quinta-feira, 19 de setembro de 2013

“Tratado de Materialismo Histórico” – N. Bukharin


Resenha Livro #74 “Tratado de Materialismo Histórico” – N. Bukharin – Ed. Laemmert – 1970



Bukharin escreveu este tratado de filosofia marxista no início dos anos 1920. Antes de abordarmos a obra, é importante discorrer sobre quem é o seu autor. Nascido em Moscou, filho de professores do ginásio, Bukharin foi importante político, teórico e dirigente revolucionário. Formou-se em Economia e, durante a juventude, participou ativamente da primeira revolução Russa de 1905, considerada por Lênin como “ensaio geral” da Revolução de Outubro de 1917. Em 1906 ingressou no Partido Operário Social- Democrata Russo e a partir de 1912 aproximou-se politicamente de Lênin, ainda que ocasionalmente tenha entrado em atrito com o grande dirigente da revolução – em geral, seu nome é associado ao agrupamento dos “comunistas de esquerda”. Participou ativamente da insurreição de Outubro como dirigente do levante em Moscou e posteriormente ocupou cargos políticos importantes, como redator-chefe do órgão de imprensa do partido bolchevique (“Pravda”, a verdade, em Russo) e posteriormente membro da direção nacional (politburo) do Partido Comunista da União Soviética. Teve importante papel na história da revolução russa  como mentor junto de Lênin da NEP, Nova Política Econômica, que reintroduziu alguns elementos da economia de mercado, na perspectiva de combater a fome e desenvolver a produtividade de um país extremamente atrasado economicamente. Como membro eminente e respeitado do partido bolchevique, certamente provocava preocupação, após a morte de Lênin em 1924,  como eventual rival na disputa pela liderança do partido e do estado soviético.  E foi assim que em 1937 foi preso a mando de Stálin e morto no ano posterior.

Segundo o próprio Bukharin, o seu Tratado corresponde a uma continuação de uma obra anterior, mais conhecida, denominada “O ABC do Comunismo”. Nestes dois trabalhos o autor apresenta o compromisso de oferecer os elementos da teoria marxista de maneira a mais didática e clara possível. Não deixa de ser sugestivo que no “Tratado”, obra que esmiúça diversos aspectos do materialismo histórico e da filosofia marxista de maneira geral, Bukharin sempre busca demonstrar o seus raciocínios teóricos por meio de exemplos práticos, relacionados ao contexto de vida do trabalhador ou do camponês. Assim, mesmo se tratando de um tema intrincado, os exemplos ilustrativos acerca das diferenças entre materialismo e idealismo ou acerca dos fatores fundacionais da sociedade e do seu movimento histórico, fazem com que boa parte dos temas pudessem ser assimilados pelo mais simples mujique.

Um tratado de materialismo dialético não só deve oferecer uma visão panorâmica da filosofia marxista, com suas diversas dimensões na história, na sociologia e na economia política, mas contrapor a perspectiva marxista tanto às análises dos pensadores burgueses quanto de pensadores relativamente próximos do marxismo, mas que ora falsificam ora não compreendem a real dimensão e alcance do materialismo histórico. No que se refere aos pensadores burgueses, suas análises são particularmente ilustrativas quando Bukharin analisa a questão da ideologia e da psicologia das classes: às análises segue-se os interesses de perpetuação da lógica capitalista, o que implica na naturalização das relações de dominação e na negação da revolução e da ditadura do proletariado.

