sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

“Os Advogados e a Ditadura de 1964” – Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins (Org.) – Ed. Puc Rio Editora Vozes

“Os Advogados e a Ditadura de 1964” – Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins (Org.) – Ed. Puc Rio Editora Vozes





Resenha Livro - 210 - “Os Advogados e a Ditadura de 1964: A defesa dos perseguidos políticos no Brasil” – Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins (Org.) – Ed. Puc Rio Editora Vozes

Resenha dedicada à Sheila Évelin que gentilmente presenteou-me com um exemplar desta edição. 


O ofício do historiador pode não ter o reconhecimento social devido, mas certamente tem uma enorme relevância. É função do historiador investigar o passado para construir a narrativa que deverá consolidar uma memória da sociedade, a memória social. Podemos sondar a importância da memória social fazendo algumas comparações com a memória individual, a memória de nossas vidas pessoais. Precisamos de uma memória para com ela criarmos uma identidade, buscar referências, desde que somos aquilo que fazemos, somos o resultado de nossas experiências – consoante Marx, não é uma essência que determina o ser social, mas o contrário, é o ser social que determina a sua essência. Para além da identidade e suas referências pessoais, a memória tem um elo particular com a aprendizagem. Trata-se aqui daquela fórmula bastante conhecida de que os erros cometidos estão aí para servirem como aprendizagem. E aqui retomamos o conceito de memória social e sua relevância dentro do ofício do historiador. É necessário prestigiar o trabalho daqueles que constroem a memória social principalmente acerca de períodos da história onde há grandes evidências e um consenso de que o conjunto da sociedade esteve em erro – consolidar e ativar uma memória para que períodos tenebrosos da história não se repitam. 

Ainda que muito já tenha sido escrito, debatido e filmado acerca do período da ditadura militar no Brasil, ainda há muito o que avançar no que se refere a consolidação de uma memória que se certifique de que as torturas, as prisões arbitrárias em que os acusados eram tidos como incomunicáveis, a supressão do habeas corpus, dentre outros, não se repitam. Uma das pendências daquele período é a abertura completa de todos os arquivos da ditadura militar e há hoje famílias que dependem de informações para descobrir o paradeiro de entes, nem que seja para enterrar seus mortos dignamente. E como prova de que este passado não está nem um  longe de “repetir-se como farsa”, está em tramitação no Congresso Nacional uma “Lei Anti Terrorismo” que em nada fica devendo aos Atos Institucionais ultra autoritários do período em exame. Esta lei anti terror não define o que é terrorismo, ou muito mal o define, se servindo da ideia de terrorismo que absolutamente nunca teve qualquer atuação objetiva no Brasil, como de grupos como ISIS., mas que, com aplicação no Brasil, teria clara aplicação junto a movimentos sociais e grevistas. Um duro golpe ao movimento dos trabalhadores e populares, com um discurso ideológico muito semelhante ao conceito de “Segurança Nacional” dos militares. 

Diante de todos estes elementos, toda iniciativa que se volta para o período entre abril de 1964  e1985 com o objetivo de consolidar a memória social e trazer relatos sobre aquele tempo, esclarecer e disseminar o que ocorreu no período militar brasileiro, deve ser saudado. 

“Os Advogados e a Ditadura de 1964” corresponde uma série de artigos redigidos por historiadores, jornalistas e pesquisadores acerca de um grupo, na verdade um pequeno grupo de advogados que na prática exerceram um papel de enorme relevância na defesa jurídica de diversos acusados e presos durante a ditadura. Em geral estes advogados não tinham uma ideologia política marxista ou comunista como muitos dos réus, mas eram movidos por sentimentos humanistas, ora por ideais democráticos. E está fora de dúvidas  que salvaram vidas e evitaram torturas, importando ressaltar que, por suas iniciativas e combates jurídicos, sofreram eles próprios, prisões e sequestros. Com a exceção de um Sobral Pinto e Dalmo Dallari, a grande parte destes advogados também deve ser desconhecida do grande público como Heleno Fragoso, um grande jurista com grandes conhecimentos técnicos e que chegou a ser sequestrado pelos militares como forma de intimidação, e Eny Moreira, uma ativista jurídica incansável que começou como estagiária do escritório de Sobral Pinto no Rio de Janeiro e terminou como uma das idealizadoras do projeto “Brasil Nunca Mais”.

