segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

“Um Diário Russo” – John Steinbeck e Robert Capa

“Um Diário Russo” – John Steinbeck e Robert Capa 

Resenha Livro #154 - “Um Diário Russo” – John Steinbeck e Robert Capa – Ed. Cosacnaify



“Um Diário Russo” pertence a um raro gênero literário que serve de fonte preciosa para compreender a história de um povo para além dos seus grandes eventos políticos: observar os costumes, a culinária, as músicas e a arte popular, a língua, enfim, a cultura, o que é propiciado neste livro como uma grande reportagem sobre a URSS de 1947, redigida pelo jornalista e escritor norte-americano John Steinbeck (já consagrado escritor quando de sua viagem à URSS destinada à compor este “Diário”) e Robert Capa, igualmente consagrado e já experiente fotojornalista de guerra, tendo já fotografado a Guerra Civil Espanhola e a Invasão da Normandia durante a II Guerra Mundial. 

Muitos de nós já devemos ter visto uma foto de Capa, uma das mais famosas do gênero de guerras, em que um combatente do exército republicano espanhol é alvejado por uma bala no peito, estirando os braços, num cenário desértico. Contexto: Guerra Civil Espanhola. 

Quanto à Steinbeck, seria agraciado com o Nobel de Literatura em 1962. Seu texto tem um estilo objetivo e realista tal qual a de um jornalista: seu olhar está sempre direcionado àquilo que revela indiretamente aspectos de personalidade captados como numa fotografia. Os traços culturais do povo e da gente comum são os temas de interesse deste diário, sendo chave aqui uma das características decisivas do bom jornalista: ser um bom observador. Isto vale tanto para Steinbeck quando para Capa. 

O plano original dos dois era fazer um retrato o mais humano e impessoal (do ponto de vista político) possível sobre a vida comum na URSS: procuraram não se envolver nos assuntos políticos e nas relações diplomáticas entre EUA e URSS. Já se iniciava momento de crescimento das tensões e hostilidades entre os dois países que dariam início à Guerra Fria: em geral os populares perguntavam aos jornalistas americanos se o seu governo tinha a intenção de atacar a URSS. A sensação era a de que o povo Russo estava cansado da guerra e sabe-se hoje que foi o povo que mais teve vidas perdidas na II Guerra Mundial. 

Principalmente nas passagens por Kiev e Stalingrado (principalmente) os jornalistas testemunharam a devastação de prédios administrativos, escolas, igrejas e campos de agricultura decorrentes da guerra. Particularmente em Stalingrado, famílias inteiras ainda viviam sob escombros. Prisioneiros de guerra alemães faziam a limpeza da destruição que causaram, pareciam ser bem alimentados e eram desprezados pela população. Com a morte de uma esmagadora maioria da população masculina as mulheres por toda a URRS, de Kiev à Georgia estavam na linha de frente das fazendas coletivas e nas fazendas estatais. Em geral percebeu-se que os russos – especialmente de Moscou – hesitavam em se aproximar de estrangeiros e especialmente de americanos. Pareceu ser uma população mais “fria”, o que foi atenuado nas viagens às províncias mais distantes. 

Mas de qualquer forma, em todos os lugares, a insistência com que o povo perguntava aos jornalista sobre a disposição dos americanos em entrarem em guerra com a URSS seria um sinal do enorme cansaço da guerra no povo soviético. Curiosamente parecia não passar pela cabeça do povo russo naquele momento um ataque da URSS sobre os EUA. 

Basicamente todos os correspondentes e jornalistas que se dispunham a conhecer a URSS eram direcionados a um roteiro comum, sempre acompanhados intimamente por representantes do governo soviético, passando por Moscou, Leningrado (São Petersburgo), Stalingrado (hoje Volgogrado) e viajando para Kiev (Ucrânia) e Tbilisi (Georgia), esta última uma espécie de “nordeste brasileiro” da URSS, localizada em região de clima mais ameno, com praias e hotéis de descansos organizados pelos sindicatos e destinados aos operários que melhor se destacam nas frentes de trabalhos, bem como os em repouso médico. 

Na Georgia a língua é diferente, no campo há a produção do Chá, bebida principal da Rússia, além da Vódka, e o fenótipo da população remete a uma mistura de italianos e ciganos. A descrição da bela e antiga Kiev também é digna de nota, em tempos em que a cidade encontra-se sob um governo  com elementos fascistas. Os horrores que os exércitos de Hitler promoveram na capital Kiev ainda era 1947 bastante presentes na memória da população daquele local: infelizmente as últimas gerações parecem ter esquecido a história. E pelo relato vemos que o exército da URSS ainda mantinha os prisioneiros de guerra, os nazistas limpando a destruição brutal e gratuita que promoveram em Kiev. 

Sobre Kiev, ainda sob destroços decorrentes da Segunda Guerra, diz o jornalista:

“Kiev deve ter sido em algum momento uma bela cidade. Bem mais antiga do que Moscou, ela é, na verdade, a mãe das cidades russas. Fundada no alto de uma colina à margem  do Dniepr, acabou crescendo e se espalhando pela planície. Seus mosteiros, fortalezas e igrejas remontam ao século XI. Foi um dos locais de veraneio prediletos dos czares, que ali possuíam palácios de férias. Seus edifícios públicos são famosos em toda a Rússia. Além disso, a cidade também era um centro religioso. Hoje, porém, está completamente arruinada. Aqui os alemães mostraram do que eram capazes”. 

Existem algumas interfaces entre o jornalismo e a história que ganham evidência em trabalhos como o de John Steinbeck e Capa. Mesmo reiterando a intenção do trabalho focar-se na vida das pessoas comuns, sobre o que conversavam, o que vestiam, fotografando e escrevendo quase como um relato objetivo mas nunca imparcial sobre a sociedade russa – nas palavras do autor, não “o relato sobre a Rússia, mas um relato possível”, temos em mãos uma fonte literária e visual que nos dá testemunho de algo a mais do que cifras econômicas oficiais, algo que não é captado por números, nem estatísticas e balanços demográficos. As descrições dos jantares na Georgia, com o hábito do anfitrião indicar um orador, a alegria das camponesas ucranianas dentro de sua jornada de trabalho rural (predominantemente feminina) e a “simpatia” geral daquele povo junto com os dois americanos, associados ao temor da guerra, revelam a sociedade como fotografias, de certa forma dá sinais da temperatura da situação política, além de dar bom material para conhecermos a cultura popular. E nesse sentido é interessante como as fotografias de Capa se somam e dialogam com o relato humano de Steinbeck. Para um historiador, tem-se em frente elementos sobre a cultura e o estado de espírito de um povo recém impactado por uma Guerra Mundial devastadora e ainda assim aparentemente otimista quanto ao seu futuro dentro do regime socialista sob Stálin.   
  

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