Resenha Livro #72 “A
Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” – Friederich Engels –
Ed. Centauro
Este estudo de Engels
parte das análises mais avançadas até então (1884) das sociedades primitivas (destacando-se
os estudos do norte-americano Morgan) para construir uma poderosa síntese da
origem do estado, bem como da propriedade privada e da família monogâmica. Partindo
de um ponto de vista marxista da análise da evolução histórica, as grandes
transformações que impulsionam o desenvolvimento do homem diz respeito essencialmente ao grau e capacidade de domínio
da natureza pelo homem. Assim, dos estágios pré-históricos da cultura até a
civilização vai-se revelando um gradual e ascendente controle do homem sobre
seus meios de produção e reprodução natural.
No estado selvagem, a
fase inferior corresponde aos homens que ainda viviam nas árvores e se serviam
de frutos, nozes e raízes como alimento; a fase média do período selvagem
envolve já o emprego do fogo e a pesca, fenômenos complementares, já que o “peixe
só pode ser plenamente empregado como alimento graças ao fogo”. Engels
identifica nesta fase a ocorrência de antropofagia: ademais, o consumo de carne
implicava no desenvolvimento da inteligência e outros atributos, pelo
incremento da dieta. A fase inferior da barbárie é contada a partir da invenção
do arco e da flecha “graças aos quais os animais caçados vêm a ser um alimento regular e a
caça uma das ocupações normais e costumeiras” (P. 28) “O arco e a flecha foram,
para época selvagem, o que a espada de ferro foi para a barbárie e a arma de
fogo para a civilização: a arma decisiva” (P.29)
A fase inferior da
barbárie passa pela introdução a cerâmica, com sua utilização nas construções e
como substituto da madeira, arriscando o
grupo menos a incêndios. A fase superior
da barbárie inicia-se com a fundição de ferro e o emprego da pá e do machado de
ferro no cultivo do solo. É só com o ferro que é possível empregar a exploração
da terra em grande escala, pela primeira vez. Assim, com a agricultura há um
aumento ilimitado à época de meios de subsistência, implicando em aumento
populacional. Uma síntese geral até a civilização é apresentada mais a frente
por Engels: “Estado selvagem: período em
que predomina a apropriação de produtos da natureza, prontos para serem
utilizados; Barbárie: Período em que aparecem a criação de gado e a agricultura
e se aprende a incrementar a produção da natureza com o trabalho humano. Civilização:
Período da indústria propriamente dita e da arte”.
Ao lado do
desenvolvimento histórico decorrente da maior capacidade de controle e
apropriação dos meios de vidas da natureza pelo homem, modificam-se de forma
correspondente as organizações pré e sociais propriamente ditas, bem como a
transformação da família.
Nas chamadas famílias
consanguíneas há o predomínio do casamento entre irmãos e parentes colaterais e
posteriormente com as famílias punaluana casamentos coletivos também dentro de grupos
consanguíneos. Há todo um programa marxista do debate sobre opressões de gênero
neste estudo de Engels, justamente quando discutirá a evolução familiar.
Afinal, observa-se que as sociedades marcadas pelo casamento grupal, típicas
daquele comunismo primitivo, implicava papeis muito superior aos das mulheres
da civilização. A monogamia é apenas a última forma familiar, correspondendo à
consolidação do domínio do homem sobre a mulher e, no âmbito da produção, a constituição
da propriedade privada.
Nas famílias mais
primitivas os casamentos coletivos e os hábitos sexuais que envolviam diversas
formas de poligamia tornavam incertas as origens paternas dos filhos. Como o
parentesco só era possível de ser percebido pela linhagem feminina, foi por
meio desta linhagem que se consolidava a gens, implicando em um reconhecimento
social muito maior da mulher. Dentro das questões sucessórias, bem como para a
articulação das gens, a mulher cumpria um papel de centralidade, falando Engels
de um “Direito Materno” que gradualmente, conforme a família caminhasse para as
fechadas unidades monogâmicas, foi transformando-se em “Direito Paterno”.
Engels vai até as
origens do termo família de forma a expor as suas contradições decorrentes da
sua conformação na história.
