segunda-feira, 18 de março de 2019

“Batalha de Caiboaté” – Ptolomeu de Assis Brasil


“Batalha de Caiboaté” – Ptolomeu de Assis Brasil 



Resenha Livro – “Batalha de Caiboaté: Episódio Culminante da Guerra das Missões” – Edições do Senado Federal – Vol. 63

“O trabalho da terra, agricultura, em cujo trato o homem lavrando e criando, mais se aferra ao solo; a educação pertinaz, diuturna, com que os jesuítas conseguiram formar um subconsciente de submissão aos seus ditames nos hábitos e atos dos guaranis das Missões; as ordens e instruções com que estes agiam, votando ódio aos portugueses e desprezo a quem quer que fosse, estranho à língua deles, única que lhes permitiam os jesuítas conhecer; a convicção de que habitavam terras de sua propriedade concedidas por Deus e os seus padres, além de outros fatores: tais as causas que os levariam em breve à sublevação absurda e ao sacrifício inglório. Demais, bem sabiam, uns por experiência própria, outros por sinistra tradição quão duro, cruel, fora o tratamento imposto aos confrades expulsos das reduções de Guairá pelos paulistas, ou mamelucos (mestiços de índios e brancos) a quem, ora, ter de se submeter e escravizar”.

Contexto Histórico

A Guerra das Missões refere-se a conflito armado que colocou em oposição de um lado as duas coroas ibéricas e de outro jesuítas e índios guaranis situados na região meridional do Brasil, nos 7 Povos das Missões (atual estado do Rio Grande do Sul). A Batalha de Caiboaté (hoje município de São Gabriel) no ano de 1756 correspondeu ao momento culminante e final do conflito, se é que se pode dizer que houve “batalha”, mas antes um massacre: foram 1400 índios mortos e 127 feridos, enquanto houve 4 mortos portugueses e 3 espanhóis. Seja como for, a resistência guarani foi e é cultivada na memória do povo do Rio Grande do Sul especialmente através da figura de Sepé Tiaraju, líder militar dos índios insurgidos, referido em documentos como índio de insólita bravura e morto no campo de batalha.

Costuma-se situar as guerras guaraníticas no contexto de demarcação territorial das colônias portuguesas e espanholas a partir do Tratado de Madrid (1750), mas é certo que os conflitos envolvendo jesuítas e colonos já existiam ao menos desde meados do séc. XVII. De um lado colonos paulistas organizavam entradas no sertão à caça de ouro e da mão de obra escrava. Em território espanhol o trabalho escravo é organizado através das ecomiendas. Apesar da oposição do jesuíta, os índios eram caçados e transformados em cativos em São Paulo: 16 fundações jesuítas foram tomadas e destruídas entre 1630 e 1638 por bandeirantes dirigidos por Raposo Tavares. Importante salientar que o avanço bandeirante consolidou a criação de rotas, arraiais e posteriormente vilas nos estados do Brasil meridional, do atual estado do Paraná ao Rio Grande.  

De outro giro, questão tormentosa e eivada de tensões foi a definição dos limites territoriais do sul do Brasil, Uruguai (então Colônia do Sacramento) e Argentina. A fundação da Colônia do Sacramento em 1680 engendraria conflito militar entre súditos portugueses e espanhóis – é importante destaca-lo pois foi neste conflito que os jesuítas espanhóis conseguiram licença pela primeira vez para aparelhar os índios com armas de fogo.

A indefinição dos limites de fronteira era corroborada pelo Tratado de Tordesilhas assinado em 1457, antes do achamento do Brasil, quando sequer se sabia que a América era um continente. Em 1750 é assinado o Tratado de Madrid que atribui a Portugal os 7 Povos das Missões e aos espanhóis a Colônia do Sacramento.

Pelo tratado cada parte deveria evacuar o território antes de entregá-lo. E a situação dramática se instaura diante das inúmeras missões jesuíticas nas regiões que perfaziam um montante de 30.000 íncolas. As missões jesuíticas deveriam ser desocupadas, portanto. Já os povos das 7 missões, muito influenciados pelos padres, demonstraram disposição em resistir em armas antes de entregarem suas terras: os índios diziam que deus os havia concedido aquelas paragens e só deus poderia de lá tirá-los.

