sexta-feira, 22 de julho de 2011

"A Rebelião dos Marinheiros" - Avelino Bioen Capitani

Resenha livro #31 “A Rebelião dos Marinheiros” – Avelino Bioen Capitani. Ed. Expressão Popular




"A Rebelião dos Marinheiros" é, na verdade, uma auto-biografia de Avelino Bioen Capitani

Numa rápida busca pela internet encontramos poucas referencias do nome do marinheiro e ativista político. Encontramos e indicamos um artigo escrito pelo historiador Márcio Marquetto Cay (marido de uma prima de Capitani) com dados biográficos, uma fotografia de Capitani e alguns dos personagens descritos em "A Rebelião dos Marinheiros". (Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/resistencias-a-ditadura)

Surpreende negativamente a falta de informação sobre a história de Avelino Capitani. Igualmente, não nos consta haverem muitos relatos da história da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), importante na história das lutas sociais do país desde a sua fundação, ao resgatar a combatividade legada pela revolta dos marinheiros liderada por João Cândido, pela politização pela esquerda de setores importantes e de base das forças armadas e pela organização de ativistas que combateriam as forças armadas durante a ditadura.

Associação de Marinheiros

A história da associação de marinheiros e de sua Rebelião tem importância decisiva para se compreender como a polarização política do pré-1964 atravessava as forças armadas. O relato de Capitani sobre a história da associação e sua orientação política antes, durante e após o golpe revela como havia setores importantes da marinha (e mesmo do exército) preparadas e com real capacidade de reação ao golpe, disposição e combatividade para lutar por reformas internas das forças armadas no sentido de ampliação de direitos aos oficiais de baixa batente e, após o golpe, resistir à ditadura e lutar pela independência nacional.

A associação dos marinheiros foi a primeira tentativa de organização política pela base de membros do baixo escalão das forças armadas. Tinha um caráter sindical e lutava por direitos mínimos: reivindicava melhores salários à “marujada”, direito à folga e a não obrigatoriedade do uso de uniformes nas folgas. Foram, desde a fundação, reprimidos pela direção e atuavam em semi-clandestinidade. O fato dos associados serem trabalhadores e gente do povo (como o próprio Capitani, filho de camponeses) e a radicalização política da década de 1960 fizeram com que a associação se aproximasse do campo popular. Promove ações junto à UNE, busca apoio junto a sindicatos e movimentos sociais.

Capitani cita um evento ilustrativo e que serve para reflexão, particularmente frente à recente polêmica dentro da esquerda nacional sobre o caráter de classes dos bombeiros durante suas manifestações no RJ. A aproximação da Associação dos Marinheiros com o campo popular implicou em sabotagem de repressão de um acampamento das Ligas Camponesas em Goiás.

"O Local foi detectado pelos serviços de informação e o batalhão de fuzileiros, sediado em Brasília, recebeu ordens de reprimir. A subsede de Brasília informou a diretoria da associação e nós, imediatamente, repassamos o informe para Francisco Julião, líder nato das ligas, que resolveu pedir o nosso apoio. Tínhamos uma grande simpatia pelas Ligas e um bom relacionamento com Julião. Traçamos um plano imediatamente. Enquanto orientávamos a subsede para atrasar ao máximo a operação militar, Julião e seus companheiros deveriam sair do local.”

Igualmente, a forma de mobilização particular dos marinheiros e sua capacidade de combate teriam repercussões no momento pós golpe de 1964. Capitani participa da guerrilha de Caparaó, ajuda no treinamento militar e em ações de resistência à ditadura: fugas de presos políticos, tentativa frustrada de roubo a banco, recolhimento de armas para a guerrilha. Em diversas passagens sinaliza-se o fato de que os grupos guerrilheiros, mesmo contando com militantes treinados em Cuba, cometiam erros grosseiros, decorrentes da falta de conhecimentos técnicos acumulados pelos marinheiros. (Evidentemente, não se afirma aqui que as guerrilhas não lograram derrotar a ditadura por falta de capacidade militar e Capitani em diversas passagens identifica a desconexão entre a guerrilha e o movimento de massas como real origem da derrota. Aliás, já no exílio em Cuba, Capitani convence-se da não aplicação do foquismo à realidade brasileira).

De qualquer forma, o importante aqui é destacar alguns elementos da luta dos marinheiros de maneira a sinalizar possibilidade de ressuscitar movimento parecido no país. A possibilidade de se obter informação privilegiada e sabotar iniciativas de repressão aos movimentos sociais, o caráter popular das bandeiras levantadas pela associação dos marinheiros e o repertório de conhecimentos de práticas militares - indispensáveis para uma revolução que ponha em marcha as massas contra as forças de repressão da ordem - não podem ser desconsideradas em função de caprichos teóricos que, eventualmente, sejam resultados de mera tentativa de diferenciação de posição dentre forças políticas da “vanguarda”.