“Em
sua origem, a palavra família não significa o ideal – mistura de
sentimentalismo e dissensões domésticas – do filisteu e nossa época; - a
princípio, entre os romanos, não se aplicava sequer ao par de cônjugues e aos
seus filhos, mas somente aos escravos. Famulus quer dizer escravo doméstico e
família é o conjunto de escravos pertencentes ao mesmo homem. Nos tempos de Gaio, a família “id est
patrimoniu” (isto é, herança) era transmitida por testamento. A expressão foi
inventada pelos romanos para designar um novo organismo social, cujo chefe
mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e um certo número de escravos, com o
pátrio poder romano e o direito de vida e morte sobre todos eles. ‘A palavra
não é, pois, mais antiga que o férreo sistema familiar das tribos latinas, que
nasceu ao introduzirem-se a agricultura e a escravidão legal, depois da cisão
entre os gregos e latinos arianos’. E Marx acrescenta ‘a família moderna contém,
em germe, não apenas a escravidão (servitus) como também a servidão, pois,
desde o começo, está relacionada com os tempos da agricultura. Encerra, em
miniatura, todos os antagonismos que se desenvolvem, mais adiante, na sociedade em seu estado”.
Tanto o
desenvolvimento geral das forças produtivas sociais quanto as distintas formas
de arranjos familiares, correspondentes aos grandes períodos da pré-civilização
caminham num sentido de aumento gradual da desigualdade na distribuição dos
excedentes. Ao lado da agricultura e dos excedentes, vem o desenvolvimento do
comércio e com ele, a criação de uma nova classe social, os comerciantes. O
dinheiro é criado e a distribuição e circulação de pessoas e bens põe por terra
o antigo regime gentílico. Se dentro das ordens mais primitivas havia algum
igualitarismo, como revela Engels ao descrever sociedades indígenas
norte-americanas, povos celtas e bárbaros em geral, que mantinham, dentro do
arranjo gentílico, formas hirperdemocráticas de poder, com participação
irrestrita dos membros sociais e ausência de um poder coercitivo externo à
sociedade (polícia).
Já o estado aparece
na medida em que a crescente desigualdade vai se expressando com o fim da
apropriação comunista primitiva e o início da apropriação privada das terras
e demais riquezas , consolidando uma
classe dominante e exploradora, e uma classe explorada – inicialmente, o
escravismo, posteriormente a servidão e finalmente o assalariamento. O estado
nasce da necessidade de conter a luta de classes e surge, emerge como algo “acima
das classes” – o que é uma ilusão, ilusão que atende os interessas da classe
exploradora e que detém o controle do estado. Um instrumento de dominação de
uma classe pela outra, isto é, em síntese, o estado na perspectiva de Marx e
Engels. Uma lição importante ao analisarmos as sociedades pré-estatais é a de
justamente afastar a tese da inafastabilidade de um poder externo e controlador
da sociedade, a tese hobbesiana na inevitabilidade do estado. Já Engels se opõe
a esta perspectiva na sua conclusão do livro:
“Portanto,
o Estado não tem existido eternamente. Houve sociedades que se organizaram sem
ele, não tiveram a menor noção do estado ou do seu poder. Ao chegar a certa
fase do desenvolvimento econômico, que estava necessariamente ligada à divisão
da sociedade em classes, essa divisão tornou o Estado uma necessidade. Estamos
agora nos aproximando, com rapidez, de uma fase de desenvolvimento da produção
em que a existência dessas classes não apenas deixou de ser uma necessidade,
mas até se converteu a um obstáculo à produção da mesma. As classes vão
desaparecer, e de maneira tão inevitável como no passado surgiram. Com o desaparecimento das classes,
desaparecerá inevitavelmente o Estado. A sociedade, reorganizando de uma forma
nova a produção, na base de uma associação livre de produtores iguais, mandará
toda a máquina do Estado para o lugar que lhe há de corresponder: o museu de
antiguidades, ao lado da roca de fiare do machado de bronze”. (P. 180)
Nenhum comentário:
Postar um comentário