É interessante destacar como eram as reduções dos jesuítas. Não existia naqueles lugares uma espécie de paraíso coletivista como pode parecer a alguns. O trabalho na lavoura e a participação de missas e atividades religiosas eram obrigatórios. A embriaguez e a ausência nas missas eram castigadas com açoites e detenção. As aldeias eram dirigidas pelo superior hierárquico jesuíta a quem todos deviam total obediência.

Criava-se gado, lavouras de cereais, legumes, algodão, trigo, linho, milho e mandioca.

“Constituía dever fundamental no instituto Inácio de Loiola a convicção, por parte de seus missionários, de serem tidas como serviço de Deus as árduas e incruentas tarefas de que eram incumbidos. A sua palavra evangelizadora devia ser ouvida em lugares arriscadíssimos, ermos, onde quer que aproveitasse ao seu objetivo capital: catequizar sob a crença no cristianismo, reduzindo à civilização os índios selvagens, agremiando-os em centros mais ou menos populosos. À submissão das tribos seguia-se a sua localização em regiões previamente escolhidas. Como é sabido, todas estas aldeias eram edificadas em belíssimos sítios e obedeciam a um plano geral de construções feitas pelos íncolas sob a direção dos jesuítas. Dispunham de praça, igreja, colégio (residência dos curas), escolas, casas, moradia, armazéns para depósitos de colheita, oficinas, cemitério, etc.”.

Para a atividade pedagógica os jesuítas se serviam da música e da dança: para o índio era mais fácil aprender desta forma do que por meio da prosa falada.    

Sobre a natureza do temperamento do índio, o tema é controvertido. Fala-se muito da indolência do íncola mas é certo que os mesmos eram capazes de efetuar grandes esforços e dar muito de si, inclusive lutando e resistindo às tropas portuguesas e espanholas em armas. Consta que sabiam “sofrer na doença e na morte. O verdadeiro bravio era insensível”.

Pela diferença numérica e desequilíbrio de recursos, a tática dos guaranis fora parecida com a de uma guerrilha: evita o enfrentamento direto e derradeiro com o inimigo, com a criação de emboscadas de modo a atacar e matar pequenos grupos isolados, além da destruição de campos e passagens. Uma tática comum era deixar em campos abertos reses de boi ou carneiro para que alguns pequenos grupos os fossem buscar, quando eram então atacados por silvícolas escondidos nas matas.

A destruição da resistência guarani em Caiboaté foi o prenúncio da expulsão dos jesuítas do Brasil, o que ocorreu durante o período do Marquês de Pombal. Com a destruição das missões, muitos índios se dispersaram e voltaram ao estilo de vida anterior ao das missões. O Tratado de Madrid não foi plenamente concretizado e o grupo de demarcação dos territórios sequer logrou terminar sua tarefa de mapeamento e divisão dos territórios.  

sexta-feira, 8 de março de 2019

“Na Capitania de São Vicente” – Washington Luiz


“Na Capitania de São Vicente” – Washington Luiz 



Resenha livro - “Na Capitania de São Vicente” – Washington Luiz – Edições do Senado Federal Volume 24 – Brasília – 2004

Washington Luiz deverá ser primeiramente lembrado como o último presidente da chamada República Velha (1889-1930). Era chefe da nação quando da crise econômica de 1929 e foi no contexto de sua transição e da crise da chamada política do café com leite que se engendrou o movimento revolucionário vitorioso de 1930 dirigido por Getúlio Vargas e sua Aliança Liberal. O que porém poucos devem saber é que o presidente autor da famosa frase “governar é abrir estradas” foi também um profícuo historiador, particularmente das coisas paulistas.

Washington Luiz formou-se em Direito na Faculdade do Largo de São Francisco e desde os arquivos de São Paulo trabalhou nos primeiros anos do séc. XX pesquisando o passado colonial da cidade bandeirante, escrevendo partes de suas pesquisas no Jornal do Comércio e na revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro da qual foi colaborador.

Ao assumir os cargos de prefeito e presidente do estado de São Paulo teve de se ocupar menos dos estudos da história. Contudo, deve-se ao ex-presidente a expansão do conhecimento do nosso passado com a publicação de documentos por meio do Arquivo do Estado – são as fontes do historiador que dizem respeito a testamentos, inventários, missivas e atas da Câmara Paulista.  Há muitas lacunas nesta documentação, há papeis ilegíveis e comidos pelas traças. Na São Paulo colonial onde a educação é reduzida a alguns agrupamentos jesuíticos com o analfabetismo reinante, a redação dos escrivãos é dificilmente legível pelo historiador de hoje.

