Resenha Livro #74 “Tratado
de Materialismo Histórico” – N. Bukharin – Ed. Laemmert – 1970
Bukharin escreveu
este tratado de filosofia marxista no início dos anos 1920. Antes de abordarmos
a obra, é importante discorrer sobre quem é o seu autor. Nascido em Moscou,
filho de professores do ginásio, Bukharin foi importante político, teórico e
dirigente revolucionário. Formou-se em Economia e, durante a juventude,
participou ativamente da primeira revolução Russa de 1905, considerada por
Lênin como “ensaio geral” da Revolução de Outubro de 1917. Em 1906 ingressou no
Partido Operário Social- Democrata Russo e a partir de 1912 aproximou-se
politicamente de Lênin, ainda que ocasionalmente tenha entrado em atrito com o
grande dirigente da revolução – em geral, seu nome é associado ao agrupamento
dos “comunistas de esquerda”. Participou ativamente da insurreição de Outubro
como dirigente do levante em Moscou e posteriormente ocupou cargos políticos
importantes, como redator-chefe do órgão de imprensa do partido bolchevique (“Pravda”,
a verdade, em Russo) e posteriormente membro da direção nacional (politburo) do
Partido Comunista da União Soviética. Teve importante papel na história da
revolução russa como mentor junto de
Lênin da NEP, Nova Política Econômica, que reintroduziu alguns elementos da
economia de mercado, na perspectiva de combater a fome e desenvolver a
produtividade de um país extremamente atrasado economicamente. Como membro
eminente e respeitado do partido bolchevique, certamente provocava preocupação,
após a morte de Lênin em 1924, como eventual
rival na disputa pela liderança do partido e do estado soviético. E foi assim que em 1937 foi preso a mando de
Stálin e morto no ano posterior.
Segundo o próprio Bukharin,
o seu Tratado corresponde a uma continuação de uma obra anterior, mais
conhecida, denominada “O ABC do Comunismo”. Nestes dois trabalhos o autor
apresenta o compromisso de oferecer os elementos da teoria marxista de maneira
a mais didática e clara possível. Não deixa de ser sugestivo que no “Tratado”,
obra que esmiúça diversos aspectos do materialismo histórico e da filosofia
marxista de maneira geral, Bukharin sempre busca demonstrar o seus raciocínios
teóricos por meio de exemplos práticos, relacionados ao contexto de vida do
trabalhador ou do camponês. Assim, mesmo se tratando de um tema intrincado, os
exemplos ilustrativos acerca das diferenças entre materialismo e idealismo ou
acerca dos fatores fundacionais da sociedade e do seu movimento histórico,
fazem com que boa parte dos temas pudessem ser assimilados pelo mais simples
mujique.
Um tratado de
materialismo dialético não só deve oferecer uma visão panorâmica da filosofia
marxista, com suas diversas dimensões na história, na sociologia e na economia
política, mas contrapor a perspectiva marxista tanto às análises dos pensadores
burgueses quanto de pensadores relativamente próximos do marxismo, mas que ora
falsificam ora não compreendem a real dimensão e alcance do materialismo
histórico. No que se refere aos pensadores burgueses, suas análises são
particularmente ilustrativas quando Bukharin analisa a questão da ideologia e
da psicologia das classes: às análises segue-se os interesses de perpetuação da
lógica capitalista, o que implica na naturalização das relações de dominação e
na negação da revolução e da ditadura do proletariado.
Há de se constatar que a concepção de “Ideologia”
em Bukharin não podia ser a mesma daquela que ficaria consagrado pelo marxismo
a partir da obra “A Ideologia Alemã”. Isto porque esta obra filosófica de Marx
apenas foi publicada em 1932, após a redação e publicação do “Tratado”. Assim,
enquanto em Bukharin a ideologia corresponde a uma sistematização mais ou menos
organizada da percepção de mundo, da cultura e da ética correspondente às
distintas classes, em Marx a ideologia passa a ser um esquema de dominação: a
ideologia como uma “nuvem de fumaça” em que os interesses particulares da
classe dominante são dados como se fossem interesses gerais de toda a
sociedade. Em Bukharin a ideologia mantém uma íntima relação com a chamada psicologia
de classe, correspondendo a uma sistematização maior e mais racionalizada das
psicologias das distintas classes. Assim, haveria tanto uma ideologia burguesa,
quanto uma ideologia proletária. E qual é a origem da ideologia e da psicologia
das classes? Responde Bukharin:
“Dissemos que a
psicologia das classes é determinada pelo conjunto das condições de vida de
cada classe, condição que tem a sua base na situação econômica de cada classe.
