quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

“Martí – e as Duas Américas” – Pedro Pablo Rodriguez

“Martí – e as Duas Américas” – Pedro Pablo Rodriguez 



Resenha Livro - 212 -  “Martí – e as Duas Américas” – Pedro Pablo Rodriguez – Ed. Expressão Popular 


A experiência colonial da América Portuguesa e da América Espanhola encontraria vastas particularidades na história, dentre elas, uma particularmente visível: o processo de descolonização. A independência política brasileira foi sob certo sentido um processo pactuado entre elites políticas desde a Europa e desde os trópicos, manejado de tal forma que a vasta unidade territorial brasileira foi preservada, com poucos e localizados conflitos regionais. Fenômeno distinto pôde ser observado na América espanhola em que o processo de descolonização foi muito mais conflituoso, envolveu diretamente a participação de uma certa elite política local bastante influenciada por ideias liberais e republicanas, culminando, outrossim, numa maior repartição territorial – em que pese as ambições de um Bolívar, que, dentro daquele contexto de emancipação, defendia a união de todos os povos latino-americanos. 

José Martí foi um pensador, jornalista e ativista político cubano que viveu e atuou politicamente no último quartel do século XIX sendo um representante original daquela elite política liberal engajada nas jornadas de luta pela emancipação da América Latina, e, no caso mais especificamente de Martí, de Cuba e Porto Rico. Viveu durante muitos anos como correspondente político fazendo jornalismo no México,  Guatemala, Venezuela e Estados Unidos, além de ser fundador do Partido Revolucionário Cubano (1892). 

Este trabalho de Pedro Rodriguez busca fazer todo um intinerário do pensamento político de José Martí, desde sua juventude:

“Martí, adolescente, manteve-se a par do desastre espanhol com a anexação de Santo Domingo, da vitória dos liberais mexicanos frente ao império de Maximiliano, e do triunfo do norte abolicionista sobre o Sul escravagista nos Estados Unidos. As principais características do contexto sócio político era o liberalismo, o republicanismo, o progresso técnico e científico e a luta pela abolição da escravatura”. 

Ressaltamos que muitas destas questões ainda estavam pendentes no universo próximo de Martí. A escravidão apenas foi abolida em Cuba 1886, quando Martí já contava com 33 anos e residia em Nova York como correspondente. A vitória do norte na guerra de secessão nos EUA implicava na vitória do modelo de desenvolvimento industrial que privilegiava o incentivo à vinda de imigrantes europeus, a industrialização associada à superexploração do trabalho, resultando em greves e distúrbios sociais, fatos que não passaram despercebidos em suas crônicas. Ainda que não se colocava como um socialista stricto senso, Martí foi um igualitarista e paulatinamente vai observando como as contradições do regime capitalista mantêm vínculos com a criação de monopólios e lastros de interesses junto aos detentores do poder político. Por isso, são nas “Cenas de Nova York” que Martí está mais próximo de um crítico mais objetivo do capitalismo, ainda que com todos os seus limites de um homem liberal, republicano e igualitarista, defensor intransigente da unidade e autonomia latino americanas.

Antes de sua passagem pelos EUA, José Martí esteve na Guatemala governada por Justo Rufino Barrios e posteriormente na Venezuela de Guzman Blanco. Tinha como política evitar ao máximo evitar constrangimentos no sentido de intervir diretamente na política interna dos países: como pensador, poeta e jornalista, tinha objetivos mais amplos voltados à consecução da unidade latino americana, à sua defesa diante de ameaças de violação de sua soberania frente ao imperialismo norte americano, que se concretizava, por exemplo, na tentativa da criação de um canal na Nicarágua. Desde estes países, também atuava pela independência tardia de Cuba e Porto Rico: 

“E (seu) primeiro passo foi buscar unificar a ação da emigração cubana, para o que fundou o Partido Revolucionário Cubano, em 10 de Abril de 1892. 

Eleito seu delegado – original maneira com que, nas bases do partido, foi denominado seu dirigente máximo, de todos os pontos de vista uma forma de reforçar a representatividade desse cargo eletivo -, Martí concebeu essa organização política como ensaio da “república nova”, ainda que seu propósito imediato fosse preparar a guerra para a independência das últimas duas possessões espanholas da América. De fato, em sua opinião, o férreo domínio colonial apenas admitia o enfrentamento pelas armas”. 

E ainda desde sua acolhida na Venezuela, Guatemala e México, pôde constatar e desenvolver uma ideia reiterada: o fato de que concepções políticas importadas/ exógenas não têm o condão de dar solução aos dilemas da América Latina ou mesmo da América como um todo. Assim, mesmo no que se refere ao liberalismo, observa como o ideário liberal fica a meio do caminho diante de dirigentes autoritários como Guzman Blanco (Venezuela) que virtualmente o expulsara do país. O que ocorre é que os ideários liberais no contexto latino americano são distorcidos de forma a resultar no velho caudilhismo autoritário, com perseguição aos oposicionistas ou a qualquer participação ativa popular. 

De outro lado, o mesmo raciocínio é levado ao extremo por José Martí quanto ao socialismo e ao anarquismo que seriam igualmente inadequados em solos americanos, dentre outras razões, pela sua violência intrínseca.      

Todavia, esta não aceitação do socialismo, diante do contexto histórico vivido pelo autor, pode ser tomada como algo formal. Martí tinha uma tendência igualitarista bastante clara e sempre se manifestava a favor dos humildes, em que pese algumas diferenças quanto às táticas do movimento operário anarquista de então quanto ao uso de bombas. E mais: Martí foi o mais avançado dentre aqueles liberais emancipadores da América espanhola, seja pela sua plena posição anti-imperialista seja por sua vanguardista posição em defesa dos povos pré-colombianos: Martí foi um intransigente defensor da América por causo dos índios e por causa da mistura das raças junto a estes povos, o que sempre buscava delinear, junto com as belezas naturais nativas, de forma poética. Tanto o sonho de Bolívar quanto o de Martí seguem pendentes, o da unificação dos povos americanos, sem qualquer fronteiras, desta feita compartilhando todas as riquezas de forma solidária, sob a bandeira do socialismo. 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

“Bem Vindo ao Deserto do Real!” – Slavoj Zizec

“Bem Vindo ao Deserto do Real!” – Slavoj Zizec 



Resenha livro –  211- “Bem Vindo ao Deserto do Real” – Slavoj Zizec – Ed. Boitempo