A Incrível história de Bioen Capitani

Ao final do livro, Capitani afirma ter a sensação de ter vivido 200 anos. A trajetória e toda a vida dedicada à militância política (cuja orientação, ao longo do tempo, aproxima-se das referencias da esquerda latino-americana, Che Guevara e Simon Bolívar) implicaram num livro bastante inspirador, particularmente àqueles que se identificam/atuam com/na luta popular.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

"Jerusalém" - Gonçalo M. Tavares

Resenha Livro #30 - "Jerusalém" Gonçalo M. Tavares - Ed. Companhia das Letras




Julgamos ser muito mais difícil resenhar uma obra de arte do que ensaios políticos, artigos acadêmicos, enfim textos e imagens com objetivos mais específicos e determinados. No caso de "Jerusalém" (2006), a dificuldade é ainda maior, desde que o texto do escritor português Gonçalo Tavares tem tantas possibilidades de implicações e desdobramentos (decorrentes de reações muito pessoais acerca do tipo de história narrada em "Jerusalém"), que ficamos em dúvida no como resenhar uma obra de arte.

É possível falar sobre o autor, o contexto histórico da obra, trazer dados mais ou menos objetivos sobre a relação entre o romance e a situação da literatura/arte contemporânea. É possível narrar em síntese as histórias dos personagens de "Jerusalém", o estilo literário, as opções da linguagem e da forma geral como a história é contada.

Optaremos, todavia, por um outro caminho. Vamos escrever a resenha sem se ater à história e aos personagens, mas tentando estabelecer relações entre o romance como um todo e o discurso político das emoções pessoais intensas. Tentaremos estabelecer vínculos entre obras aparentemente sem qualquer conteúdo político (o caso de "Jerusalém") e as implicações políticas da inviabilidade (presente na trajetória dos personagens da história) da possibilidade da solidariedade social e do amor altruísta, além da reiteração (por meio dos fins trágicos dos personagens em "Jerusalém") do egoísmo e da solidão.

Jerusalém

Os diversos personagens tem seus destinos determinados por uma certa indeterminação causal, de maneira a fazer com que cada história particular se encontre, uma à outra, confluindo todos os personagens a fins trágicos. O médico Theodor Busbeck, por exemplo, deseja pesquisar a história do horror, escreve um tratado sobre o assunto: sua intenção é projetar a sua existência para além da sua morte fazendo uma obra que ajude gerações futuras. Acaba tendo o filho (deficiente) morto, a mulher internada num hospício e, posteriormente, na cadeia. Sua obra de pesquisa a qual dedicou toda a vida é esquecida em pouco tempo: termina sua participação no enredo frente-a-frente com uma prostituta decadente que ofende sua dignidade oferecendo uma genitália castigada pelo uso/tempo. Os outros personagens, igualmente, têm fins semelhantes: um é preso, outros dois são mortos, um terceiro é completamente abandonado pelo mundo. O leitor, ao final de "Jerusalém", deve se sentir solitário e entendendo ser mundo hostil a convivência pacífica, mesmo aos bem intencionados. A sensação é a de que os encontros entre os personagens seguem um descompasso essencial, de maneira a fazer com que toda a barbárie e horror das vidas não se relacionassem em nada com o trabalho, com a história, com a economia, com a política. A barbárie decorre de uma condição humana pautada por conflitos intensos e imprevisíveis, decorrentes daquele descompasso permanente.

O descompasso pode ter a ver com dificuldades de entendimento entre as pessoas: incapacidade de apreender o que o outro sente decorrente de um estranhamento essencial entre os homens.

O acaso também tem um papel importante nos fins de cada personagem de "Jerusalém". O que fica inconcluso em Jerusalém é entender em que medida os destinos trágicos dos personagens são inevitáveis. Neste ponto, imaginamos com toda a humildade de um leigo no assunto teoria literária, ao texto de Gonçalo Tavares falta luta de classes.

Política

Existe espaço para a luta de classes quando tratamos de conflitos emocionais intensos? O problema da política, aqui, dificilmente pode ser relacionado aos conflitos individuais de cada personagem, desde que a experiência política, necessariamente, dá-se socialmente, através de interações sociais. Os conflitos emocionais intensos, caso sejam entendidos como decorrentes de uma descompasso universal e essencial nas relações entre os personagens, não podem ser apreendidos politicamente. Caso, por outro lado, façamos o esforço de relacionar as ações e os pensamentos dos personagens com os problemas do machismo, com a alienação do homem, com o problema da mercadoria dentro da vida dos homens, com os sentidos do trabalho, etc., pensamos ser possível complementar a interpretação de Jerusalém de maneira, entre outros, a dar mais sentido humano às histórias: compreender os limites daquela inevitabilidade e dar mais protagonismo aos personagens, fazê-los mais responsáveis.

Identificar e descrever com bastante beleza e intensidade a barbárie e o horror é o ponto alto de Jerusalém. O descompromisso acerca dos porquês da barbárie (algo típico nos dias de hoje), por outro lado, empobrece a possibilidade de se obter mais empatia pelos homens e mulheres de "Jerusalém".

sexta-feira, 8 de julho de 2011

"Reflexões sobre o Socialismo" - Maurício Tragtenberg

Resenha livro #29 - "Reflexões Sobre o Socialismo" - Maurício Tragtenberg - Ed. Unesp




Maurício Tragtenberg foi professor universitário, ativista e teórico político. Não se definia como anarquista, mas como "socialista libertário": segundo Michel Löwy, o autor promove uma síntese original entre anarquismo e marxismo, "inventando um projeto revolucionário generoso e anti autoritário, um socialismo libertário e coletivista".