Este trabalho foi publicado em 1956: após o exílio do Brasil diante da revolução de 1930, Washington Luiz esteve em Portugal durante alguns anos onde pôde complementar suas pesquisas acerca do passado paulista em Coimbra. Este ensaio trata da capitania de São Vicente durante os 1500 e 1600, quando se estabelece nas vilas de São Vicente, de Santos, de Santo André e de São Paulo pequenas povoações cercadas por todos os lados de índios bravios, de corsários ingleses e franceses. É reinante a pobreza  material e cultural que grassava mesmo dentre os elementos nobres da população.

São Paulo estando a 70 km do litoral e a 750 metros de altitude em relação ao mar seria oficialmente fundada em janeiro de 1554, pouco após a expedição demarcatória de Martim Afonso de Souza (1530), da distribuição das terras do Brasil para capitães e donatários e a divisão do território brasileiro em capitanias hereditárias (1532).

Considerando as dificuldades de acesso e comunicação ao planalto de Piratininga, era extremamente difícil a autoridade real impor sua política: apenas um navio por ano fazia o trajeto de São Vicente à metrópole. Diante das notícias de ouro descobertos nos territórios espanhóis, os reis de Portugal a começar por D. João III buscaram estabelecer na medida do possível a ocupação territorial do Brasil, a defesa de suas fronteiras diante de franceses, ingleses e corsários e a busca através de entradas do ouro, da prata e da mão de obra escrava indígena, esta última predominante na capitania de São Vicente.

Foi justamente a busca pelo ouro e por escravos gentios que motivaram as bandeiras que estenderam o conhecimento dos territórios e criavam arraias e povoações desde o litoral até o interior por Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais. Ainda nos anos de 1600, quando apenas algumas faíscas de ouro haviam sido descobertas no Jaraguá em São Paulo há notícias de bandeiras paulistas que atingem o São Francisco onde se relata a existência da prata. A existência das riquezas minerais esteve presente durante todo o período em exame incentivando a vinda de todo tipo de aventureiros. Os bandeirantes então chamados de sertanistas mobilizavam o povo, formavam tropas de índios aliados como os tupis (dos quais fizeram parte Tibiraçá e o português João Ramalho que, não se sabe se degredado ou fugitivo de navio, foi dos primeiros elementos brancos a se estabelecer no planalto paulista, casando-se com a filha do chefe indígena e pavimentando a articulação entre colonizadores e os índios). Declarava-se a guerra justa contra índios carijós e tupinambás (estes frequentemente aliados dos franceses).

Há aqui a necessidade de um parênteses. Uma certa orientação de tipo culturalista tem entrado em voga na análise da história brasileira ressaltando o protagonismo do índio enquanto elemento constitutivo da sociedade colonial – e isto é até certo ponto correto, considerando desde os primeiros escambos entre navegadores e índios antes do esforço de ocupação do território brasileiro com as capitanias hereditárias e o governo geral; também é exato diante da incorporação do índio ao mundo de tipo medieval que informa a visão social de mundo portuguesa especialmente com a intervenção dos jesuítas. Sabe-se que os índios eram decisivos nas entradas, conhecedores que eram dos afluentes dos rios e dos melhores meios de transporte pelo interior. Mas estes dados não devem nos fazer perder de vista que os índios brasileiros ainda se constituíam nos primeiros anos da colônia em situação de barbárie: a antropofagia era uma prática disseminada e não foram poucos aventureiros do sertão que terminaram digeridos por tribos que eram do tipo nômade, sem o desenvolvimento sequer da agricultura, vivendo da pesca e da caça, e bebendo o cauim, a bebida alcoólica fermentada da mandioca que dava naturalmente. Consta inclusive que estas práticas de canibalismo não eram exatamente uma forma de vingança diante de um rival em guerra. A carne humana era apreciada pelos índios, o ritual de antropofagia envolvia toda a tribo quando as mulheres anciãs eram responsáveis pela retirada das tripas e a divisão da caça ao grupo.

Como uma matilha de lobos, portanto.

