contexto difícil da luta de classes em nível mundial: com o fim da URSS e a ofensiva neoliberal, diversos aparatos ideológicos estavam inteiramente mobilizados para decretar o fim do socialismo, o fim do marxismo, o fim da constituição da classe trabalhadora em si e para si – e poderíamos especular a razão pela qual toda uma mobilização ideológica para convencer a população mundial sobre algo que está morto e, portanto, inofensivo. Agora, em 2016, no Brasil, pobre de Florestan Fernandes se vivo fosse vendo sua estratégia democrático popular como justificativa para os dirigentes do PT levar a esquerda como um todo para a completa desmoralização: e aqui basta como exemplo sintomático, o ataque de hienas e coxinhas num aeroporto de fortaleza ao companheiro do MST João Pedro Stédile.
Voltando ao livro, alguns apontamentos finais. Em comemoração aos 20 anos da morte de Florestan Fernandes, a Editora Expressão Popular publica este livro até então pouco comentado. Dentre as figuras resenhadas citamos especialmente José Martí, cubano e herói da independência colonial. Uma justificava importante aqui é que a esquerda brasileira surge um pouco deslocada da tradição latino-americana de luta por emancipação – a mesma que envolve a revolução cubana, nicaraguense ou as jornadas bolivarianas na Venezuela. Martí não era propriamente um socialista, mas um nacionalista revolucionário do séc. XIX. Mariátegui por outro lado foi um expoente do marxismo latino americano e que, de maneira original, soube traduzir as premissas teorias à realidade peruana.
Enquanto as particularidades do sudeste asiático e china recomendavam uma aliança entre pequeno-burguesia e camponeses (kuomitang e PC chinês), por razões que remontam ao velho domínio senhorial e patriarcal, tal aliança seria inviável no Peru, que conta ainda com forte presença do componente indígena. De certa maneira pode-se traçar um paralelo entre Mariátegui e Caio Prado Júnior (outro rebelde resenhado por Florestan). Ambos trazem uma contribuição teórica original ao buscar interpretar a fundo a realidade nacional e suas especificidades por meio do marxismo e não servir-se de um “modelo” pré-estabelecido de interpretação eurocêntrico para suas realidades respectivas.
Dentre os diversos rebeldes, inconformados e revolucionários que constam no livro, certamente Florestan Fernandes poderia ser um deles. Para além de sua vasta produção como sociólogo, foi um intelectual orgânico até o fim da vida. Defensor militante da educação pública, foi deputado constituinte pelo PT e sempre teve uma vida plenamente engajada, colocando-se como socialista. Veio de origem muito humilde e na velhice, quando doente, foi oferecido a ele hospitais de qualidade fora do país para se tratar. Coerente com suas ideias socialistas – como a de defensor da saúde pública – negou todos estes convites e continuou sendo tratado em hospitais públicos no Brasil. De acordo com Florestan Fernandes Júnior, em documentário exibido pela TV Câmara, caso tivesse optado pelos convites de tratamento, certamente teria maior sobrevida. Podemos especular qual político, mesmo dentro da esquerda, teria o tamanho desta coerência.
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