(...) É absolutamente justo que o interesse de classe determina essencialmente
a luta de classe. Mas a psicologia de classe não se limita a isso. Já vimos
mais acima que, na época de decadência do império romano, filósofos da classe
dirigente pregavam o suicídio e que esta propaganda obtinha sucesso porque
concordava com a psicologia desta classe dirigente, que era uma psicologia
desta classe dirigente, que era uma psicologia de homens saciados e por
conseguinte fartos de viver. Podemos perfeitamente explicar a formação de
semelhante psicologia; vemos que ela tem sua raiz no parasitismo de uma classe
dominante que nada fazia, e cuja existência inteira se limitava a consumir sem
cessar, a experimentar de tudo até se enfastiar”.
Este importante
conceito de psicologia de classe terá no “Tratado” desdobramentos importantes
nas distintas passagens em que Bukharin analisa o movimento e a luta das
classes na história. Ainda sendo certo que Marx e Engels iniciam seu manifesto
dizendo ser a história da humanidade, a história da luta de classes, deve o
intérprete crítico analisar tal passagem desde o ponto de vista do que a
historiografia francesa chamará de história de média e longa duração. Todavia,
alerta Bukharin, existem em primeiro lugar momentos de paz social e equilíbrio
ou estagnação social; existem momentos em que classes com interesses
antagônicos unem-se em torno de um inimigo comum, sendo este o caso do terceiro
estado da Revolução Francesa, dentro do qual estava a classe dos burgueses e a
incipiente classe proletária. Ademais, Bukharin certamente está a frente de um
certo marxismo eminentemente teleológico e dogmático segundo o qual o
desenvolvimento das forças produtivas diante dos limites institucionais,
jurídicos e políticos do capitalismo fatalmente levaria à luta vitoriosa do
proletariado. Esta luta encarniçada entre burgueses e proletários não tem seu
resultado pré fixado pela história: e o próprio Marx o afirma, quando diz que a
luta de classes pode levar a aniquilação mútua das classes e/ou a um processo
de decadência/retrocesso histórico. Mesmo a vitória do proletariado implica
numa destruição parcial das forças produtivas frente à guerra civil (situação
sentida de maneira premente na Rússia durante o chamado “Comunismo de Guerra”).
Em síntese, o “Tratato”
merece ser lido com atenção diante de seu grandioso projeto de sistematizar a
filosofia marxista desde um método que irá analisar teoricamente e por meio de
exemplos práticos muitas das dimensões decorrentes do materialismo histórico.
Discute-se o que são classes sociais e como se diferenciam de grupos e
profissões, discute-se o que é a sociedade e qual é a sua origem e seu
fundamento histórico (correspondendo ao grau de desenvolvimento das forças produtivas
e seu correspondente modo de produção). Discute-se o papel do indivíduo na
história, a questão do partido e seu vínculo com a classe, para além de sua
importância prática. Faz-se uma análise crítica acerca das relações entre
estrutura e superestrutura, demonstrando-se como o marxismo, ao contrário do
que prega seus difamadores burgueses, não descarta a importância da política,
da cultura, da arte ou da religião, mas coloca tais elementos em seu devido
lugar, explicando-os desde relações causais decorrentes do mundo do trabalho e
da economia política. Por todos estes debates introduzidos por Bukharin,
certamente o seu “Tratado” mereceria uma nova edição no país, de forma a melhor
contemplar a tarefa da formação política dos marxistas revolucionários
brasileiros.
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