quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

“Bem Vindo ao Deserto do Real!” – Slavoj Zizec

“Bem Vindo ao Deserto do Real!” – Slavoj Zizec 



Resenha livro –  211- “Bem Vindo ao Deserto do Real” – Slavoj Zizec – Ed. Boitempo

O filósofo esloveno S. Zizec é um caso raro de pensador/intelectual com certo prestígio fora do âmbito acadêmico. Se considerarmos que o supracitado também desenvolve trabalhos na área de crítica de cinema (é especialista na obra de Hitchock) bem como nos estudos de psicanálise, pode-se aferir a razão pela qual suas teses acerca dos assim denominados “cutural studies” perpassam temas tão vastos como reflexões sobre produções de cinema, implicações da política internacional  diante da paranoia criada pelos eventos de 11 de Setembro de 2002 e as respectivas relações da política com a psicanálise lacaniana. Outro dado a ser considerado é que Slavoj Zizec é um pensador com bastante inserção na Indústria Cultural, contando, só no Brasil, com a publicação de pelo menos 7 livros, além de palestras e entrevistas por todo mundo: Zizec costuma participar especificamente de eventos caros à reflexão e debates dos destinos da esquerda mundial, como é o caso do Marxism Festival, realizado anualmente, sob organização do SWP, Socialist Workers Party (Ver uma de suas palestras aqui: https://www.youtube.com/watch?v=_GD69Cc20rw )

“Bem vindo ao Deserto do Real” reúne 5 ensaios cujo eixo temático é a reação norte-americana aos eventos de 11.09.2002  Em primeiro lugar, constata-se uma mudança radical na orientação da política internacional norte-americana se comparada aos quadros de referência da fase da Guerra Fria. A lógica de “guerra ao terror” implica ao “estado de ameaça terrorista eternamente suspenso”. Ademais, ataques preventivos são justificados, com o sem o aval de países aliados, em que pese o fato inédito do inimigo não mais circunscrever-se em territórios nacionais. Zizec a todo instante reitera a nova dimensão da guerra que se coloca, uma guerra esvaziada de sua substância, algo sintomático de nossos tempos, sem soldados se enfrentando nas trincheiras e sem baixas aparentes, guerra travada diante de computadores que são operacionalizados desde longe. 

Outro aspecto a se destacar frente ao 11 de Setembro que de forma contumaz trouxe os norteamericanos de volta à realidade – de volta ao “Real” e não mas acompanhando guerras de Ruanda ou Iugoslávia desde o conforto da Televisão – é a restauração da inocência do patriotismo americano. 

“Aqui, a ironia última é que, a fim de restaurar a inocência do patriotismo americano, o establishment conservador americano mobilizou o principal ingrediente da ideologia politicamente correta que ele oficialmente despreza: a lógica da vitimização. Apoiando-se na ideia de que a autoridade é conferida (apenas) aos que falam  da posição de vítima, ele se baseava no seguinte raciocínio implícito: “Agora nós somos as vítimas, e é isso que legitima o fato de falarmos (e agirmos) de uma posição de autoridade”. Assim, quando se ouve hoje o slogan de que terminou o sonho liberal da década de 1990, que, com os ataques ao WTC, fomos violentamente atirados ao mundo real, que acabaram os tranquilos jogos intelectuais, devemos nos lembrar de que esse chamado enfrentamento da dura realidade é ideologia em estado puro. O slogan de hoje, “Americanos, acordem!” é uma lembrança distante do grito de Hitler, “Deutschland, erwache!”, que, como Adorno escreveu há muito tempo, significava exatamente ao contrário”. 