O filósofo esloveno S. Zizec é um caso raro de pensador/intelectual com certo prestígio fora do âmbito acadêmico. Se considerarmos que o supracitado também desenvolve trabalhos na área de crítica de cinema (é especialista na obra de Hitchock) bem como nos estudos de psicanálise, pode-se aferir a razão pela qual suas teses acerca dos assim denominados “cutural studies” perpassam temas tão vastos como reflexões sobre produções de cinema, implicações da política internacional  diante da paranoia criada pelos eventos de 11 de Setembro de 2002 e as respectivas relações da política com a psicanálise lacaniana. Outro dado a ser considerado é que Slavoj Zizec é um pensador com bastante inserção na Indústria Cultural, contando, só no Brasil, com a publicação de pelo menos 7 livros, além de palestras e entrevistas por todo mundo: Zizec costuma participar especificamente de eventos caros à reflexão e debates dos destinos da esquerda mundial, como é o caso do Marxism Festival, realizado anualmente, sob organização do SWP, Socialist Workers Party (Ver uma de suas palestras aqui: https://www.youtube.com/watch?v=_GD69Cc20rw )

“Bem vindo ao Deserto do Real” reúne 5 ensaios cujo eixo temático é a reação norte-americana aos eventos de 11.09.2002  Em primeiro lugar, constata-se uma mudança radical na orientação da política internacional norte-americana se comparada aos quadros de referência da fase da Guerra Fria. A lógica de “guerra ao terror” implica ao “estado de ameaça terrorista eternamente suspenso”. Ademais, ataques preventivos são justificados, com o sem o aval de países aliados, em que pese o fato inédito do inimigo não mais circunscrever-se em territórios nacionais. Zizec a todo instante reitera a nova dimensão da guerra que se coloca, uma guerra esvaziada de sua substância, algo sintomático de nossos tempos, sem soldados se enfrentando nas trincheiras e sem baixas aparentes, guerra travada diante de computadores que são operacionalizados desde longe. 

Outro aspecto a se destacar frente ao 11 de Setembro que de forma contumaz trouxe os norteamericanos de volta à realidade – de volta ao “Real” e não mas acompanhando guerras de Ruanda ou Iugoslávia desde o conforto da Televisão – é a restauração da inocência do patriotismo americano. 

“Aqui, a ironia última é que, a fim de restaurar a inocência do patriotismo americano, o establishment conservador americano mobilizou o principal ingrediente da ideologia politicamente correta que ele oficialmente despreza: a lógica da vitimização. Apoiando-se na ideia de que a autoridade é conferida (apenas) aos que falam  da posição de vítima, ele se baseava no seguinte raciocínio implícito: “Agora nós somos as vítimas, e é isso que legitima o fato de falarmos (e agirmos) de uma posição de autoridade”. Assim, quando se ouve hoje o slogan de que terminou o sonho liberal da década de 1990, que, com os ataques ao WTC, fomos violentamente atirados ao mundo real, que acabaram os tranquilos jogos intelectuais, devemos nos lembrar de que esse chamado enfrentamento da dura realidade é ideologia em estado puro. O slogan de hoje, “Americanos, acordem!” é uma lembrança distante do grito de Hitler, “Deutschland, erwache!”, que, como Adorno escreveu há muito tempo, significava exatamente ao contrário”. 

Interessante sondar demais implicações dos usos e abusos da lógica da vitimização não só dentro do jogo da política internacional, mas nas traumáticas interações pessoais a partir das quais grupos de combate às opressões buscarão consolidar seus espaços de poder. Dentre as diversas variáveis nesta complexa equação que envolve a experiência humana, certamente há de se destacar aquilo que genericamente colocaríamos como vontade da potência. De outro modo, desde o ponto estritamente pessoal, exercer o papel de vítima é bastante diferente de ser vítima da exploração e da opressão – no primeiro caso trata-se de um oportunismo, de um cretinismo do qual não estão isento negros e especialmente feministas, Gays, Lésbicas e afins. A interpelação ideológica identificada com eficiência por Zizec é parte de sua análise que envolve a teoria crítica – com influências e citações de autores da Escola de Frankfurt como T. Adorno – a psicanálise lacaniana, a filosofia e especificamente a dialética hegeliana e uma orientação política que o coloca entre os socialistas e a democracia radical. 

Dentro destes pressupostos, qual deve ser a leitura dos marxistas diante da obra de Slavoj Zizec? Nem todas as assertivas do filósofo esloveno devem ser encaradas sem reservas. Suas observações sobre Cuba, por exemplo, são bastante superficiais: identifica apenas a aparência dos fenômenos sociais da ilha, qual seja, as construções e edifícios tombados e datados de mais de meio século, automóveis antigos rondando cidades que parecem ter parado no tempo e cita como referência o romance de Pedro Juán Guthiérrez, um raivoso dissidente e jornalista que mora livre na ilha a difamar o regime de Fidel. Zizec de outro lado não faz nenhum  comentário sequer ao embargo econômico e pouco diz sobre a evolução histórica e econômica de Cuba, que engendrou “atraso” – poderia igualmente comparar o “atraso” com dados socioeconômicos de Cuba e de outras capitais latinoamericanas. Outro erro a se destacar dentre os ensaios de Zizec parece o de associar a China a uma espécie de capitalismo de estado, desconsiderando o secular estado de opressão e espoliação estrangeira pelo qual os chineses lutaram.

De outro lado, entendemos que Slavoj Zizec é um autor que vale a pena ser conhecido e lido pela esquerda revolucionária. Não necessariamente pelas respostas ou sínteses que oferece mas especialmente pelas as perguntas que formula. Bons filósofos não necessariamente são aqueles que formulam as respostas corretas mas aqueles que problematizam, fazem perguntas que nos inquietam, instigam-nos a pensar. E aqui o filósofo e particularmente o psicanalista Zizec ganha maior relevância e tem maior contribuição para o marxismo. Dentro da tradição Marxista, foi Althusser um dos primeiros a vislumbrar as relações entre o materialismo histórico e dialético e a psicanálise e Zizec surge como uma original solução de continuidade. Um pequeno exemplo de como este casamento pode-nos ser concretamente relevante está na crítica da ideologia da livre escolha do multiculturalismo liberal, consoante Safatle no posfácio da obra, in verbis:  

“Esta politização da defesa da irredutibilidade do sujeito marca a maneira com que Zizec entra no debate da contemporaneidade. Lembremos, por exemplo, como ela é mobilizada na viabilização de sua crítica contra a ideologia da “livre escolha” própria ao multiculturalismo liberal, ideologia cujo ápice será o uso da noção de gender como construção performativa do sexual. Pois a experiência da negatividade do sujeito indica, entre outras coisas, como o desejo não se satisfaz na assunção de identidades ligadas a particularismos sexuais. O sujeito é aquilo que nunca é totalmente idêntico a seus papeis e identificações sociais, já que seu desejo insiste enquanto expressão da inadequação radical entre o sexual e as representações do gozo (seja na forma de identidades como: gay, lésbica, queer, SM, Andrógino). Isto permite a Zizec afirmar que a tolerância  da multiplicidade liberal (“cada um pode ter sua forma de gozo”) esconde a intolerância diante da opacidade radical do sexual. O que não deve nos surpreender, já que a falsa universalidade do Capital acomoda-se muito bem a esta multiplicidade. Todas estas reivindicações identitárias (que se dão principalmente na esfera do mercado: para cada identidade um targed com uma linha completa de produtos e uma linguagem publicitária específica) estão subordinadas à falsa universalidade do capital”.    