 Há de se constatar que a concepção de “Ideologia” em Bukharin não podia ser a mesma daquela que ficaria consagrado pelo marxismo a partir da obra “A Ideologia Alemã”. Isto porque esta obra filosófica de Marx apenas foi publicada em 1932, após a redação e publicação do “Tratado”. Assim, enquanto em Bukharin a ideologia corresponde a uma sistematização mais ou menos organizada da percepção de mundo, da cultura e da ética correspondente às distintas classes, em Marx a ideologia passa a ser um esquema de dominação: a ideologia como uma “nuvem de fumaça” em que os interesses particulares da classe dominante são dados como se fossem interesses gerais de toda a sociedade. Em Bukharin a ideologia mantém uma íntima relação com a chamada psicologia de classe, correspondendo a uma sistematização maior e mais racionalizada das psicologias das distintas classes. Assim, haveria tanto uma ideologia burguesa, quanto uma ideologia proletária. E qual é a origem da ideologia e da psicologia das classes? Responde Bukharin:

“Dissemos que a psicologia das classes é determinada pelo conjunto das condições de vida de cada classe, condição que tem a sua base na situação econômica de cada classe. (...) É absolutamente justo que o interesse de classe determina essencialmente a luta de classe. Mas a psicologia de classe não se limita a isso. Já vimos mais acima que, na época de decadência do império romano, filósofos da classe dirigente pregavam o suicídio e que esta propaganda obtinha sucesso porque concordava com a psicologia desta classe dirigente, que era uma psicologia desta classe dirigente, que era uma psicologia de homens saciados e por conseguinte fartos de viver. Podemos perfeitamente explicar a formação de semelhante psicologia; vemos que ela tem sua raiz no parasitismo de uma classe dominante que nada fazia, e cuja existência inteira se limitava a consumir sem cessar, a experimentar de tudo até se enfastiar”.

Este importante conceito de psicologia de classe terá no “Tratado” desdobramentos importantes nas distintas passagens em que Bukharin analisa o movimento e a luta das classes na história. Ainda sendo certo que Marx e Engels iniciam seu manifesto dizendo ser a história da humanidade, a história da luta de classes, deve o intérprete crítico analisar tal passagem desde o ponto de vista do que a historiografia francesa chamará de história de média e longa duração. Todavia, alerta Bukharin, existem em primeiro lugar momentos de paz social e equilíbrio ou estagnação social; existem momentos em que classes com interesses antagônicos unem-se em torno de um inimigo comum, sendo este o caso do terceiro estado da Revolução Francesa, dentro do qual estava a classe dos burgueses e a incipiente classe proletária. Ademais, Bukharin certamente está a frente de um certo marxismo eminentemente teleológico e dogmático segundo o qual o desenvolvimento das forças produtivas diante dos limites institucionais, jurídicos e políticos do capitalismo fatalmente levaria à luta vitoriosa do proletariado. Esta luta encarniçada entre burgueses e proletários não tem seu resultado pré fixado pela história: e o próprio Marx o afirma, quando diz que a luta de classes pode levar a aniquilação mútua das classes e/ou a um processo de decadência/retrocesso histórico. Mesmo a vitória do proletariado implica numa destruição parcial das forças produtivas frente à guerra civil (situação sentida de maneira premente na Rússia durante o chamado “Comunismo de Guerra”).
Em síntese, o “Tratato” merece ser lido com atenção diante de seu grandioso projeto de sistematizar a filosofia marxista desde um método que irá analisar teoricamente e por meio de exemplos práticos muitas das dimensões decorrentes do materialismo histórico. Discute-se o que são classes sociais e como se diferenciam de grupos e profissões, discute-se o que é a sociedade e qual é a sua origem e seu fundamento histórico (correspondendo ao grau de desenvolvimento das forças produtivas e seu correspondente modo de produção). Discute-se o papel do indivíduo na história, a questão do partido e seu vínculo com a classe, para além de sua importância prática. Faz-se uma análise crítica acerca das relações entre estrutura e superestrutura, demonstrando-se como o marxismo, ao contrário do que prega seus difamadores burgueses, não descarta a importância da política, da cultura, da arte ou da religião, mas coloca tais elementos em seu devido lugar, explicando-os desde relações causais decorrentes do mundo do trabalho e da economia política. Por todos estes debates introduzidos por Bukharin, certamente o seu “Tratado” mereceria uma nova edição no país, de forma a melhor contemplar a tarefa da formação política dos marxistas revolucionários brasileiros.

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