De outra monta, esta vertente culturalista alimenta uma versão da história segundo a qual os bandeirantes seriam meros vilões que oprimiram os índios para impor sua cultura e seus interesses sócio-econômicos. Mais uma vez aqui a versão dos fatos parece ser parcial. As entradas não foram exatamente dirigidas pela alta aristocracia portuguesa que comandava indiretamente a guerra justa desde posição privilegiada, livre de riscos pessoais e pecuniários. Quem se mobilizava para as entradas eram antes de tudo os mamelucos, filhos de índios com brancos e habituados à condições de existência de extrema pobreza e penúria, sem saber quando e o que irá comer, suscetível ao calor extremo, às chuvas e inundações dos rios do planalto e aos ataques dos carijós, tupinambás e corsários.  Há relatos de pessoa da terra que quando instada a obedecer os ditames da Inquisição responde em tom de ameaça: “acabarei com a inquisição a flechadas”. (pg. 124).

Isto significa dizer que as entradas e a busca pelo ouro e gentio no sertão envolvia uma mobilização militar das pessoas da terra (colonos mamelucos) e índios aliados – muitas das mobilizações são mesmo defensivas e buscam socorrer povoados e arraiais atacados pelo gentio. Com o ouro o mameluco busca mercês e títulos de nobreza. Com o ouro os reis de Espanha e Portugal buscavam equiparar-se para a guerra.  

“A obediência dos bandeirantes a seus cabos não era imposta pela força ou em virtude de regras pré-estabelecidas; mas aceita voluntariamente por todos como condição para o bom êxito da empresa, na qual todos eram interessados, tendo em vista a existência individual e a própria existência coletiva. Uma espécie desse instinto coletivo que une todos, quando todos sentem que trabalham perigosamente para o interesse comum.


Quando entravam pelo sertão, iam armados de arcabuzes, escopetas, mosquetes, espadas, como armas ofensivas, as melhores da época; e, como armas defensivas, iam com alcochoados de algodão, com que se revestiam, úteis contra as setas indígenas que neles se amorteciam. Os índios auxiliares só dispunham de arco e flechas e muitos deles só serviam para transportar pequenas cargas, como ferramentas, e, talvez, alguns poucos mantimentos para os primeiros dias. Levavam também grilhões para aprisionamento do índio vencido”. (pg. 228).        

Os índios assim estão associados aos colonos através de uma relação de extermínio, escravidão e cruzamento. Uma diferente ordem de interesses reside na relação do índio com o jesuíta que se posiciona contra a escravidão e frequentemente se mobiliza para evitar as entradas que se destinam não só à busca do ouro, mas à escravização dos indígenas. Acerca dos jesuítas suas origens remontam a 1540:

“Os jesuítas faziam votos de pobreza, de castidade e de obediência e se organizaram para defender e revigorar a fé católica, então extremamente abalada pela reforma e robuster os princípios cristãos por todos os meios honestos, com o desprendimento dos bens terrestres e principalmente com o desprezo da vida. Organizou-se com um Superior Geral – Inácio de Loyola – em Roma e com diversos provinciais nas diferentes regiões do mundo”.

As transformações decisivas de São Paulo que faria da capitania, posteriormente da província imperial e do  estado republicano uma metrópole mundial viriam muito depois. A descoberta do ouro e o ciclo mineiro na verdade engendrou o esvaziamento da cidade e o encarecimento da vida. Foi com o desenvolvimento do café a partir de meados do século XIX que a então província viria a ter um novo papel protagonista. São Paulo foi pioneira na introdução da mão de obra livre através de colonos italianos, alemães, espanhóis e portugueses e o alto valor do café no mercado mundial garantiu a acumulação capitalista para a industrialização, para instalação pioneira de ferrovias[1] e bondes, para o desenvolvimento cultural com o importante papel da escola de direito no Largo de São Francisco. Hoje o Estado de São Paulo tem um PIB maior do que o de toda a Argentina[2], é o estado mais industrializado do Brasil, com os maiores batalhões de trabalhadores de todo o país. Estudar e compreender o desenvolvimento histórico paulista bem como afastar alguns mitos pós-modernos que cercam a história regional são tarefas essenciais para uma análise mais profícua da chamada questão nacional.