Lendo as críticas do autor acerca da burocratização das lutas e a conformação do capitalismo de estado nos países do leste europeu, sinaliza-se o entendimento do autor sobre o que é socialismo.

O socialismo em Tragtenberg se conforma a partir das lutas autônomas e independentes dos trabalhadores e da criação de associações horizontais ancoradas na auto-gestão da produção econômica. Meios e fins estão conectados, os meios são parte viva da própria construção do socialismo. Isto significa que a generalização das lutas autônomas e da auto-gestão da produção são inatas ao socialismo.

"Assim, socialismo é entendido aqui como o regime em que a autogestão operária extingue o Estado como órgão separado e acima da sociedade, elimina o administrador dirigente da empresa em nome do capital e,ao mesmo tempo, elimina o intermediário político, isto é, "o político profissional".

Se existe alguma unidade entre meios e fins, da auto-gestão enquanto parte do socialismo, vale pontuar implicações da concepção de socialismo e instrumentos de luta. Estes não são especificamente discutidos no livro de Tragtenberg: entretanto, como uma decorrência das análises do autor, interpretamos serem aqueles instrumentos reprodutores das práticas e do modelo de organização da auto-gestão.

Alguns princípios, enunciados pelos operários da Fiat Xerém em sua greve histórica de 1980, poderiam perfeitamente ser aplicáveis, aqui, a outros instrumentos de luta anti-capitalista. A história do Comitê de Luta (CL) dos operários de Xerém é relatada por Tragtenberg como forma de demonstrar como os trabalhadores, durante o desenvolvimento das lutas, criam formas mais ou menos espontânea de associação política horizontal.

Aqui, propomos trazer alguns dos princípios do Comitê de Luta (os 4 primeiros princípios de um total de 7) como espécie de "requisitos mínimos" de maneira a (tentar) evitar ao máximo a burocratização.

"Princípios do Comitê de Luta (CL)

1- Democracia Operária: submissão da minoria à maioria, inclusive da "vanguarda". A minoria tem o direito de se manifestar.

2- Autonomia e independência: os comitês de luta atuam no sindicato dirigido por pelegos (agentes patronais vinculados ao Estado), mas em hipótese alguma devem permitir ser atrelados à estrutura do sindicato oficialista. No comitê se manifesta a total autoridade do peão: "Quem manda é o peão". Portanto, o CL é apartidário, sem obedecer a qualquer organismo superior ou a qualquer partido.

3- Direção coletiva e combate às hierarquias: os CL não devem se subordinar a instancias superiores e muito menos criar instancias inferiores. Devem permanentemente lutar para que haja o máximo de divisão de tarefas, de informações para todos. Assim se criam condições para o exercício da direção coletiva. É um risco muito alto um pequeno grupo de ativistas controlar o grupo ou decidir por ele

4- Respeito à individualidade: os CL devem respeitar a capacidade individual de cada ativista. Para um bom desempenho da ação do comitê deve-se utilizar as capacidades individuais daqueles que reúnem melhores condições de levar as posições do comitê e da massa. Porém, isso não pode significar concentração de poder ou de informação nas mãos dessas pessoas. À medida que se democratizam ao máximo as informações, mais condições teremos de exercer a democracia operária.

(...) "


Decorrências políticas do Socialismo em Tragtenberg

Os requisitos mínimos têm como ponto comum esforços em não fazer com que o CL deixasse-se burocratizar, o que, em termos mais amplos e analisando as experiências históricas, significou o começo da contra-revolução. A reação às lutas espontâneas e a auto-organização popular não se resume à violência contra-revolucionária da burguesia. Tem a ver, igualmente, com o momento em que as massas deixam de ter controle sobre os rumos históricos.

Os momentos revolucionários são sempre decisivos e as escolhas políticas, a cada passo dado, terão fortes e definitivas implicações. A tese da "traição das direções", por outro lado, não parece dar respostas completamente satisfatórias para o problema da burocratização. Isto porque, para se apreciar em que medida a "traição" ou erros políticos cometidos incidiram nos desdobramentos subsequentes dos fatos, recorre-se ao exercício contra-factual de se perguntar: "e se", "e se outro caminho tivesse sido tomado?". A história contra-factual nunca nos dará respostas conclusivas: num universo indeterminado de possibilidades de escolhas/rumos históricos, cada opção determinará mudanças em cadeia de forma completamente imprevisível.

O que temos, portanto, é a possibilidade de tentar extrair ao máximo lições sobre o passado. A forma como interpretamos socialismo decorre especialmente da forma como avaliamos as experiências revolucionárias do século XX.

Tragtenberg refere-se à URSS e os países do leste como estados capitalistas decorrentes da burocratização das lutas, contando com participação decisiva para a burocratização, o partido bolchevique. Mais uma vez, parece-nos que a interpretação fica inconclusa. Não se pode garantir, por exemplo, que nem a generalização das lutas revolucionárias via soviets, nem a instauração de um partido centralizado na direção do movimento teriam sido mais ou menos eficazes para se derrotar a contra-revolução, sob o risco de se exercitar a história contra-factual. O que é possível, aqui, é discutir o que é socialismo.