Um bom ponto de partida para dizer em alto e bom som que os marxistas leninistas devem estar contra a ideologia de gênero ensinada nas escolas.  

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

“Os Advogados e a Ditadura de 1964” – Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins (Org.) – Ed. Puc Rio Editora Vozes

“Os Advogados e a Ditadura de 1964” – Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins (Org.) – Ed. Puc Rio Editora Vozes





Resenha Livro - 210 - “Os Advogados e a Ditadura de 1964: A defesa dos perseguidos políticos no Brasil” – Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins (Org.) – Ed. Puc Rio Editora Vozes

Resenha dedicada à Sheila Évelin que gentilmente presenteou-me com um exemplar desta edição. 


O ofício do historiador pode não ter o reconhecimento social devido, mas certamente tem uma enorme relevância. É função do historiador investigar o passado para construir a narrativa que deverá consolidar uma memória da sociedade, a memória social. Podemos sondar a importância da memória social fazendo algumas comparações com a memória individual, a memória de nossas vidas pessoais. Precisamos de uma memória para com ela criarmos uma identidade, buscar referências, desde que somos aquilo que fazemos, somos o resultado de nossas experiências – consoante Marx, não é uma essência que determina o ser social, mas o contrário, é o ser social que determina a sua essência. Para além da identidade e suas referências pessoais, a memória tem um elo particular com a aprendizagem. Trata-se aqui daquela fórmula bastante conhecida de que os erros cometidos estão aí para servirem como aprendizagem. E aqui retomamos o conceito de memória social e sua relevância dentro do ofício do historiador. É necessário prestigiar o trabalho daqueles que constroem a memória social principalmente acerca de períodos da história onde há grandes evidências e um consenso de que o conjunto da sociedade esteve em erro – consolidar e ativar uma memória para que períodos tenebrosos da história não se repitam. 

Ainda que muito já tenha sido escrito, debatido e filmado acerca do período da ditadura militar no Brasil, ainda há muito o que avançar no que se refere a consolidação de uma memória que se certifique de que as torturas, as prisões arbitrárias em que os acusados eram tidos como incomunicáveis, a supressão do habeas corpus, dentre outros, não se repitam. Uma das pendências daquele período é a abertura completa de todos os arquivos da ditadura militar e há hoje famílias que dependem de informações para descobrir o paradeiro de entes, nem que seja para enterrar seus mortos dignamente. E como prova de que este passado não está nem um  longe de “repetir-se como farsa”, está em tramitação no Congresso Nacional uma “Lei Anti Terrorismo” que em nada fica devendo aos Atos Institucionais ultra autoritários do período em exame. Esta lei anti terror não define o que é terrorismo, ou muito mal o define, se servindo da ideia de terrorismo que absolutamente nunca teve qualquer atuação objetiva no Brasil, como de grupos como ISIS., mas que, com aplicação no Brasil, teria clara aplicação junto a movimentos sociais e grevistas. Um duro golpe ao movimento dos trabalhadores e populares, com um discurso ideológico muito semelhante ao conceito de “Segurança Nacional” dos militares. 

Diante de todos estes elementos, toda iniciativa que se volta para o período entre abril de 1964  e1985 com o objetivo de consolidar a memória social e trazer relatos sobre aquele tempo, esclarecer e disseminar o que ocorreu no período militar brasileiro, deve ser saudado. 

“Os Advogados e a Ditadura de 1964” corresponde uma série de artigos redigidos por historiadores, jornalistas e pesquisadores acerca de um grupo, na verdade um pequeno grupo de advogados que na prática exerceram um papel de enorme relevância na defesa jurídica de diversos acusados e presos durante a ditadura. Em geral estes advogados não tinham uma ideologia política marxista ou comunista como muitos dos réus, mas eram movidos por sentimentos humanistas, ora por ideais democráticos. E está fora de dúvidas  que salvaram vidas e evitaram torturas, importando ressaltar que, por suas iniciativas e combates jurídicos, sofreram eles próprios, prisões e sequestros. Com a exceção de um Sobral Pinto e Dalmo Dallari, a grande parte destes advogados também deve ser desconhecida do grande público como Heleno Fragoso, um grande jurista com grandes conhecimentos técnicos e que chegou a ser sequestrado pelos militares como forma de intimidação, e Eny Moreira, uma ativista jurídica incansável que começou como estagiária do escritório de Sobral Pinto no Rio de Janeiro e terminou como uma das idealizadoras do projeto “Brasil Nunca Mais”.

O “Projeto Brasil Nunca Mais” se insere também dentro da importância da preservação da memória histórica. Como estagiária, Eny escutava de Sobral Pinto relatos de que todos os processos de perseguidos políticos da ditadura do Estado Novo varguista foram incinerados, inviabilizando o trabalho de pesquisa acerca das dimensões da repressão, apuração de responsabilidades civis do estado, etc. Diante disso foi sendo consolidado o projeto “Brasil Nunca Mais” que resultou num livro de igual nome, uma obra que serviu como ponto de partida para constatação das violações de direitos humanos na ditadura.
Revisionismo histórico pela direita

Diante das lamentáveis cenas de hienas e coxinhas se manifestando nas ruas de São Paulo no ano de 2015, não só contra o governo do PT, mas contra ideias de esquerda e democracia, contra movimentos sociais e alguns pela intervenção militar, necessário observar que o ponto de partida para a defesa de militares no poder por esta gente é o esquecimento histórico ou revisionismo que irá mesmo subverter os fatos falando numa “revolução” de 1964 para a partir daí supor uma “paridade” de armas entre um aparato ideológico militar estatal com o apoio incondicional dos estados unidos contra minúsculos grupos divididos em pequenas frações pela luta armada, quando não indivíduos ou grupos, intelectuais ou movimentos, sem qualquer engajamento com luta violenta contra a ordem (como o PCB) e ainda assim presos, torturados e mortos, como os casos de Vladimir Herzog e do operário Manoel Filho. 

