Resenha Livro #126 “Sujeito
de Direito e Capitalismo” – Celso Naoto Kashiura Jr. – Ed. Outras Expressões –
Coleção Direitos e Lutas Expressões
Resenha dedicada ao camarada Vinícius
Gonzaga, amigo e militante comunista, que gentilmente presenteou-me com este
livro.
Algumas
categorias jurídicas por serem tão reproduzidas fora dos tribunais e das
escolas de direito acabam ganhando evidência e importância e sinalizam de certa
forma a projeção social dos respectivos institutos jurídicos. Quando falamos em
Sujeito de Direitos ou em Cidadania, logo nos vem à mente certo discurso
ideológico de tipo nitidamente liberal segundo o qual cada um é portador de
igual rol de direitos e deveres perante a sociedade e o estado; o Sujeito de
Direito nos marcos de uma sociedade republicana e democrática tem, ainda
segundo a mesma premissa ideológica liberal, a garantia da igualdade e da
liberdade, ainda que na prática as mesmas correspondam à suposta igualdade
formal diante das normas jurídicas e uma liberdade que se exaure na compra e
venda da força de trabalho no mercado.
Como se
pode notar, o direito cumpre um papel decisivo no contexto do desenvolvimento
das sociedades capitalistas: o capitalismo engendra formas sociais, modelos a
partir dos quais estará assegurada a reprodução das relações de produção. No
caso específico dos Sujeitos de Direito, tal categoria jurídica, conforme nos
demonstra a pesquisa de Celso Naoto Jr., nasce especificamente com o advento da
sociedade capitalista. Nesta sociedade, ao contrário do feudalismo, há uma
pressão no sentido de uma atomização das relações sociais: quebra-se as antigas
relações de dependência correspondentes ao feudalismo, a noção de propriedade
muda radicalmente com o advento da circulação das mercadorias e no que tange os
Sujeitos de Direitos, eles nada mais são do que novos contratantes capazes de
dispor e trocar mercadorias de forma livre e em condições iguais.
“Sujeitos
de Direito e Capitalismo” irá fazer um resgate histórico da evolução deste
instituto observando justamente a correspondência entre o desenvolvimento
histórico das relações de produções, do pré-capitalismo às sociedades
industriais europeias e suas projeções respectivas nos pensamentos de Kant,
Hegel e Marx. E aqui cabe destacar como em cada um destes autores, as respostas
aos fenômenos jurídicos e filosóficos irão ser dadas conforme as respectivas
etapas do desenvolvimento histórico e sócio-econômico.
Kant
segue uma filosofia moral tendo como base o indivíduo isolado, portador de uma razão
universal – o sujeito moral autônomo. Prossegue Celso N. Jr. “Ao encontrar nesse indivíduo socialmente
isolado o ponto de apoio mais elementar de sua filosofia moral, Kant ao mesmo
tempo “descobre” o ponto de apoio mais elementar para a concepção universal de
um portador abstrato de direitos e deveres – mas Kant mesmo não pôde levar essa
descoberta às últimas consequências”.
Em seu idealismo, Kant não
consegue explicar as formas concretas relacionadas desvirtuação da autonomia do
indivíduo, que o filósofo irá parcialmente remediar a partir do conceito de ius realiter personale , aplicado para
a esposa, para os filhos e para os criados domésticos. Pode-se dizer que Kant
expressa uma filosofia em transição, pré-capitalista, com ranços feudais, mas
já apontando para questões relacionadas à autonomia do sujeito que vão imbricar
no Sujeito de Direito – sendo assim, um precursor do instituto jurídico.
Será
logo posteriormente em Hegel por meio de uma nova filosofia que a concepção
burguesa de mundo alcançará a sua maior expressão. A sua filosofia é a contrapartida
da livre-circulação das mercadorias, sendo que a propriedade e sua disposição
passam a ser alçadas a formas de expressão de uma vontade livre que se “radica num núcleo inviolável”, e que
caracteriza a subjetividade jurídica. Assim preleciona Celso. K. Jr.
“A filosofia do direito hegeliana é, pode-se dizer, a porta-voz
jurídica do capitalismo plenamente desenvolvido. A sua base real é a circulação
mercantil que alcançou universalidade e, por isso mesmo, como pensar do seu
tempo, ela não pode senão ratificar a universalidade efetiva do sujeito de
direito”.
Destaca-se outrossim a ideia de
que Sujeito de Direito passa a expressar a coisificação das pessoas na medida
em que amplia a noção de propriedade. Como visto, em Kant, a propriedade ainda
era mitigada, por exemplo, quando o homem não poderia dispor de si como força
de trabalho. Esta contradição passa a ser resolvida na filosofia hegeliana:
“A capacidade de ser proprietário, na qual se inclui a capacidade de
ser proprietário de si, define o sujeito de direito. É, então, uma imediata consequência
da elevação do homem a sujeito de direito a sua redução – ou, como é o caso, a
redução de suas “capacidades e habilidades” – à condição de coisa. A
universalização da personalidade jurídica se realiza, ao mesmo tempo, como
universalização da coisificação do homem (...)”.
Marx oferece uma ruptura
conceitual não no sentido de propor um conceito alternativo de Sujeito de
Direito mas de fazer uma análise crítica que, ao ir além da esfera da
circulação de capitais (Hegel) e se imiscuir-se no âmbito da produção, encontra
por um lado as conexões históricas entre o desenvolvimento da ideia de Sujeito
de Direito e o desenvolvimento do capitalismo – vistos por Hegel como parte do
desenvolvimento do Espírito – e, importante, discutindo tanto a dimensão
ideológica quanto as próprias implicações políticas que derivam de certo “socialismo
jurídico”, momento em que Celso Naoto Jr. conclui seu trabalho.
É pois apenas desde uma
perspectiva crítica e baseada no materialismo histórico que se evidencia a
evolução histórica do direito e dos institutos jurídicos e particularmente do
conceito de Sujeito de Direito – será nos textos de Marx maduro que se
evidenciará a relação entre a forma jurídica de
tipo mercantil e o desenvolvimento do capitalismo e a falsa noção de
igualdade relativa aos contratantes sujeitos de direito quando há apropriação
privada dos meios de produção por uma minoria e uma grande maioria vivendo da
venda da sua força de trabalho. Hegel pois apenas demonstrou as relações
referentes à circulação de mercadorias entre compradores e vendedores de bens
(incluindo força de trabalho) sem discutir a questão referente às relações de
produção e os interesses antagônicos de classe que são essenciais nas
sociedades capitalistas. Estes conflitos engendram as formas sociais/jurídicas
que dão conta de fazer perpetuar a lógica da circulação de mercadoria e
extração de mais valia em termos pacíficos, sendo virtualmente vedados/mascarados
por meio da ideologia jurídica as desigualdades sociais engendradas.
Via de regra dois posicionamentos
marcam os setores progressistas ou de esquerda dentro da militância no direito.
Uma maioria entende ser possível promover mudanças a partir de reformas no
sistema e entende ser o direito um instrumento que pode ser até protagonista no
sentido de promoção da justiça e igualdade social. Seguindo uma orientação
marxista ortodoxa (e aqui ortodoxia é tida num sentido positivo, ou seja, não revisionista
e conforme uma leitura atenta daquela tradição), Celso Naoto Jr. reivindica, a
nosso ver corretamente, o abolicionismo jurídico, partindo sempre da premissa
de que, tal qual o Sujeito de Direito, o próprio Direito é produto das
sociedades capitalistas e deverá ser destruído num processo concomitante à
construção de uma nova forma social pós-capitalista.
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