Se o socialismo tem a ver, acreditamos, com os princípios enunciados pelo CL de Xerém, o movimento, o processo para se atingir o socialismo contempla aqueles princípios. Métodos de luta reproduzem de certa forma (particular e transitória) os fins das lutas.


Ativismo político de Tragtenberg

Como ativista, Tragtenberg atuou no PCB, de onde foi expulso. Segundo biografia do Wikipedia, o motivo para a expulsão de Tragtemberg foi o fato de ele infrigir norma que proibe contato com a obra de Leon Trótsky. Atua, posteriormente, no PSR (Partido Socialista Revolucionário) junto a Hermínio Sachetta, primeiro grupo a introduzir as ideias da revolucionária Rosa Luxemburgo no Brasil.

Pessoalmente, sabe-se que Tragtemberg fora um auto-didata e outsider do meio acadêmico. Trabalhou no Departamento das Águas de São Paulo e na Fundação Getúlio Vargas, o que, provavelmente, contribuiu para sua interpretação original sobre o significado da burocracia. Crítico radical das instituições educacionais sob o capitalismo, conta-se que fora um professor controvertido.

Uma história sobre Tragtenberg para finalizar esta resenha. Ouvimos o relato de um camarada cujo pai estudou com Maurício Tragtenberg na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Segundo a história contada por este camarada, Tragtenberg zombava de alunos preocupados com as notas das provas semestrais conforme sua orientação libertária acerca da educação. Costumava, então, jogar as provas dos estudantes ao alto: as provas que caíam no chão tinham nota 8, aquelas que caíam no tablado do professor eram nota 9 e as provas que caíssem sob a mesa tinham nota 10. Não temos conhecimento de melhor método de avaliação já aplicado nas universidades brasileiras.

sábado, 2 de julho de 2011

"A Questão Judaica" - Karl Marx

Resenha Livro #28 – “A Questão Judaica” – Karl Marx - Ed. Moraes





“Sobre a Questão Judaica” é um ensaio do Jovem Marx (1818-1883) que dá respostas às análises de Bruno Bauer acerca das formas de emancipação dos Judeus. O texto, escrito em 1843, aborda temas que seriam, posteriormente, desenvolvidos nas obras mais teóricas de Karl Marx.

Assim, os conceitos de alienação, materialismo dialético e ideologia, senão discutidos especificamente em “Questão Judaica”, são tangenciados e abordados, sempre com outras palavras. Fala-se de alienação quando se discute as relações de complementaridade (e não oposição, tal qual surgem em Bruno Bauer) entre religião, política e histórica. Tangencia-se o tema do materialismo dialético nas análises das especificidades do desenvolvimento histórico alemão em relação à França. E aborda-se (igualmente sem citar os termos) a ideologia, ao discutir-se/criticar-se a tese baueriana de emancipação pela mera via do estado laico político. Neste ensaio, finalmente, encontra-se frase, repetida à exaustão, referente ao papel ideológico da religião: “a religião é o ópio do povo”.

Emancipação Política x Emancipação Humana

Bruno Bauer (jovem hegeliano, como Marx) identifica o estado político leigo como momento da superação da religião. A emancipação política, decorrente da formação dos estados modernos, traria consigo liberdades civis, de maneira que, ainda segundo Bauer, o estado livre implicaria na liberação do homem. Marx parte da ideia de que a emancipação política pode perfeitamente co-existir ou mesmo relacionar-se com as religiões.

“O limite da emancipação política manifesta-se imediatamente no fato de que o Estado pode livrar-se de um limite sem que o homem dele se liberte realmente, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre”.

A consolidação do estado político tem como decorrência mais importante, no que se refere a suposta emancipação religiosa, a separação entre o público e o privado. Duas conseqüências importantes da oposição público x privado: a primeira, já citada, significa a sobrevivência real/material da religião de forma complementar à política (e, ainda neste ponto, Marx traça um paralelo interessante entre aspectos da religião judaica e o desenvolvimento do capitalismo); segundo, a separação do homem à comunidade, a conformação do individualismo burguês e da liberdade desprovida de sentidos humanos.

Concluindo, o homem, no Estado Político de Bauer, apenas emancipa-se politicamente da religião, banindo-a “do direito público ao direito privado” – fica, portanto, a meio caminho da emancipação humana geral. Outrossim, o Estado Político, ainda segundo Marx, ao afastar o homem do homem, e instituir a divisão entre o público e privado, assume, ele próprio, um caráter religioso.

“Os membros do Estado Político são religiosos pelo dualismo existente entre a vida individual e a vida genérica, entre a vida da sociedade burguesa e a vida política; são religiosos, na medida em que o homem se conduz, frente à vida do Estado, - que está muito além de sua individualidade real – como se esta fosse sua verdadeira vida”.

Outras discussões passam pelo breve ensaio de Marx: a noção geral de estado, o significado da liberdade e sua relação com os direitos de propriedade, o sentido ideológico dos direitos humanos inatos à luz de alguns artigos da constituição francesa.