O conceito de “revolução” não é dos historiadores nem dos cientistas sociais, mas foi literalmente importado da física como chave explicativa para explicação de fenômenos sociais. Na física a revolução descreve o movimento de um corpo em órbita, a conclusão de um período completo considerando um ponto central de referência (que num círculo é o seu raio) é uma revolução. Observe que a revolução na física é um movimento que completa todo um período, para ficar com o exemplo do círculo, mas que acaba chegando ao mesmo ponto de chegada. Os historiadores ao se apropriarem do conceito de revolução não a imaginam necessariamente a esse movimento de um ponteiro de um relógio de movimentação em 360º e volta ao mesmo ponto. Do que se trata efetivamente a Revolução para as análises históricas são de mudanças estruturais de grande vulto, que põem em movimento das classes sociais e que portanto envolvem mobilização de massas, e não raro se expressam em guerras civis. 

Ora se observarmos o que aconteceu no Brasil e seu pré 1964 nada disso estava colocado. De fato havia uma divisão no país que remetia ao impasse criado já desde a renúncia de Jânio e a insatisfação com a posse de Jango que teve que ser arranjada dentro do esquema parlamentarista, só depois readaptada ao presidencialismo. João Goulart insistiu em suas reformas de base mas pouco se lembra que estas Reformas estavam muito longe sequer de resolver as tarefas que uma revolução burguesa democrática digna. Sua maior ambição e que mais de fato assustou a nossa tacanha classe dominante golpista foi o aumento do salário mínimo. Sua reforma agrária foi bastante tímida, reservada às terras que faziam margem às rodovias. Duas grandes manifestações, uma no Rio em defesa das Reformas com 100 mil, e outra em São Paulo, pela Família e em Defesa da Propriedade e contra o Comunismo, mediram-se forças. E o golpe veio por meio de uma série de movimentações que revelaram como a maior parte do dispositivo militar capitulara aos golpistas: tropas de Mourão Filho saíram de Juiz de Fora-MG em direção ao Rio de Janeiro-RJ, e alguns incidentes pontuais no dia 1º de Abril como a invasão da sede da UNE marcaram aquilo que foi de fato um Golpe de Estado. 

“Em março de 1964, é derrubada a ordem constitucional até então vigente em nosso país. Um golpe militar, não uma revolução, como era intitulada pelo grupo golpista, destitui o presidente da República democraticamente eleito, João Goulart e, junto com ele, o regime político fundado em 1946.

Correto afirmar que este episódio significou, como declara Toledo (2004), um golpe contra a democracia brasileira que se voltava pela ampliação da cidadania política dos trabalhadores rurais e urbanos, um movimento contra as reformas sociais e econômicas, um golpe contra o frutífero debate teórico-ideológico e cultural que estava em andamento no Brasil”. (PG 177)

Acerca do livro, além das resenhas dos advogados ativistas, há uma parte de anexos, com depoimento de perseguidos torturados, fazendo assim uma complementação entre o advogado e agora seu respectiva assistido e um artigo específico sobre aspectos jurídicos do período ditatorial. Mas pelo volume de informações sobre o período registrado, este livro interessa certamente a um publico muito mais amplo que o de operadores de direito. E como colocamos, em tempos de revisionismo histórico e de Lei Anti Aterrorismo, e de lutas concretas como a de abertura dos arquivos da Didatura Militar, este livro é um verdadeiro instrumento de conscientização.     

domingo, 31 de janeiro de 2016

“Presença de Althusser” – Márcio Bilharino Naves (Org.)

“Presença de Althusser” – Márcio Bilharino Naves (Org.)






Resenha Livro – 209 - “Presença de Althusser” – Márcio Bilharino Naves (Org.) – Coleção Ideias 9 – Instituto de Filosofia de Ciências Humanas – Unicamp 

“O grande interesse político e teórico da Revolução Cultural é o de constituir uma solene evocação da concepção marxista da luta de classes e da revolução. A questão da revolução socialista não é resolvida com a tomada do poder e a socialização dos meios de produção. A luta de classes continua sob o socialismo, em um mundo submetido às ameaças do imperialismo. É então, antes de mais nada, na ideologia que a luta de classes decide a sorte do socialismo: progresso ou regressão, via revolucionária ou via capitalista”. “Sobre a Revolução Cultural”. Louis Althusser. Cahiers Marxistes-leninistes nº14 1966 Trad. Márcio Bilharino Naves. 

Resenha dedicada ao camarada Vinícius Gonzaga que gentilmente me presenteou com um exemplar deste livro. 

Quem tem medo de Louis Althusser? Esta cogitação certamente tem uma aplicação direta dentre a maior parte dos intelectuais que se reivindicam marxistas aqui no Brasil. Como se sabe, dentro desta tradição, são muitas as distintas leituras da obra de Marx que irão resultar em respectivas vertentes com suas particularidades. Pois Louis Althusser, filósofo marxista francês, abre toda uma nova e original interpretação do pensamento de Marx que se choca com a hermenêutica dominante dentre os marxistas brasileiros. Grosso modo, o ponto central da polêmica está  na interpretação dada às obras do jovem Marx. 

Desde pensadores influenciados pelo pensamento de G. Lukács, particularmente o chamado grupo dos  intelectuais do Rio de Janeiro como Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, e em oposição à Althusser, esta linha interpretativa buscará sempre encontrar uma solução de continuidade entre as obras de juventude e de maturidade de Marx. Lembramos que em sua juventude, como jovem hegeliano, as principais cogitações de Marx perpassam problemas da filosofia, sendo caro a este grupo de filósofos temas como a Alienação, por exemplo. Ao encontrar esta solução de continuidade, esta proposta de interpretação acaba de certa maneira coadunando com um Marx humanista, o que irá ter implicações políticas importantes, que não desenvolveremos mas apenas apontaremos, que é a da defesa da tese da democracia como valor universal em “Coutinho” e uma epistemologia refratária a uma orientação científica. Em sentido oposto, Althusser entende haver um corte epistemológico dentre as obras de juventude e de maturidade – poderíamos situar “ A Ideologia Alemã”  (1846) com seus conceitos originais de materialismo histórico, ainda que num momento ainda embrionário, como fase de transição decisiva, de salto para a obra de maturidade, a que possui os elementos constitutivos de Marx em sua plenitude que é o “Capital”.

“Presença de Althusser” é a reunião dos seguintes artigos referentes ao pensamento do teórico marxista francês. “O itinerário de Althusser” de Nicole Thévenin que faz um rápido inventário das mudanças ao longo do tempo do próprio pensamento do Althusseriano dentre os anos 1960-70; “A teoria da ideologia de Althusser” de Francisco Sampedro, lembrando como Althusser avança e aprofunda o conceito de ideologia, dentre outros, se utilizando mesmo das contribuições de Freud e Lacan; “Ideologia jurídica e ideologia burguesa – ideologia e práticas artísticas” de Nicole Thevenin, que remete à importância da ideia de Sujeito de Direito para conformação da sociedade capitalista; “O que significa “ciência da história” de Maria Turchetto; “Althusser, Spinoza e a temporalidade plural” de Vitorino Morfino em que se discorre sobre algumas ideias de filosofia da história e suas interfaces frente ao pensamento de Spinoza; “Sobre Gramsci e Althusser como críticos de Maquiavel” – Danilo Enrico – e aqui o autor busca identificar pontos em comum e as diferenças nas análises dos dois autores; “Althusser e a revolução cultural chinesa” de Márcio Bilharino Naves, uma breve introdução ao texto de Althusser sobre a RC e  “Sobre a Revolução Cultural” – Louis Althusser – texto escrito em 1966 francamente apoiando a RC como uma necessidade interna da revolução chinesa no sentido de não fazê-la regredir ao capitalismo. 