O “Projeto Brasil Nunca Mais” se insere também dentro da importância da preservação da memória histórica. Como estagiária, Eny escutava de Sobral Pinto relatos de que todos os processos de perseguidos políticos da ditadura do Estado Novo varguista foram incinerados, inviabilizando o trabalho de pesquisa acerca das dimensões da repressão, apuração de responsabilidades civis do estado, etc. Diante disso foi sendo consolidado o projeto “Brasil Nunca Mais” que resultou num livro de igual nome, uma obra que serviu como ponto de partida para constatação das violações de direitos humanos na ditadura.
Revisionismo histórico pela direita

Diante das lamentáveis cenas de hienas e coxinhas se manifestando nas ruas de São Paulo no ano de 2015, não só contra o governo do PT, mas contra ideias de esquerda e democracia, contra movimentos sociais e alguns pela intervenção militar, necessário observar que o ponto de partida para a defesa de militares no poder por esta gente é o esquecimento histórico ou revisionismo que irá mesmo subverter os fatos falando numa “revolução” de 1964 para a partir daí supor uma “paridade” de armas entre um aparato ideológico militar estatal com o apoio incondicional dos estados unidos contra minúsculos grupos divididos em pequenas frações pela luta armada, quando não indivíduos ou grupos, intelectuais ou movimentos, sem qualquer engajamento com luta violenta contra a ordem (como o PCB) e ainda assim presos, torturados e mortos, como os casos de Vladimir Herzog e do operário Manoel Filho. 

O conceito de “revolução” não é dos historiadores nem dos cientistas sociais, mas foi literalmente importado da física como chave explicativa para explicação de fenômenos sociais. Na física a revolução descreve o movimento de um corpo em órbita, a conclusão de um período completo considerando um ponto central de referência (que num círculo é o seu raio) é uma revolução. Observe que a revolução na física é um movimento que completa todo um período, para ficar com o exemplo do círculo, mas que acaba chegando ao mesmo ponto de chegada. Os historiadores ao se apropriarem do conceito de revolução não a imaginam necessariamente a esse movimento de um ponteiro de um relógio de movimentação em 360º e volta ao mesmo ponto. Do que se trata efetivamente a Revolução para as análises históricas são de mudanças estruturais de grande vulto, que põem em movimento das classes sociais e que portanto envolvem mobilização de massas, e não raro se expressam em guerras civis. 

Ora se observarmos o que aconteceu no Brasil e seu pré 1964 nada disso estava colocado. De fato havia uma divisão no país que remetia ao impasse criado já desde a renúncia de Jânio e a insatisfação com a posse de Jango que teve que ser arranjada dentro do esquema parlamentarista, só depois readaptada ao presidencialismo. João Goulart insistiu em suas reformas de base mas pouco se lembra que estas Reformas estavam muito longe sequer de resolver as tarefas que uma revolução burguesa democrática digna. Sua maior ambição e que mais de fato assustou a nossa tacanha classe dominante golpista foi o aumento do salário mínimo. Sua reforma agrária foi bastante tímida, reservada às terras que faziam margem às rodovias. Duas grandes manifestações, uma no Rio em defesa das Reformas com 100 mil, e outra em São Paulo, pela Família e em Defesa da Propriedade e contra o Comunismo, mediram-se forças. E o golpe veio por meio de uma série de movimentações que revelaram como a maior parte do dispositivo militar capitulara aos golpistas: tropas de Mourão Filho saíram de Juiz de Fora-MG em direção ao Rio de Janeiro-RJ, e alguns incidentes pontuais no dia 1º de Abril como a invasão da sede da UNE marcaram aquilo que foi de fato um Golpe de Estado. 

“Em março de 1964, é derrubada a ordem constitucional até então vigente em nosso país. Um golpe militar, não uma revolução, como era intitulada pelo grupo golpista, destitui o presidente da República democraticamente eleito, João Goulart e, junto com ele, o regime político fundado em 1946.

Correto afirmar que este episódio significou, como declara Toledo (2004), um golpe contra a democracia brasileira que se voltava pela ampliação da cidadania política dos trabalhadores rurais e urbanos, um movimento contra as reformas sociais e econômicas, um golpe contra o frutífero debate teórico-ideológico e cultural que estava em andamento no Brasil”. (PG 177)

Acerca do livro, além das resenhas dos advogados ativistas, há uma parte de anexos, com depoimento de perseguidos torturados, fazendo assim uma complementação entre o advogado e agora seu respectiva assistido e um artigo específico sobre aspectos jurídicos do período ditatorial. Mas pelo volume de informações sobre o período registrado, este livro interessa certamente a um publico muito mais amplo que o de operadores de direito. E como colocamos, em tempos de revisionismo histórico e de Lei Anti Aterrorismo, e de lutas concretas como a de abertura dos arquivos da Didatura Militar, este livro é um verdadeiro instrumento de conscientização.     

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