Imagem - ANTIGO Pátio do Colégio. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: . Acesso em: 08 de Mar. 2019. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7


[1] A São Paulo Railway Company (SPR) foi a primeira ferrovia construída em São Paulo, e a segunda no Brasil. Financiada com capital inglês, sua construção foi iniciada em 1860, enfrentando muitas dificuldades técnicas durante a implantação, principalmente no trecho da Serra do Mar.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

“A Abolição do Comércio de Escravos No Brasil” Parte II – Leslie Bethell


“A Abolição do Comércio de Escravos No Brasil”  Parte II – Leslie Bethell

 Françoise Biard - Abolição da Escravidão nas Colônias Francesas em 1849

Resenha Livro - “A Abolição do Comércio de Escravos No Brasil”  Parte II – Leslie Bethell – Coleção Biblioteca Básica Brasileira – Senado Federal

Este estudo do pesquisador britânico Leslie Bethell exigiu-nos a divisão da resenha em duas partes. A primeira aborda questões mais gerais do problema do comércio de escravos, as razões de fundo sócio-econômicos que levaram a Grã-Bretanha a abolir o tráfico entre suas próprias colônias ocidentais (1807) e a divisão em que estava a classes proprietária brasileira quanto ao tema. (Ver: http://esperandopaulo.blogspot.com/2019/02/a-abolicao-do-comercio-brasileiro-de.html )

Nesta segunda parte discutiremos os aspectos de direito interno e internacional que implicaram gradualmente na contenção e extinção daquele comércio, as lutas políticas e as intervenções militares que culminaram na promulgação da lei Eusébio de Queirós em setembro de 1850 com a extinção efetiva do comércio negreiro no Brasil, sob a ameaça da força naval britânica de um lado e o risco da reação nacionalista brasileira que desde décadas observava de forma passiva a arbitrariedade inglesa intervindo em águas territoriais brasileiras. A Inglaterra chegou mesmo a tratar, conforme interpretação unilateral do tratado anglo-brasileiro de 1826, embarcações suspeita do comércio proibido como navios piratas, sujeitando súditos brasileiros aos tribunais ingleses e à busca e apreensão de navios em águas territoriais, rios e portos do Brasil.

“Esse influxo sem precedentes de mais de 175.000 escravos num período de três anos antes da abolição final (1831) despertou, numa forma mais extremada, uma emoção que sempre estivera presente no Brasil, ainda que, em geral, de forma latente: o medo da africanização. Num país em que os escravos negros formavam uma proporção tão grande da população total, o argumento de que a continuada importação maciça de africanos degradava e barbarizava um país já atrasado e – como os escravos eram os inimigos naturais dos seus senhores – constituía uma ameaça sempre crescente para a segurança interna e a dominação branca era muito mais efetiva do que os argumentos abolicionistas convencionais sobre a imoralidade do comércio de escravos ou a superioridade do trabalho livre e das máquinas sobre a mão de obra escrava”. 

Em que pese à existência de um movimento abolicionista tanto na Inglaterra quanto no Brasil, neste último caso ainda muito incipiente, a divisão da classe dirigente quanto ao problema do tráfico dizia respeito muito menos às razões humanitárias do que aos interesses de curto, médio e longo prazo dos países envolvidos. Havia setores que bem lembravam a insurreição de escravos de São Domingos  do Haiti (1791)  e mesmo da revolta dos malês na Bahia (1835) como sinais dos grandes riscos por que passava o Brasil face à entrada anual de dezenas de milhares de negros de África, especialmente desde os portos da Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.

Além disso, já desde as primeiras décadas do século XIX era perceptível à classe dominante brasileira que o comércio de escravos estavam com os dias contados. A Grã-Bretanha entabularia tratados com Portugal, Espanha e posteriormente com os EUA para o combate do comércio. Navios de busca britânicos atuavam constantemente nas costas da África e América e tribunais mistos anglo-brasileiros e anglo-portugueses agiam condenando as embarcações, destruindo-as ou incorporando-as à frota naval inglesa e, eventualmente, liberando os escravos que sobreviviam ante os meses que iam da captura das embarcações às decisões finais dos tribunais. Os ingleses buscavam sempre levar as embarcações capturadas ao tribunal misto de Serra Leoa: não se deve negligenciar as dificuldades àquela época de manter um tribunal marítimo em terras africanas onde grassam a malária e a febre amarela. De outro lado, a regra sempre era que nos tribunais mistos, o voto brasileiro tendia à absolvição e o voto britânico tendia à condenação. Ocorre que por dificuldades tanto políticas quanto logísticas os brasileiros na maior parte das vezes não conseguiam manter seu representante no tribunal misto de Serra Leoa facilitando a condenação.