É compreensível que intelectuais não concordem com a interpretação original das obras de Marx feita por Althusser. Mas como explicar o verdadeiro silenciamento a que tem sido exposta a obra de Althusser, ao menos aqui no Brasil? Não temos notícias de publicação de algumas das obras fundamentais deste pensador em língua portuguesa e a exposição de suas ideias apenas dá-se através do árduo trabalho militante e desinteressado de alguns intelectuais. E as críticas que se faz a Althusser quando não são sobre suas teses, costumam ser no mínimo superficiais. Fala-se por exemplo que suas obras são herméticas, seu texto é inacessível e é portanto meramente academicista. Ora por estes critérios, poderíamos selecionar passagens do Capital ou Grundrisse e fazer o mesmo tipo de ponderação e ninguém deixará de lembrar que Marx fundou a 1ª internacional e jamais foi um academicista. Outros falam da tragédia pessoal envolvendo Althusser e sua companheira. Trata-se aqui de um critério moral que escapa à análise da obra. Mais uma vez sabemos por meio de correspondências que Marx teve lapsos de racismo diante do seu genro Paul L., cubano e mulato, e nem por isso cogitamos desconsiderar as suas teses. 

Althusser tem certamente muito a colaborar e a acrescentar ao marxismo. Podemos partir com o conceito de ideologia. Até então ideologia significava algo bastante simples, além de um signo negativo. A ideologia é o conjunto das ideias e interesses da classe dominante que surgem junto às demais classes como se fossem de seu interesse, ou como se fosse de interesse universal. Assim, na sociedade capitalista, quando se fala em “Liberdade” comumente está se falando em um conceito ideológico, ou seja, na liberdade da burguesia contratar força de trabalho e extrair mais valia e na liberdade do trabalhador ora morrer de fome ora vender sua força de trabalho.

Ora para Althusser a ideologia passa a assumir um sentido muito mais complexo. Em primeiro lugar o filósofo se ocupar das fontes da ideologia, ele se pergunta de onde elas vêm, qual a sua origem e daí cria um conceito fundamental, os Aparelhos Ideológicos do Estado. 

Ademais, Althusser observa mesmo efeitos mais sutis da ideologia.

“Se toda função social da ideologia se resumisse no cinismo de um mito (como as “belas mentiras” de Platão ou dos técnicos da publicidade moderna) que a classe dominante fabricaria e manipularia de fora para enganar aqueles que ela explora, a ideologia desapareceria com as classes. Mas como vimos que, mesmo no caso de uma sociedade de classes a ideologia é ativa sobre a própria classe dominante e contribui para modelá-la, para modificar as suas atitudes para adaptá-las às suas condições de existência”. Louis Althusser, A favor de Marx, Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 208.

Como colocamos no início desta resenha, o medo de Althusser certamente envolve mais do que discordâncias pontuais dentro da análise do pensamento de Marx. São motivos que envolvem questões de fundo, o próprio método marxista, aqui devendo ser encarado como uma ciência. Extrair esta verdade com todas as implicações é algo que a maior parte das organizações de esquerda que se colocam como marxistas provavelmente não poderão ou não terão interesse em fazê-lo. Mas sempre é preciso dizê-lo, e com ênfase nestes tempos de total confusão teórico-metodológica: marxismo-leninismo é uma ciência, dentre outros, uma ciência da história.              

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

“O Duelo” – A. P. Tchekhov

“O Duelo” – A. P. Tchekhov




Resenha Livro – 208- “O Duelo” – A. P. Tchekhov – Ed. 34 – Trad. Marina Tenório
O escritor russo A. Tchekhov desenvolveu e mesmo especializou-se no gênero dos contos, fato que diria respeito a questões específicas de sua trajetória de vida. Nascido na cidade portuária de Taganrog no sul da Rússia em 1860, o escritor é filho de um humilde comerciante local e de avós servos. Diferentemente, portanto, de escritores advindos da aristocracia russa do XIX, Tchekhov tem esta característica de origem social baixa: em 1879 ingressa na Faculdade de Medicina de Moscou e para sobreviver, sustentar a família e cobrir as despesas estudantis, passa a publicar seus primeiros contos em periódicos de jornais moscovitas. Aqui seria o seu ponto de partida como contista. 

Mesmo após a formatura de Tchekhov como médico, sua fama como escritor já estava se consolidando e em 1886 passa a escrever para a revista Nóvoie Vrênia. Se por uma questão contingencial os contos seriam o gênero literário decididamente mais desenvolvidos na obra do escritor, e aqui destacamos os contos mais famosos, “A dama do cachorrinho” (1899) e “O assassinato” (1895), Tchekhov também desenvolveria trabalhos no gênero do teatro “Tio Vânia” (1897);  “Três irmãs” (1901); e “O Jardim das cerejeiras” (1904), além das novelas.

A título de esclarecimento, podemos situar a novela como um meio termo entre o conto e o romance. Não só obviamente no que se refere ao número de páginas, mas à extensão e profundidade das histórias, aos desmembramentos da narrativa, eventualmente mesmo até ao número das personagens. “O Duelo” é uma novela publicada por Tchekhov no ano de 1891. 

Na sociologia, um recurso interpretativo comumente utilizado é o do “tipo ideal”. Sua origem remete ao sociólogo alemão Max Webber e, na persecução de modelos comuns para finalidades interpretativas, realça-se os aspectos do fenômeno analisado quase como uma caricatura que evidencia por ex. um grande nariz ou qualquer outro traço em evidência. O “tipo ideal” e a caricatura possuem este caráter de esclarecimento ao atender aos aspectos mais evidentes e que saltam aos olhos do fenômeno – e, por suposto, a finalidade do tipo ideal é a de servir como chave explicativa do exame sociológico. Algo parecido pode ser dito no âmbito literatura.  É frequente na cultura de cada povo alguns personagens bastante populares que são reiterados nos distintos gêneros, da literatura à música, etc. No Brasil, para citarmos apenas um e o mais famoso, temos o malandro, que desponta das músicas de Chico Buarque de Holanda até Macunaíma de Mário de Andrade. 