A leitura individual de Marx, todavia, tem os seus problemas. Muitas dúvidas surgiram acerca do significado de algumas passagens, sem que fosse possível discutir e relacionar as interpretações pessoais (pelo diálogo), o que certamente limitam o entendimento. A leitura da “Questão Judaica”, neste sentido, fica inconclusa. Apresentaremos, assim, algumas problematizações, decorrentes da leitura, para serem pensadas/discutidas com o tempo.

Problematizando

1- De que maneira a evolução histórica e política da Alemanha tornou impossível a emancipação política sem uma emancipação real do homem? A história confirmou o prognóstico de Marx?

2- Existe anti-semitismo na interpretação que Marx faz da religião judaica?

3- Como conciliar, nos contextos de luta anticapitalista dentro do movimento popular, a liberdade religiosa (emancipação política) com a emancipação real?

quarta-feira, 29 de junho de 2011

"Reforma ou Revolução" - Rosa Luxemburgo

Resenha Livro #27 - "Reforma ou Revolução" - Rosa Luxemburgo - Ed. Expressão Popular




Antecedentes

“Reforma e Revolução” é na verdade uma compilação de dois artigos escritos por Rosa Luxemburgo entre setembro de 1898 e abril de 1899. Os ensaios são uma resposta política a setores do Partido Social Democrata alemão (SPD), agrupados em torno de Eduardo Bernstein.

O revisionismo era então uma força política ainda em vias de ascensão. A série de textos publicados por Bernstein na revista Neue Zeit do SPD (entre 1897-1898) era, então, o primeiro grande esforço de sistematização teórica de uma nova orientação política. O reformismo seria predominante nas décadas subseqüentes no SPD, na II Internacional e em parcela considerável de partidos de esquerda (inclusive comunistas) em todo o mundo, especialmente após a II Guerra Mundial.

O revisionismo enquanto movimento político tem como principais pontos de partida: a instituição do socialismo a partir de reformas sociais; o controle da produção pelos sindicatos; a supressão da teoria do desmoronamento do capitalismo frente à constatação (meramente impressionista) da capacidade de adaptação do capitalismo frente às crises; a negação da tomada do poder político pelo proletariado como um fim das lutas específicas agrupadas em torno do projeto revolucionário (alega-se, entre outros, a ideia de os operários não estarem “maduros”).

O socialismo, aqui, aparece como uma decorrência de um processo de longuíssimo prazo, baseado no controle jurídico e institucional da economia capitalista, promovido pelo desenvolvimento de cooperativas no plano econômico e pela ocupação gradual do parlamento pelos operários: “os fins não são nada, os meios são tudo” é a frase mais lembrada de Bernstein.

A proposta teórica dos revisionistas é então combatida por Rosa, preocupada, particularmente, com as implicações políticas daquele grupo dentro do movimento operário. Ao confrontar o revisionismo com a realidade do capitalismo mundial, particularmente a emergência do militarismo e da formação de grandes monopólios, Rosa nos mostra como a teoria do grupo de Bernstein tem como implicação política mais importante a negação da alternativa socialista: as reformas atendem exigências do capitalismo e conformam-no de maneira a fazê-lo sobreviver, exclusivamente.

Vale destacar, aqui, que Rosa não cai no erro de opor Reforma e Revolução como dois entes separadas: a revolucionária, por suposto, reconhece o papel das reformas (meios) que educam e conscientizam o movimento operário em torno de um projeto de emancipação pela via revolucionária (fins). Ainda assim, a conclusão teórica a que Rosa chega, em Reforma e Revolução, é que o reformismo, quando desprovido de uma estratégia de ruptura com o capitalista, tem como significado prático a inserção da ideologia burguesa dentro do dentro do SPD e dentro do movimento operário, de forma geral.

O texto é escrito de forma didática: Reforma e Revolução é um manifesto necessário e atual contra as tendências que buscam revisitar o marxismo, incutindo-lhe uma interpretação eclética (“apropriando-se o que há de bom e afastando o que dele há de mau”) cujo fim principal é desarmar a teoria no que se refere a sua ligação com a transformação social (negação da teoria do desmoronamento do capitalismo e tese dos meios sobrepostos aos fins).

O combate ao Revisionismo

A teoria do desmoronamento do capitalismo, em Marx, baseia-se em três elementos fundamentais: a socialização do processo de produção, a “anarquia crescente da economia capitalista” e suas crises cíclicas, e a organização e consciência do proletariado, potencializada pela generalização das relações capitalistas. Bernstein vale-se da análise de supostas formas de adaptação capitalista (sociedades de ações, concessões de créditos, melhoria relativa da classe operária em alguns países) para demonstrar como o desmoronamento do capitalismo é improvável/impossível. Já Rosa destaca a contradição original do revisionismo, a negação da teoria do colapso: “mas se os cartéis, o sistema de crédito, os sindicatos etc., suprimem assim as contradições capitalistas, e se, por conseguinte, salvam da ruína o sistema capitalista, se permitam ao capitalismo conservar-se em vida – é por isso que Bernstein os chama de “meios de adaptação” – como podem eles, ao mesmo tempo, ser ‘condições e mesmo, em parte, germes’ do socialismo?”

