quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

“A Abolição do Comércio de Escravos No Brasil” Parte II – Leslie Bethell


“A Abolição do Comércio de Escravos No Brasil”  Parte II – Leslie Bethell

 Françoise Biard - Abolição da Escravidão nas Colônias Francesas em 1849

Resenha Livro - “A Abolição do Comércio de Escravos No Brasil”  Parte II – Leslie Bethell – Coleção Biblioteca Básica Brasileira – Senado Federal

Este estudo do pesquisador britânico Leslie Bethell exigiu-nos a divisão da resenha em duas partes. A primeira aborda questões mais gerais do problema do comércio de escravos, as razões de fundo sócio-econômicos que levaram a Grã-Bretanha a abolir o tráfico entre suas próprias colônias ocidentais (1807) e a divisão em que estava a classes proprietária brasileira quanto ao tema. (Ver: http://esperandopaulo.blogspot.com/2019/02/a-abolicao-do-comercio-brasileiro-de.html )

Nesta segunda parte discutiremos os aspectos de direito interno e internacional que implicaram gradualmente na contenção e extinção daquele comércio, as lutas políticas e as intervenções militares que culminaram na promulgação da lei Eusébio de Queirós em setembro de 1850 com a extinção efetiva do comércio negreiro no Brasil, sob a ameaça da força naval britânica de um lado e o risco da reação nacionalista brasileira que desde décadas observava de forma passiva a arbitrariedade inglesa intervindo em águas territoriais brasileiras. A Inglaterra chegou mesmo a tratar, conforme interpretação unilateral do tratado anglo-brasileiro de 1826, embarcações suspeita do comércio proibido como navios piratas, sujeitando súditos brasileiros aos tribunais ingleses e à busca e apreensão de navios em águas territoriais, rios e portos do Brasil.

“Esse influxo sem precedentes de mais de 175.000 escravos num período de três anos antes da abolição final (1831) despertou, numa forma mais extremada, uma emoção que sempre estivera presente no Brasil, ainda que, em geral, de forma latente: o medo da africanização. Num país em que os escravos negros formavam uma proporção tão grande da população total, o argumento de que a continuada importação maciça de africanos degradava e barbarizava um país já atrasado e – como os escravos eram os inimigos naturais dos seus senhores – constituía uma ameaça sempre crescente para a segurança interna e a dominação branca era muito mais efetiva do que os argumentos abolicionistas convencionais sobre a imoralidade do comércio de escravos ou a superioridade do trabalho livre e das máquinas sobre a mão de obra escrava”. 

Em que pese à existência de um movimento abolicionista tanto na Inglaterra quanto no Brasil, neste último caso ainda muito incipiente, a divisão da classe dirigente quanto ao problema do tráfico dizia respeito muito menos às razões humanitárias do que aos interesses de curto, médio e longo prazo dos países envolvidos. Havia setores que bem lembravam a insurreição de escravos de São Domingos  do Haiti (1791)  e mesmo da revolta dos malês na Bahia (1835) como sinais dos grandes riscos por que passava o Brasil face à entrada anual de dezenas de milhares de negros de África, especialmente desde os portos da Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.

Além disso, já desde as primeiras décadas do século XIX era perceptível à classe dominante brasileira que o comércio de escravos estavam com os dias contados. A Grã-Bretanha entabularia tratados com Portugal, Espanha e posteriormente com os EUA para o combate do comércio. Navios de busca britânicos atuavam constantemente nas costas da África e América e tribunais mistos anglo-brasileiros e anglo-portugueses agiam condenando as embarcações, destruindo-as ou incorporando-as à frota naval inglesa e, eventualmente, liberando os escravos que sobreviviam ante os meses que iam da captura das embarcações às decisões finais dos tribunais. Os ingleses buscavam sempre levar as embarcações capturadas ao tribunal misto de Serra Leoa: não se deve negligenciar as dificuldades àquela época de manter um tribunal marítimo em terras africanas onde grassam a malária e a febre amarela. De outro lado, a regra sempre era que nos tribunais mistos, o voto brasileiro tendia à absolvição e o voto britânico tendia à condenação. Ocorre que por dificuldades tanto políticas quanto logísticas os brasileiros na maior parte das vezes não conseguiam manter seu representante no tribunal misto de Serra Leoa facilitando a condenação.