Na Cultura Russa desenvolveu-se no século XIX o equivalente a também um personagem popular, a figura do homem supérfluo, personagem retratado por Turguêniev em Rúdin (ver resenha aqui: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2015/01/rudin-ivan-turgueniev.html) e outros. 
A origem do homem supérfluo é a modernização da Rússia desde meados do séc. XIX tendo como marco essencial o fim da servidão. A influência de ideias liberais, de filósofos que se contrapõem ao peso da tradição secular da religião ortodoxa, as mudanças mesmas no estilo de vida nas capitais engendram uma intelligentsia que teria feito como que a tradição, segundo alguns críticos, teria sido mutilada pela civilização. 

Segundo o posfácio de Marina Tenório:

“Voltemos, porém, ao séc. XIX. Nesse período, começa a ganhar força um novo grupo social, os raznotchíntsi. Saídos de vários estamentos (clero, camponeses, mercadores, soldados, funcionários públicos) e agora com formação superior, não voltavam à própria classe, mas passavam a exercer sobretudo profissões liberais. Essa camada foi o grande celeiro daquilo que depois veio a ser conhecido como intelligentsia russa. Nos meados do século, é ela que começa a ganhar posições de destaque e a ditar tendências no pensamento social, filosófico, artístico, fazendo a aristocracia perder sua posição exclusiva de elite cultural”  

Laiévski representa o homem supérfluo e é o protagonista da história “O Duelo”. Foge com Nadiéjda  Fiódorovna de São Petersburgo: a mulher era casada, mas ambos se amam e decidem se refugiar numa pequena província no Cáucaso, banhada pelo Mar Negro. Antes desta aventura, planejada de modo que aos dois parecia os banhos de mar, o sol, a vida em harmonia com a natureza e longe da cidade, a  Laiéviski não parecia que haveria os percalços. Não ponderou os pequenos e graves inconvenientes. Quando chegaram ao Cáucaso tiveram que enfrentar o sol escaldante, mosquitos, a mesma refeição que enjoara o protagonista, o tédio mortal e o mal olhar e julgamento de todos os moradores que em pouco tempo sabiam que aquele casal vivia numa situação inadmissível aos olhos de deus, tendo ora a mulher seduzido um homem que poderia perfeitamente ter constituído uma família e tendo o homem seduzido uma mulher casada e destruído uma família. 

Laiévski vai se desesperando com sua situação e deseja romper, mas não tem como deixar Nadiéjda para trás, diante de inúmeros credores, falta de dinheiro e principalmente pena da mulher. Sua conduta é vacilante, na verdade. Von Koren, um zoólogo que odeia o protagonista, reforça sua falta de indulgência consigo próprio. Diz Laiéviski:

“Sou um homem fútil, medíocre, degradado! O ar que respiro, esse vinho, o amor, em uma palavra, a vida, eu a comprei até agora com mentiras, ócio e covardia. Até agora fiquei enganando os outros e a mim mesmo, sofria com isso e os meus sofrimentos eram baratos e vulgares. Eu me curvo timidamente diante do ódio de Von Koren porque de tempos em tempos eu mesmo me odeio e me desprezo”.

Do outro lado, Nadiéjda deixa-se seduzir por dois outros homens distintos, em momentos diferentes, completando a total desmoralização do casal, particularmente diante círculo social do pequeno distrito local.  Seu desespero também a leva a pensar em fugir de modo que cada um do par pensa em fugir do outro, sem revelar seus segredos: o fim do amor que se revelara desde o equívoco da empreitada. Toda esta situação parece sem saída quando, numa discussão com Von Koren, Laiévski é desafiado a um Duelo. 

O Duelo é uma prática que remete aos tempos medievais, não só na Rússia. Está relacionado ao princípio da honra, que foi ferida: o propósito do duelo é restaurá-la. Não avançaremos aqui, desde que não é a intenção desde resenhador revelar os últimos detalhes do livro e incentivar a leitura da novela. 

De outra forma, A. Tchekhov é um escritor muito longe de ser despolitizado, mas que nem por isso se situa, num plano de interpretação de suas intencionalidades políticas, dentro de um campo facilmente identificável. Parece estar mais identificado com questões existenciais e profundas, o que faz com que sua obra, escrita em fins do séc. XIX, ainda nos seja muito comoventes.  

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

“Fuga da História?” – Domenico Losurdo

“Fuga da História?” – Domenico Losurdo



Resenha Livro – 207 “Fuga da História? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas hoje” – Domenico Losurdo – Editora Revan
Domenico Losurdo é historiador marxista italiano com uma vasta produção teórica. É um autor particularmente importante para a esquerda em função de sua capacidade de fazer uma crítica radical, que muitas vezes envolve também posicionamentos bastante recorrentes dentro da esquerda. É professor de filosofia da história da Universidade de Urbino e tem uma pesquisa específica sobre a questão do totalitarismo, sobre as ideias de Gramsci e uma contribuição bastante original sobre a história da URSS, principalmente a partir de sua biografia de Stálin, um título que coloca a discussão sobre o stalinismo em termos realistas e objetivos. 

Lênin morre em 1924 quando os camponeses russos ainda cultivam a terra com instrumentos feitos de madeira, da mesma forma como o faziam durante o feudalismo – o país ainda está impactado pelos efeitos da guerra civil, sob a mira de diversas nações imperialistas. Stálin assume a direção do partidona década de 1920, organiza e prepara o povo russo para a vitoriosa guerra patriótica e deixa o poder na década de 1950 sendo URSS a segunda potência mundial. Um revolução em níveis jamais vistos de desenvolvimento de forças produtivas foram feitas ao ponto de assombrarem os mais céticos críticos do ocidente. O mesmo pode-se falar sobre aumento do nível de escolaridade de uma gama gigantesca da população. São fatos históricos comumente ocultados por discursos ideológicos que tem vasta influência também na esquerda. 

“Fuga da História” retoma este ofício do historiador que acima de tudo é um crítico radical – e que, no caso de Losurdo, se soma a uma saborosa narrativa cheia de ironias, o que torna a leitura ainda mais interessante. Outrossim, “Fuga da História” tem um outro significado, a “praga da autofobia”. Comumente, grupos étnicos, religiosos ou mesmo políticos quando sofrem uma perseguição diuturna podem capitular ao ponto de adotar como seu o ponto de vista de seus opressores. Fazem-no até o ponto de desprezar e odiar a si próprios. Este é o sentido geral deste apanhado de textos sobre o significado da Revolução Russa e da Revolução Chinesa: observa-se como a praga da autofobia acaba sendo assimilada por aqueles que se proclamam marxistas, mas renegam a experiência de outubro e falam de uma “Volta a Marx”.  Diz Losurdo:

“Eis que emerge a palavra de ordem “volta a Marx”. Seria fácil demonstrar que Marx é o filósofo mais decisivamente crítico da filosofia dos retornos. Em sua época, desprezou aqueles que, em polêmica com Hegel, queriam voltar a Kant ou, definitivamente, a Aristóteles! Volta a entrar, no abc do materialismo histórico, a tese segundo a qual a teoria se desenvolve a partir da história, da materialidade dos processos históricos. O grande pensador revolucionário não hesitou em reconhecer o débito teórico contraído por ele em relação à breve experiência da Comuna de Paris: atualmente, ao contrário, décadas e décadas de um período histórico particularmente intenso, da Revolução de Outubro à chinesa, cubana, etc., devem ser declaradas destituídas de significado e de relevância no que diz respeito à “autêntica” mensagem de salvação já consignada, de uma vez por todas, em textos sagrados, que teriam apenas de ser redescobertos e reanalisados religiosamente”. 