Em outras palavras, em que medida qualquer iniciativa cujo resultado prático seja a mera atenuação provisória dos conflitos sociais decorrentes do capitalismo podem (de forma processual, como um “meio”) gerar o socialismo? Salvar capitalismo de suas crises concilia-se de qual forma com a sua superação?

Partindo-se da negação das crises estruturais do sistema, toda a teoria de Berstein é desconstruída por Rosa Luxemburgo. No que se refere, por exemplo, aos sindicatos, Rosa resgata passagens importantes do Capital, lembrando que estes são instrumentos de luta por salário e redução da jornada de trabalho, sem incidir absolutamente sobre as relações de produção dadas.

Os sindicatos operam dentro dos marcos do capitalismo, atuam a partir das tendências de valorização e desvalorização monetária da força de trabalho, não incidem sobre a gestão dos meios de produção, não alteram a natureza exploratória do trabalho (valor de troca) no capitalismo. Já as cooperativas, igualmente criticadas por Rosa, ancorada nas análises de Marx, tem como destino sua dissolução frente aos monopólios capitalistas ou a sua conversão em novas empresas capitalistas (pequenas, médias e grandes).

A partir das críticas em torno do programa revisionista, Rosa extrai algumas conclusões importantes. I- Trata-se de um movimento tipicamente pequeno-burguês, relacionando-se particularmente com as aspirações da aristocracia operária; ii- sua orientação filosófica igualmente tem definição pequeno burguesa já que, ao negar a relação indissociável entre a teoria marxista e o projeto revolucionário, adotando uma orientação “eclética”, acaba dando por “científico” aquilo que é típico interesse de classe; iii- o revisionismo é idealista em suas análises econômicas, não levando em consideração as crises capitalistas como parte de sua própria natureza auto-destrutiva e prendendo-se a interpretações meramente impressionistas e empiristas da realidade (ver significado em Bernstein dos monopólios, do militarismo, do protecionismo alfandegário e das sociedades de ações).

Antecipações de Rosa Luxemburgo

É interessante notar como Rosa, ao contrapor o revisionismo à aplicação do método marxista para análise da realidade alemã, antecipa fatos políticos. Ao discutir o significado do militarismo e sua relação com as disputas imperialistas, Rosa acena, com mais de uma década de antecedência, a ocorrência da 1ª Guerra Mundial. Ao discutir o significado da política de créditos, Rosa, ao contrário de Bernstein, vê no fenômeno não uma forma irremediável de adaptação do capitalismo, mas uma fonte de crises futuras – “assim, em vez de um meio de supressão ou atenuação das crises, o crédito, ao contrário, não é senão um meio particularmente poderoso de formação das crises”. A Crise Mundial de 1929 comprovaria na prática o acerto de Rosa e a fragilidade da tese revisionista.

Há uma previsão que, infelizmente, Rosa não acertou. A revolucionária afirma ser o revisionismo de Bernstein uma teoria natimorta, sem qualquer possibilidade de ascensão. Eventualmente, Rosa referia-se à fraqueza do reformismo mais como forma de mobilizar o movimento operário, fazer com que os operários não se deixassem seduzir pelo discurso fácil do reformismo. Seja como for, as críticas teóricas elencadas como manifesto em Reforma e Revolução são hoje bastante atuais. Resgatar Rosa Luxemburgo, para os revolucionários, é uma exigência do momento.

Citação Final

“As relações de produção da sociedade capitalista aproximam-se cada vez mais das reelações de produção da sociedade socialista, mas, inversamente, as relações políticas e jurídicas estabelecem entre a sociedade capitalista e a sociedade socialista um muro cada vez mais alto. Muro este que não é arrasado, antes, porém, reforçado, consolidando pelo desenvolvimento das reformas sociais e da democracia. Por conseguinte, é somente o martelo da revolução que poderá abatê-lo, isto é, a conquista do poder político pelo proletariado”.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

"As Esquinas Perigosas da História" - Valério Acary

"As Esquinas Perigosas da História" - Valério Acary

Resenha Livro #26 - “As esquinas perigosas da História: situações revolucionárias em perspectiva marxista” – Valério Acary





“Revoluções são, portanto, um fenômeno histórico que tem como característica definidora mais importante a intervenção ativa das massas na arena política, com uma abrupta elevação da intensidade das lutas de classes e aceleradas mudanças nas relações de forças entre as classes. Por mais aguda que seja a crise econômica, por mais severa as seqüelas das catástrofes sociais, por mais dramática que seja a agonia do regime, sem que as massas entrem em cena não se abre uma situação revolucionária”

Nem sempre as melhores contribuições teóricas para a batalha das ideias correspondem ao lançamento de respostas mais ou menos fechadas acerca da realidade, interpretações esquemáticas do passado que se projetam em formas ortodoxas de se intervir no presente para o futuro. Aliás, de uma maneira geral, nem sempre o mais importante são as respostas. As perguntas antecedem as respostas. Eventualmente, perguntas mal formuladas são a fonte dos erros práticos, políticos ou teóricos. Erros políticos costumam ser comuns. Erros políticos em situações revolucionárias mostraram ser fatais.