De outro lado havia os interesses diretos dos proprietários rurais que tinham hegemonia nas câmaras municipais e nos juízos locais. Invariavelmente quando barcos suspeitos de tráfico eram remetidos aos juízos municipais os mesmos eram absolvidos e não há razões para duvidar que muito do comércio ilegal sobreviveu ante o suborno e a propina.

O comércio de tráficos no Brasil foi abolido formalmente através de uma lei interna em 1831. Estabeleceu-se um prazo de 3 anos para que o país se preparasse para obter sua mão de obra através de outros meios. Imigrantes e colonos de fato começaram a aparecer no Brasil tendo como movimento pioneiro a criação da Fazenda Angélica do senador Vergueiro (1840-50). Mas ainda eram iniciativas muito limitadas, longe de atender à demanda de um país todo ele apoiado na produção rural em larga escala voltada ao comércio externo mediante o trabalho escravo. De qualquer forma, nestes três anos o número de escravos introduzidos no país aumentou espantosamente, e, após alguma vacilação nos anos posteriores à proibição, o comércio, agora ilegal, voltou a subir. Em 1840 entraram no Brasil provavelmente 30.000 escravos. Durante a década de 1940 o número só aumentou culminando em 60.000 em 1848 para, após a lei Eusébio de Queiróz, reduzir-se para 3.287, extinguindo-se o tráficos cerca de 2 ou 3 anos depois. Certamente a lei foi fruto de uma situação de impasse criado pelos artifícios com que os contrabantistas burlavam o cerco sobre o comércio e o crescente endurecimento inglês.  

Começou na Grã-Bretanha a fazer-se sentir opiniões em jornais e no parlamento colocando-se contra a estratégia de força imposta pela marinha inglesa no combate ao tráfico: além do policiamento do atlântico revelar-se custoso, a intervenção britânica causou mais de uma vez conflitos com um país que tinha desde a sua independência ou mesmo antes quando da abertura dos portos em 1808 uma relação comercial privilegiada com os ingleses. Estas críticas contra o sistema britânico tiveram na prática um resultado inverso: para garantir o abolição do comércio, diante da renitência do Brasil adotar um novo tratado que substituísse o pacto de 1826 fazia-se necessário um endurecimento ainda maior. A cláusula de equipamento que persistia ao menos formalmente fora dos tratados permitia que os navios que carregassem qualquer equipagem relacionada ao comércio de escravos poderia ser condenado. A cláusula de direito de busca que na verdade já vinha estabelecida no tratado de 1817 (incorporado pelo Brasil independente) também deveria ser ampliada, principalmente diante da bandeira americana que não permitia a intervenção sumária de busca e apreensão dos navios ingleses. De qualquer forma, em 1850 foi o recrudescimento da pressão militar britânica que compeliu o Brasil a adotar uma lei efetiva contra o comércio. 

Se o Brasil não agisse imediatamente, poderia ver a sua soberania nacional e independência flagrantemente violados. 

Por outro lado, uma guerra com a Inglaterra naquele momento era duplamente arriscado: não só face ao poderio militar inglês mas devido aos eventos envolvendo o ditador Rosas. A Guerra do Prata  também envolveu risco a soberania do Brasil na região meridional e no conflito que envolveu Brasil, Argentina e Uruguai, o apoio naval inglês era imprescindível.

Durante o primeiro trimestre de 1851, só foram reportados dois desembarques de escravos bem sucedidos ao longo de toda a costa do Brasil, do Pará ao Rio Grande do Sul: um no Rio de janeiro e outro em Pernambuco. Com a abolição o preço dos escravos no país aumentou substancialmente de modo que os fazendeiros do sudeste, desde o Rio de Janeiro e São Paulo, passaram a adquirir escravos das antigas regiões associadas ao comércio de açúcar, agora já em decadência. Todavia, a próxima medida no sentido de se assegurar a liberdade do negro só ocorreria com a Lei do Vente Livre (1871), a Lei dos Sexagenários (1885) e a abolição total dos escravos no ano de 1888, quase 40 anos após a lei Eusébio de Queiróz.   

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