Bom ressaltar que os ensaios foram redigidos em meados dos anos 1990, momento de ofensiva do neoliberalismo e seu discurso de “fim do socialismo real” ou mesmo “fim da história” – nesta situação de bastante confusão que a “autofobia” tem o condão de atingir as fileiras comunistas. Para Losurdo a autocrítica é o contraponto necessário e urgente da autofobia. A autocrítica é o acerto de contas com o passado, enquanto justamente a autofobia é a “Fuga da História”. 

E nesse trabalho necessário de esclarecimento e autocrítica, que talvez somos levados a observar que onde há mais confusão nas fileiras da esquerda é nas análises da China. Podemos sondar as organizações e forças políticas de esquerda aqui no Brasil, dentre marxista-leninistas, trotskystas ou anarquistas, e haverão muitos que dirão que na República Popular Chinesa está em curso ou se concretizou restauração capitalista. Sobre este tema se posiciona Losurdo:

“Sob essa luz, precipitados e superficiais tornam-se os discursos que falam, com um juízo de valor positivo ou negativo, de “restauração do capitalismo”. Convém, em vez disso, considerar uma preciosa indicação metodológica de Gramsci. Ele formulou a tese que a revolução burguesa na França abrange um período que vai de 1789 a 1871, isto é, do colapso do antigo regime até a III República. Para que uma revolução possa considerar-se concluída, não é suficiente uma nova classe conquistar ou consolidar o poder; é necessário também que ela encontre uma forma política relativamente estável de gestão do poder. Entre 1789 e 1871 sucedem-se de modo tumultuado as mais variadas formas políticas (a monarquia constitucional, experiências republicanas de breve duração, a ditadura militar, o Império, o regime bonapartista etc.) até a burguesia francesa encontrar na república parlamentar a forma política normal e estável de exercício de seu poder e de sua hegemonia. No que diz respeito à China, a novidade surgida da revolução está ainda à procura não só da forma política, mas também de conteúdos econômico-sociais em que deveria encontrar expressão estável. Estamos em presença de um processo de longa duração e em pleno desenvolvimento, o qual já conseguiu resultados extraordinários, mas seus ulteriores desenvolvimentos e seu êxito são totalmente imprevisíveis”. 

Talvez mais grave e simbólico seja o caso do Tibet. Losurdo lembra que Mao Tse Tung já bem considerava o Tibet como “parte integrante do território nacional chinês”. E mais. Se no passado colonial a memória chinesa remete a espoliação, ao racismo e à guerra, sob o regime comunista desde 1949, uma série de reformas fizeram com que o povo do Tibet tivesse acesso a direitos humanos nunca antes conhecidos e um sensível aumento da expectativa de vida. O mais provável é que um referendum no Tibet teria como maioria pela continuidade da província à República Popular Chinesa, em que pese toda a propaganda imperialista e o papel desempenhado por Dalai Lama, que, sob um pretenso e falso discurso de defesa dos direitos humanos, aparenta convencer uma certa “esquerda democrática”. E aqui os riscos são imensos porque o imperialismo verdadeiramente opera sob este falso e hipócrita discurso dos “direitos humanos” e de uma “universalidade democrática”: e aqui o caso da Nicarágua e sua revolução sandinista é exemplar.

“(...) deveria ainda ser fresca a recordação da tragédia que se abateu sobre a Nicarágua sandinista. A seu tempo, os EUA submeteram-na ao bloqueio econômico e militar, minaram seus portos, puseram-na sob uma guerra não declarada, mas sanguinária, suja e contrária ao direito internacional. Diante de tudo isso, o governo sandinista viu-se constrangido a tomar medidas tímidas de defesa contra agressão externa e a reação interna. E Washington exibia-se como defensor dos direitos democráticos ultrajados pelo “totalitarismo” sandinista. É como imaginar um carrasco que, depois de haver procedido à execução, põe-se a gritar escandalizado pela cor pálida e cadavérica da sua vítima. Uma atitude grotesca: todavia não faltaram almas generosas para se associarem aos brados de escândalo do carrasco e à condenação das medidas “liberticidas” de Ortega, cujo espaço de manobra diante da agressão foi progressivamente reduzido e anulado”.

A conclusão do processo histórico foi a derrota eleitoral dos sandinistas e a vitória do imperialismo. Conclui Losurdo:

“Só os lacaios e os imbecis podem celebrar essa infâmia e essa tragédia como triunfo da democracia. Exigir a introdução em Cuba do pluripartidarismo ocidental significa, nas atuais condições, trabalhar para uma réplica do triunfo do carrasco imperialista”. 

E aqui no Brasil bem sabemos que o discurso imperialista da “democracia” em contraponto ao “totalitarismo comunista” tem grande inserção, especialmente dentre trotskystas que abertamente defendem a restauração capitalista de Cuba. 

A editora Revan tem feito uma ótima contribuição para esquerda ao traduzir e introduzir ao público brasileiro este original historiador marxista. A lição principal deste livro de ensaios é esta: esclarecer o processo da fuga da história decorrente da”praga da autofobia” e fazer o contraponto por meio dos pressupostos teórico-metodológicos do marxismo e do materialismo histórico em particular para realizar a autocrítica.         

domingo, 17 de janeiro de 2016

“A Contestação Necessária” – Florestan Fernandes

“A Contestação Necessária” – Florestan Fernandes 



Resenha Livro – 206 “A Contestação Necessária: Retratos intelectuais de incorformados e revolucionários” – Florestan Fernandes – Ed. Expressão Popular

Esta compilação de artigos e retratos de intelectuais e lutadores sociais foi inicialmente reunida pelo professor Florestan Fernandes no ano de 1995 sob a denominação de “Em Busca do Socialismo”. O trabalho seria recusado pela Editora Cortez e publicado postumamente sob a denominação “A Contestação Necessária” pelas editoras Ática e Xamã. Não se trata aqui se uma seleção de pesquisadores que influenciariam a produção teórica de Florestan Fernandes: desde suas pesquisas sobre os Tubinambás, à inserção dos negros na sociedade de classes, bem como aos limites históricos da revolução burguesa no Brasil, todo este arcabouço teórico estão bem delimitados em suas pesquisas, conferências e aulas. Também não se trata de um trabalho de história das ideias: os retratos de intelectuais inconformados e revolucionários envolve um recorte diferenciado, tendo como critério personagens que desde uma atuação no Brasil ou na América Latina, intervieram no sentido da revolução ou da reforma radical no sentido do socialismo. 