De outro lado havia os interesses diretos dos proprietários rurais que tinham hegemonia nas câmaras municipais e nos juízos locais. Invariavelmente quando barcos suspeitos de tráfico eram remetidos aos juízos municipais os mesmos eram absolvidos e não há razões para duvidar que muito do comércio ilegal sobreviveu ante o suborno e a propina.

O comércio de tráficos no Brasil foi abolido formalmente através de uma lei interna em 1831. Estabeleceu-se um prazo de 3 anos para que o país se preparasse para obter sua mão de obra através de outros meios. Imigrantes e colonos de fato começaram a aparecer no Brasil tendo como movimento pioneiro a criação da Fazenda Angélica do senador Vergueiro (1840-50). Mas ainda eram iniciativas muito limitadas, longe de atender à demanda de um país todo ele apoiado na produção rural em larga escala voltada ao comércio externo mediante o trabalho escravo. De qualquer forma, nestes três anos o número de escravos introduzidos no país aumentou espantosamente, e, após alguma vacilação nos anos posteriores à proibição, o comércio, agora ilegal, voltou a subir. Em 1840 entraram no Brasil provavelmente 30.000 escravos. Durante a década de 1940 o número só aumentou culminando em 60.000 em 1848 para, após a lei Eusébio de Queiróz, reduzir-se para 3.287, extinguindo-se o tráficos cerca de 2 ou 3 anos depois. Certamente a lei foi fruto de uma situação de impasse criado pelos artifícios com que os contrabantistas burlavam o cerco sobre o comércio e o crescente endurecimento inglês.  

Começou na Grã-Bretanha a fazer-se sentir opiniões em jornais e no parlamento colocando-se contra a estratégia de força imposta pela marinha inglesa no combate ao tráfico: além do policiamento do atlântico revelar-se custoso, a intervenção britânica causou mais de uma vez conflitos com um país que tinha desde a sua independência ou mesmo antes quando da abertura dos portos em 1808 uma relação comercial privilegiada com os ingleses. Estas críticas contra o sistema britânico tiveram na prática um resultado inverso: para garantir o abolição do comércio, diante da renitência do Brasil adotar um novo tratado que substituísse o pacto de 1826 fazia-se necessário um endurecimento ainda maior. A cláusula de equipamento que persistia ao menos formalmente fora dos tratados permitia que os navios que carregassem qualquer equipagem relacionada ao comércio de escravos poderia ser condenado. A cláusula de direito de busca que na verdade já vinha estabelecida no tratado de 1817 (incorporado pelo Brasil independente) também deveria ser ampliada, principalmente diante da bandeira americana que não permitia a intervenção sumária de busca e apreensão dos navios ingleses. De qualquer forma, em 1850 foi o recrudescimento da pressão militar britânica que compeliu o Brasil a adotar uma lei efetiva contra o comércio. 

Se o Brasil não agisse imediatamente, poderia ver a sua soberania nacional e independência flagrantemente violados. 

Por outro lado, uma guerra com a Inglaterra naquele momento era duplamente arriscado: não só face ao poderio militar inglês mas devido aos eventos envolvendo o ditador Rosas. A Guerra do Prata  também envolveu risco a soberania do Brasil na região meridional e no conflito que envolveu Brasil, Argentina e Uruguai, o apoio naval inglês era imprescindível.

Durante o primeiro trimestre de 1851, só foram reportados dois desembarques de escravos bem sucedidos ao longo de toda a costa do Brasil, do Pará ao Rio Grande do Sul: um no Rio de janeiro e outro em Pernambuco. Com a abolição o preço dos escravos no país aumentou substancialmente de modo que os fazendeiros do sudeste, desde o Rio de Janeiro e São Paulo, passaram a adquirir escravos das antigas regiões associadas ao comércio de açúcar, agora já em decadência. Todavia, a próxima medida no sentido de se assegurar a liberdade do negro só ocorreria com a Lei do Vente Livre (1871), a Lei dos Sexagenários (1885) e a abolição total dos escravos no ano de 1888, quase 40 anos após a lei Eusébio de Queiróz.