O trabalho de Valério Acary é bastante oportuno principalmente por ser capaz de abrir a discussão realizando perguntas. O objeto do estudo do autor é interpretar as revoluções por que passa o mundo ao longo do séc. XX. Não se discute isoladamente as experiências revolucionárias da Rússia (1905-1917), Espanha (1937), Iuguslávia (1945), China (1949), Cuba (1959), França (1968), Portugal (1979) ou Nicarágua (1979). O que se faz é, através das experiências históricas, procurar sistematizar, em primeiro lugar, o que todos estes eventos tiveram de comum, quais foram os pré-requisitos para a explosão e aceleração do tempo histórico decorrente dos momentos revolucionários. Pegunta-se qual foi a participação dos sujeitos coletivos/partidos/movimentos e sua relação com os embates de classe nas revoluções.

Pergunta-se enfim: como podemos dar sentido para os diversos momentos revolucionários ao longo do século de forma a pensarmos, num segundo momento, em algo como as diversas experiências (ainda que fracassadas) servem à luta anti-capitalista.

Levantar perguntas acerca da natureza das classe em luta, os seus horizontes políticos e, talvez a pergunta mais instigante, por que (com exceção de Outubro de 1917), nenhuma revolução alcançou aquilo que L. Trótsky chama de “transcrescimento” (a generalização da socialização dos meios de produção e um movimento de transformação societária numa orientação pós-capitalista) é fonte de controvertidas análises que ainda hoje dividem a esquerda.

As muitas perguntas que o livro levanta, parece-nos, corresponderia a um ponto de partida para um objetivo mais geral do livro de Valério Acary: o desenvolvimento de uma Teoria Geral das Revoluções.

O Papel dos Partidos Políticos

“Nunca existiu uma relação simples – de causa e efeito – entre a crise terminal de um regime e seu colapso revolucionário. Governos com bases sociais de sustentação muito minoritárias podem-se manter por muito tempo. Nenhuma ordem econômico-social desmorona sozinha. Não são as organizações revolucionárias, contudo, que fazem revoluções. Revoluções são feitas pelos sujeitos sociais. A qualidade maior ou menor da representação política das classes exploradas pode acelerar ou retardar uma situação revolucionária e, finalmente, decidir a sorte da revolução. Mas nem o partido mais revolucionário pode substituir o movimento prático de milhões de pessoas mobilizadas. A improvisação da liderança demonstrou-se quase uma regra nas revoluções políticas do último quartel do século XX, sem que fosse, todavia, decisiva. A força irreprimível da luta de massas foi suficiente para derrubar governos tirânicos e regimes ditatoriais, mesmo quando não dispuseram de direções temperadas em décadas de perseverante preparação. A debilidade subjetiva de comando foi, no entanto, fatal em todas as revoluções sociais”.

Destacamos a passagem acima por ela ilustrar, eventualmente, certo posicionamento político acerca dos papeis dos partidos no preparo e direção das massas dentro dos momentos revolucionários: neste ponto controverso, a análise histórica é pertinente, mas nem sempre conclusiva.

Interpretamos a orientação de Acary no sentido de, por um lado, reconhecer os episódios de espontaneidade que perpassam as experiências revolucionárias, assim como o fenômeno da própria produção de lideranças ao longo dos momentos de acentuação dos conflitos. Entretanto, ainda segundo o autor, a ausência de uma direção preparada teve papel “fatal”, no sentido de não fazer com que os diversos “Fevereiros”, que se repetiram nas diversas experiências revolucionárias do século XX, não avançassem em “Outubros”, passando de revoluções meramente políticas (derrubada de tiranias e ditaduras) a revoluções econômico-sociais (extinção da hetero-gestão produtiva, abolição do aparato repressivo-ideológico do estado e construção do socialismo).

Uma pergunta decisiva, aqui, é o de se delimitar os papeis dos sujeitos coletivos, o que, deve ser mesmo antecedido pela pergunta acerca das relações entre partidos políticos e classes sociais. O partido político foi uma expressão política das classes e, definitivamente, a dificuldade dos partidos socialistas imprimirem uma orientação anti-capitalistas aos diversos “fevereiros” é parte da explicação para os fracassos das revoluções. Entretanto, e aqui explicamos o fato da experiência histórica não ser sempre conclusiva, pensamos que os fracassos das experiências autônomas de luta, ativa e coletiva, contra o capitalismo, ainda que derrotadas historicamente, não invalidam as possibilidades da auto-organização, da mesma maneira como não entendemos serem as experiências históricas de burocratização dos partidos socialistas/comunistas uma inevitabilidade essencialista que implicam na negação da forma partido. As duas orientações, parece-nos, chegam a conclusões baseadas em interpretações históricas, não se levando em consideração que a história, ainda que dotada de sentidos, sempre está aberta a novas possibilidades (inclusive, o colapso, ao contrário de certa orientação fatalista acerca da realização da revolução a partir da crise objetiva do capitalismo).