Aliás, aqui é importante destacar um critério político importante para Florestan Fernandes e que, de resto, envolve toda sua estratégia política. Em diversas passagens de seus artigos o professor reivindica a passagem revolucionária, mas observa a importância de uma unidade junto aos reformistas ou mesmo aos “burgueses radicais”, dedicando aqui todo um capítulo a Fernando de Azevedo, um defensor de Educação Pública, professor e fundador da USP, sem qualquer perspectiva de ruptura institucional. Esta aliança entre reforma e revolução fica evidente em diversas passagens, mas particularmente neste capítulo: 

“Façamos a revolução na escola antes que o povo a faça nas ruas’ . Está num livro dele (de Fernando de Azevedo). “Feita a revolução nas escolas, o povo a fará nas ruas, embora essa vinculação não seja necessária. Na China, em Cuba, na Rússia, sem passar pela escola, o povo fez a revolução nas ruas. Mas em um país como o Brasil, é necessário criar um mínimo de espírito crítico generalizado, cidadania universal e desejo coletivo de mudança radical para se ter a utopia de construir uma sociedade nova que poderá terminar no socialismo reformista ou no socialismo revolucionário. Eu prefiro a última alternativa. Fernando de Azevedo optaria pela primeira. Ambas são alternativas que nos põe no fluxo da história (...)”. 

Esta mesma combinação entre reformas radicais diante de uma sociedade em que a burguesia débil e atrasada não concretizou qualquer revolução e em seu atraso histórico se aliou ao capitalismo financeiro e ao imperialismo irá explicar a opção, até os anos de 1994-5, de Florestan Fernandes, tanto pelo PT quando por Lula. Aliás, Luís Inácio abre a coletânea de artigos, menos pelos seus méritos individuais  e mais como organizador coletivo e figura simbólica que representa. E, reforçamos, a opção estratégica de Florestan, dentro da qual reformistas e revolucionários caminham juntos em um mesmo partido envolve uma interpretação histórica que envolve particularmente a debilidade da burguesia brasileira e um programa que resolva os impasses de reformas inconclusas. 

No prefácio da edição da Expressão Popular, Roberto Leher esclarece:

“Na perspectiva florestaniana é preciso buscar a chave interpretativa da fragilidade do projeto burguês (fragilidade em termos de um projeto autopelido de nação) patenteado pela cessão de funções cruciais para os militares, na correlação de forças das lutas de classes. Em sua interpretação, os subalternos não lograram força para interpelar de modo imperativo os dominantes que, por isso, puderam seguir com sua “revolução sem revolução” sem maiores sobre saltos. “Os de baixo não davam um basta, porque temiam agravar seus males. Os de cima comandavam sem receber dos de baixo uma cobrança definitiva”. (pg. 58). 

E 20 anos após a morte de Florestan, observamos o encerramento catastrófico e desmoralizante do PT que envolve não só seus dirigentes reformistas, mas toda a esquerda. É toda a esquerda, incluindo seu setor revolucionário, que se encontra fragilizada e desmoralizada frente aos trabalhadores que, diante da lama da corrupção e da consecução de políticas de ajustes neoliberais, desconfiam (e diríamos com razão) dos socialistas. 

Certamente Florestan Fernandes preparou esta coletânea de textos num contexto difícil da luta de classes em nível mundial: com o fim da URSS e a ofensiva neoliberal, diversos aparatos ideológicos estavam inteiramente mobilizados para decretar o fim do socialismo, o fim do marxismo, o fim da constituição da classe trabalhadora em si e para si – e poderíamos especular a razão pela qual toda uma mobilização ideológica para convencer a população mundial sobre algo que está morto e, portanto, inofensivo. Agora, em 2016, no Brasil, pobre de Florestan Fernandes se vivo fosse vendo sua estratégia democrático popular como justificativa para os dirigentes do PT levar a esquerda como um todo para a completa desmoralização: e aqui basta como exemplo sintomático, o ataque de hienas e coxinhas num aeroporto de fortaleza ao companheiro do MST João Pedro Stédile. 

Voltando ao livro, alguns apontamentos finais. Em comemoração aos 20 anos da morte de Florestan Fernandes, a Editora Expressão Popular publica este livro até então pouco comentado. Dentre as figuras resenhadas citamos especialmente José Martí, cubano e herói da independência colonial. Uma justificava importante aqui é que a esquerda brasileira surge um pouco deslocada da tradição latino-americana de luta por emancipação – a mesma que envolve a revolução cubana, nicaraguense ou as jornadas bolivarianas na Venezuela. Martí não era propriamente um socialista, mas um nacionalista revolucionário do séc. XIX. Mariátegui por outro lado foi um expoente do marxismo latino americano e que, de maneira original, soube traduzir as premissas teorias à realidade peruana. 

Enquanto as particularidades do sudeste asiático e china recomendavam uma aliança entre pequeno-burguesia e camponeses (kuomitang e PC chinês), por razões que remontam ao velho domínio senhorial e patriarcal, tal aliança seria inviável no Peru, que conta ainda com forte presença do componente indígena. De certa maneira pode-se traçar um paralelo entre Mariátegui e Caio Prado Júnior (outro rebelde resenhado por Florestan). Ambos trazem uma contribuição teórica original ao buscar interpretar a fundo a realidade nacional e suas especificidades por meio do marxismo e não servir-se de um “modelo” pré-estabelecido de interpretação eurocêntrico para suas realidades respectivas. 

Dentre os diversos rebeldes, inconformados e revolucionários que constam no livro, certamente Florestan Fernandes poderia ser um deles. Para além de sua vasta produção como sociólogo, foi um intelectual orgânico até o fim da vida. Defensor militante da educação pública, foi deputado constituinte pelo PT e sempre teve uma vida plenamente engajada, colocando-se como socialista. Veio de origem muito humilde e na velhice, quando doente, foi oferecido a ele hospitais de qualidade fora do país para se tratar. Coerente com suas ideias socialistas – como a de defensor da saúde pública – negou todos estes convites e continuou sendo tratado em hospitais públicos no Brasil. De acordo com Florestan Fernandes Júnior, em documentário exibido pela TV Câmara, caso tivesse optado pelos convites de tratamento, certamente teria maior sobrevida. Podemos especular qual político, mesmo dentro da  esquerda, teria o tamanho desta coerência.