sexta-feira, 26 de setembro de 2014

“Sujeito de Direito e Capitalismo” – Celso Naoto Kashiura Jr.


Resenha Livro #126 “Sujeito de Direito e Capitalismo” – Celso Naoto Kashiura Jr. – Ed. Outras Expressões – Coleção Direitos e Lutas Expressões

                                                                                                              Resenha dedicada ao camarada Vinícius Gonzaga, amigo e militante comunista, que gentilmente presenteou-me com este livro.


                Algumas categorias jurídicas por serem tão reproduzidas fora dos tribunais e das escolas de direito acabam ganhando evidência e importância e sinalizam de certa forma a projeção social dos respectivos institutos jurídicos. Quando falamos em Sujeito de Direitos ou em Cidadania, logo nos vem à mente certo discurso ideológico de tipo nitidamente liberal segundo o qual cada um é portador de igual rol de direitos e deveres perante a sociedade e o estado; o Sujeito de Direito nos marcos de uma sociedade republicana e democrática tem, ainda segundo a mesma premissa ideológica liberal, a garantia da igualdade e da liberdade, ainda que na prática as mesmas correspondam à suposta igualdade formal diante das normas jurídicas e uma liberdade que se exaure na compra e venda da força de trabalho no mercado.

                Como se pode notar, o direito cumpre um papel decisivo no contexto do desenvolvimento das sociedades capitalistas: o capitalismo engendra formas sociais, modelos a partir dos quais estará assegurada a reprodução das relações de produção. No caso específico dos Sujeitos de Direito, tal categoria jurídica, conforme nos demonstra a pesquisa de Celso Naoto Jr., nasce especificamente com o advento da sociedade capitalista. Nesta sociedade, ao contrário do feudalismo, há uma pressão no sentido de uma atomização das relações sociais: quebra-se as antigas relações de dependência correspondentes ao feudalismo, a noção de propriedade muda radicalmente com o advento da circulação das mercadorias e no que tange os Sujeitos de Direitos, eles nada mais são do que novos contratantes capazes de dispor e trocar mercadorias de forma livre e em condições iguais.

                “Sujeitos de Direito e Capitalismo” irá fazer um resgate histórico da evolução deste instituto observando justamente a correspondência entre o desenvolvimento histórico das relações de produções, do pré-capitalismo às sociedades industriais europeias e suas projeções respectivas nos pensamentos de Kant, Hegel e Marx. E aqui cabe destacar como em cada um destes autores, as respostas aos fenômenos jurídicos e filosóficos irão ser dadas conforme as respectivas etapas do desenvolvimento histórico e sócio-econômico.

                Kant segue uma filosofia moral tendo como base o indivíduo isolado, portador de uma razão universal – o sujeito moral autônomo. Prossegue Celso N. Jr. “Ao encontrar nesse indivíduo socialmente isolado o ponto de apoio mais elementar de sua filosofia moral, Kant ao mesmo tempo “descobre” o ponto de apoio mais elementar para a concepção universal de um portador abstrato de direitos e deveres – mas Kant mesmo não pôde levar essa descoberta às últimas consequências”.

Em seu idealismo, Kant não consegue explicar as formas concretas relacionadas desvirtuação da autonomia do indivíduo, que o filósofo irá parcialmente remediar a partir do conceito de ius realiter personale , aplicado para a esposa, para os filhos e para os criados domésticos. Pode-se dizer que Kant expressa uma filosofia em transição, pré-capitalista, com ranços feudais, mas já apontando para questões relacionadas à autonomia do sujeito que vão imbricar no Sujeito de Direito – sendo assim, um precursor do instituto jurídico.

                Será logo posteriormente em Hegel por meio de uma nova filosofia que a concepção burguesa de mundo alcançará a sua maior expressão. A sua filosofia é a contrapartida da livre-circulação das mercadorias, sendo que a propriedade e sua disposição passam a ser alçadas a formas de expressão de uma vontade livre que se “radica num núcleo inviolável”, e que caracteriza a subjetividade jurídica. Assim preleciona Celso. K. Jr.

“A filosofia do direito hegeliana é, pode-se dizer, a porta-voz jurídica do capitalismo plenamente desenvolvido. A sua base real é a circulação mercantil que alcançou universalidade e, por isso mesmo, como pensar do seu tempo, ela não pode senão ratificar a universalidade efetiva do sujeito de direito”.

Destaca-se outrossim a ideia de que Sujeito de Direito passa a expressar a coisificação das pessoas na medida em que amplia a noção de propriedade. Como visto, em Kant, a propriedade ainda era mitigada, por exemplo, quando o homem não poderia dispor de si como força de trabalho. Esta contradição passa a ser resolvida na filosofia hegeliana:

“A capacidade de ser proprietário, na qual se inclui a capacidade de ser proprietário de si, define o sujeito de direito. É, então, uma imediata consequência da elevação do homem a sujeito de direito a sua redução – ou, como é o caso, a redução de suas “capacidades e habilidades” – à condição de coisa. A universalização da personalidade jurídica se realiza, ao mesmo tempo, como universalização da coisificação do homem (...)”.

Marx oferece uma ruptura conceitual não no sentido de propor um conceito alternativo de Sujeito de Direito mas de fazer uma análise crítica que, ao ir além da esfera da circulação de capitais (Hegel) e se imiscuir-se no âmbito da produção, encontra por um lado as conexões históricas entre o desenvolvimento da ideia de Sujeito de Direito e o desenvolvimento do capitalismo – vistos por Hegel como parte do desenvolvimento do Espírito – e, importante, discutindo tanto a dimensão ideológica quanto as próprias implicações políticas que derivam de certo “socialismo jurídico”, momento em que Celso Naoto Jr. conclui seu trabalho.

É pois apenas desde uma perspectiva crítica e baseada no materialismo histórico que se evidencia a evolução histórica do direito e dos institutos jurídicos e particularmente do conceito de Sujeito de Direito – será nos textos de Marx maduro que se evidenciará a relação entre a forma jurídica de  tipo mercantil e o desenvolvimento do capitalismo e a falsa noção de igualdade relativa aos contratantes sujeitos de direito quando há apropriação privada dos meios de produção por uma minoria e uma grande maioria vivendo da venda da sua força de trabalho. Hegel pois apenas demonstrou as relações referentes à circulação de mercadorias entre compradores e vendedores de bens (incluindo força de trabalho) sem discutir a questão referente às relações de produção e os interesses antagônicos de classe que são essenciais nas sociedades capitalistas. Estes conflitos engendram as formas sociais/jurídicas que dão conta de fazer perpetuar a lógica da circulação de mercadoria e extração de mais valia em termos pacíficos, sendo virtualmente vedados/mascarados por meio da ideologia jurídica as desigualdades sociais engendradas.

Via de regra dois posicionamentos marcam os setores progressistas ou de esquerda dentro da militância no direito. Uma maioria entende ser possível promover mudanças a partir de reformas no sistema e entende ser o direito um instrumento que pode ser até protagonista no sentido de promoção da justiça e igualdade social. Seguindo uma orientação marxista ortodoxa (e aqui ortodoxia é tida num sentido positivo, ou seja, não revisionista e conforme uma leitura atenta daquela tradição), Celso Naoto Jr. reivindica, a nosso ver corretamente, o abolicionismo jurídico, partindo sempre da premissa de que, tal qual o Sujeito de Direito, o próprio Direito é produto das sociedades capitalistas e deverá ser destruído num processo concomitante à construção de uma nova forma social pós-capitalista.

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