Interessante sondar demais implicações dos usos e abusos da lógica da vitimização não só dentro do jogo da política internacional, mas nas traumáticas interações pessoais a partir das quais grupos de combate às opressões buscarão consolidar seus espaços de poder. Dentre as diversas variáveis nesta complexa equação que envolve a experiência humana, certamente há de se destacar aquilo que genericamente colocaríamos como vontade da potência. De outro modo, desde o ponto estritamente pessoal, exercer o papel de vítima é bastante diferente de ser vítima da exploração e da opressão – no primeiro caso trata-se de um oportunismo, de um cretinismo do qual não estão isento negros e especialmente feministas, Gays, Lésbicas e afins. A interpelação ideológica identificada com eficiência por Zizec é parte de sua análise que envolve a teoria crítica – com influências e citações de autores da Escola de Frankfurt como T. Adorno – a psicanálise lacaniana, a filosofia e especificamente a dialética hegeliana e uma orientação política que o coloca entre os socialistas e a democracia radical. 

Dentro destes pressupostos, qual deve ser a leitura dos marxistas diante da obra de Slavoj Zizec? Nem todas as assertivas do filósofo esloveno devem ser encaradas sem reservas. Suas observações sobre Cuba, por exemplo, são bastante superficiais: identifica apenas a aparência dos fenômenos sociais da ilha, qual seja, as construções e edifícios tombados e datados de mais de meio século, automóveis antigos rondando cidades que parecem ter parado no tempo e cita como referência o romance de Pedro Juán Guthiérrez, um raivoso dissidente e jornalista que mora livre na ilha a difamar o regime de Fidel. Zizec de outro lado não faz nenhum  comentário sequer ao embargo econômico e pouco diz sobre a evolução histórica e econômica de Cuba, que engendrou “atraso” – poderia igualmente comparar o “atraso” com dados socioeconômicos de Cuba e de outras capitais latinoamericanas. Outro erro a se destacar dentre os ensaios de Zizec parece o de associar a China a uma espécie de capitalismo de estado, desconsiderando o secular estado de opressão e espoliação estrangeira pelo qual os chineses lutaram.

De outro lado, entendemos que Slavoj Zizec é um autor que vale a pena ser conhecido e lido pela esquerda revolucionária. Não necessariamente pelas respostas ou sínteses que oferece mas especialmente pelas as perguntas que formula. Bons filósofos não necessariamente são aqueles que formulam as respostas corretas mas aqueles que problematizam, fazem perguntas que nos inquietam, instigam-nos a pensar. E aqui o filósofo e particularmente o psicanalista Zizec ganha maior relevância e tem maior contribuição para o marxismo. Dentro da tradição Marxista, foi Althusser um dos primeiros a vislumbrar as relações entre o materialismo histórico e dialético e a psicanálise e Zizec surge como uma original solução de continuidade. Um pequeno exemplo de como este casamento pode-nos ser concretamente relevante está na crítica da ideologia da livre escolha do multiculturalismo liberal, consoante Safatle no posfácio da obra, in verbis:  

“Esta politização da defesa da irredutibilidade do sujeito marca a maneira com que Zizec entra no debate da contemporaneidade. Lembremos, por exemplo, como ela é mobilizada na viabilização de sua crítica contra a ideologia da “livre escolha” própria ao multiculturalismo liberal, ideologia cujo ápice será o uso da noção de gender como construção performativa do sexual. Pois a experiência da negatividade do sujeito indica, entre outras coisas, como o desejo não se satisfaz na assunção de identidades ligadas a particularismos sexuais. O sujeito é aquilo que nunca é totalmente idêntico a seus papeis e identificações sociais, já que seu desejo insiste enquanto expressão da inadequação radical entre o sexual e as representações do gozo (seja na forma de identidades como: gay, lésbica, queer, SM, Andrógino). Isto permite a Zizec afirmar que a tolerância  da multiplicidade liberal (“cada um pode ter sua forma de gozo”) esconde a intolerância diante da opacidade radical do sexual. O que não deve nos surpreender, já que a falsa universalidade do Capital acomoda-se muito bem a esta multiplicidade. Todas estas reivindicações identitárias (que se dão principalmente na esfera do mercado: para cada identidade um targed com uma linha completa de produtos e uma linguagem publicitária específica) estão subordinadas à falsa universalidade do capital”.    

Um bom ponto de partida para dizer em alto e bom som que os marxistas leninistas devem estar contra a ideologia de gênero ensinada nas escolas.  

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