Para dar uma conclusão a esta pequena ponderação, acreditamos que o problema da direção dentro dos projetos de revolução se encerram em formas de organização que tenham capilaridade social, que incidam de maneira a potencializar a capacidade política das massas e o seu senso crítico de maneira a inviabilizar cada vez mais a burocratização. Como afirma Tony Cliff, o que corrompe as organizações políticas não é o poder, mas a impotência, a falta de controle (auto-controle) sobre os partidos e organizações (meios).

Uma bela citação para concluir o artigo

Cumpre ressaltar que Valério Acary escreve muito bem. O seu texto é fluente, claro e é muito prazeroso de ler. Vamos citar uma última e pequena passagem, à guiza de conclusão.

“Quando o proletariado perde o medo ancestral de se rebelar, perde até o medo de morrer, toda a sociedade mergulha em um turbilhão e em uma vertigem da qual não poderá emergir sem grandes convulsões e mudanças. E, se esse sentimento for compartilhado por milhões, então essa força social transforma-se em força material, em uma força material terrível, maior que todos os exércitos, do que as polícias, do que as mídias, as igrejas, maior do que tudo, quase imbatível. Esses momentos são as crises revolucionárias. Que a maioria das revoluções do século XX tenha sido derrotada, não demonstra que não venham ocorrer novas vagas revolucionárias no futuro”.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

"O estrangeiro" - Albert Camus

Resenha Livro #25 – “O estrangeiro” – Albert Camus




Mersault trabalha num emprego sem importância. Quando sua mãe morre, chega a hesitar se deve ou não pedir desculpas ao seu chefe: precisará faltar alguns dias para velar o corpo, preocupando-o a reação do patrão às suas faltas. A falecida faz com que Mersault, adulto, provavelmente branco e francês, viaje a Marengo (80 Km de Argel), onde providenciará o cortejo do corpo e o enterro.

De volta à Argel, Mersault envolve-se com uma datilógrafa do trabalho. Encontra Marie tomando banho de mar. Tanto seu relacionamento amoroso, quanto os conflitos posteriores envolvendo o protagonista só assumem importância na medida em que servem para revelar a forma particular como Mersault parece ver o mundo. O trabalho é encarado como uma banalidade, a morte da mãe parece assumir a mesma importância que o café com leite tomado antes do enterro e detalhes da arquitetura do caixão, o relacionamento amoroso é narrado como um encontro casual e desprovido de sentimentos não racionais, a prisão, como uma necessidade irresistível da vida.

A banalidade do cotidiano e o desencontro

Chama atenção a forma como os eventos e as sensações pessoais de Mersault vão sendo relatadas de forma indiferente. O personagem, que narra sua história em 1ª pessoa, parece despir-se por inteiro, revela os eventos por que passa com o máximo de sinceridade, o que, de alguma forma, implica naquela indiferença: o autor não se sente obrigado a justificar seus atos, pouco lhe parece importar a reação do leitor àquilo que narra.

A sensação de indiferença parte da sinceridade de Mersault e, igualmente, justifica-se diante da própria vida.

A mãe lhe surge como um parente distante, o que decorre da distância e do tempo que passaram afastados. A ausência de lágrimas derramadas pelo filho chama atenção dos demais presentes no enterro, mas explica-se pela compreensão de que a mãe levara uma vida melhor longe do filho. O leitor a todo momento compreende Mersault e igualmente compreende o porque os demais não compreendem Mersault – o personagem parece não manter relação de pertencimento ao mundo.

Contingências determinando o fluxo da vida

Tanto eventos cotidianos quanto os conflitos, correspondentes à morte da mãe, às relações amorosas com Marie, aos enigmáticos árabes com quem Mersault acaba por se envolver, à prisão e à condenação à morte, surgem como se fossem parte de uma inevitável contingência de fatos a que Mersault vivencia antes como um espectador. Decorre, imaginamos, daí o nome da obra de Albert Camus. Mersault é um estrangeiro, não apenas por ser um francês residente na Argélia, mas por, parece-nos, ser alguém que vivencia suas experiências de forma alheia, como um observador distante.


Humanidade x Barbárie

Particularmente, Mersault vê-se afetado pelos sinais climáticos. O frio, o calor e as circunstâncias do meio lhe afetam provavelmente mais do que o normal. Ainda, Mersault parece ser bastante perspicaz ao compreender e identificar os sentimentos daqueles com quem interage. Não há, portanto, insensibilidade ou falta de sentimentos humanos em Mersault. O fato dele sentir-se estrangeiro, parece-nos, decorre da barbárie social, da incompreensão geral determinada por um fluxo inevitável de eventos do qual Mersault parece ser expectador. O fim trágico de Mersault é uma decorrência lógica de uma sequencia de eventos que, em seu todo, parece ser absurda. A justiça oficial e a religião surgem particularmente como parte da irracionalidade, fazendo com que a sensação final é a de que, num mundo alienado e desumano, a honestidade radical de Mersault faz com que ele se afaste da realidade e seja vítima dos eventos.

O estrangeiro é um texto enigmático. Trata-se do primeiro romance de Albert Camus (1942) e, ainda hoje, dialoga bastante com um mundo que reifica o homem, fetichiza a mercadoria e parece ser incapaz de dotar a história de sentidos.