domingo, 8 de janeiro de 2023

LIVRO DE UMA SOGRA POR ALUÍSIO AZEVEDO

 LIVRO DE UMA SOGRA POR ALUÍSIO AZEVEDO




 

Resenha Livro – “Livro de Uma Sogra” – Aluísio Azevedo – Edições Iba Mendes

 

Aluísio Tancredo Gonçalves Azevedo nasceu em 14 de abril de 1857 na cidade de São Luís do Maranhão.

 

Era filho de um vice-cônsul português, sendo certo que o próprio escritor futuramente abandonaria a literatura aos 38 anos, para virar diplomata, tendo servido na Espanha, Inglaterra, Itália, Japão, Paraguai e Argentina.

 

O nosso escritor, quando criança, não era exatamente de família nobre e abastada, mas certamente nunca passou por privações materiais.

 

No ano de 1871 Aluísio se matriculou no Liceu Maranhense à época dirigido pelo professor Francisco Sotero. No mesmo ano começou a ter aulas de pintura com o artista italiano Domingos Tribuzzi.

 

Da pintura, passaria à caricaturista, sendo certo que a sua literatura teria alguma influência desta espécie de arte e manteria interfaces com suas charges: seja a proposta de uma narrativa objetiva que retratasse a realidade tal como ela é, seja na criação de tipos sociais com uma intencionalidade de promover crítica social e até mesmo humor.

 

“O Mulato” foi o segundo livro publicado pelo escritor maranhense, lançado no ano de 1881, mesmo ano, diga-se de passagem, da publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis.

  

Supracitada obra não guardaria a mais pálida semelhança com o primeiro trabalho do autor, chamado “Uma Lágrima de Mulher” (1880).

 

O primeiro livro ainda se pode caracterizar como romance folhetinesco, todo ele se situando inclusive na Itália, sem referências nacionais. Já o segundo romance é tido por muitos como a primeira obra naturalista produzida no país, o que é discutível desde que o menos conhecido Inglês de Souza com sua proposta de literatura amazônica, já produzia livros naturalistas cerca de uma década antes d’o Mulato.

 

Boa parte da crítica literária, capitaneada por Antônio Cândido, buscam dividir a obra de AluísioAzevedo entre os trabalhos propriamente naturalistas, que seriam os que alcançariam maior expressão e importância literária e outras obras de menor relevância, de tipo romântico, folhetinesco e mais comerciais.

 

Dentre as ditas “grandes obras” do nosso escritor temos “O Mulato” (1881), “Casa de Pesão” (1883) e “O Cortiço” (1890), este último considerado o melhor livro de Aluísio Azevedo.

 

Esta divisão entre romances naturalistas e meros trabalhos folhetinescos torna-se questionável à luz da leitura de “Livro de Uma Sogra”, último trabalho do escritor maranhense, publicado no ano de 1895.

 

Trata-se de um romance de tese sobre o casamento, em tom satírico e com um ajuste de contas com a produção naturalista anterior.

 

Ainda que algumas premissas do naturalismo como o determinismo biológico e a presença das pulsões naturais como condicionantes da ação humana se façam presentes, a história, por outro lado, é narrada em primeira pessoa por uma voz feminina, com o seu tom sentimental, que se serve ocasionalmente de passagens bíblicas e da experiência prática da vida doméstica, para criticar o matrimônio convencional, fadado via de regra ao tédio e a uma incompatibilidade crescente entre o amor físico e o amor sentimental.

 

Nem romântico, nem puramente naturalista, portanto.

 

Como se sabe, Aluísio Azevedo pertencia a uma geração que apostava no advento da República como um marco da evolução política do país. A literatura realista-naturalista, ao retratar de forma objetiva a realidade e pioneiramente tratar dos extratos populares, ainda que de uma forma superficial e ocasionalmente estereotipada, seria parte deste projeto modernizador.

 

A república veio e causou a decepção daquela geração de literatos: Raul Pompeia se suicidou, Olavo Bilac foi preso e exilado e Aluísio Azevedo, precocemente, aos 38 anos, abandonou a literatura para se tornar diplomata.

 

Em se tratando do seu último livro, “Diário de Uma Sogra” (1895) revela já um escritor não preso aos esquemas rígidos do naturalismo, com o seu viés puramente cientificista, em que o homem é mero produto de leis naturais, condicionado que está pelo meio social, pela origem racial e pelos instintos naturais. Trata-se, antes, de uma sátira daquelas teses, ao narrar a história de Olímpia, uma mulher autoritária que se baseia em algumas daspremissas naturalistas relativas ao amor (entendido como o instinto de conservação da vida) para manipular sua filha e seu genro em torno de um novo programa do matrimônio, produzindo uma vida conjugal insólita e eventualmente cômica.

 

Leandro de Oviedo é um amanuense de secretaria, rapaz pobre, mas equilibrado, de coração generoso e inteligência medíocre.

 

Casado com Palmira, enfrenta uma série de dificuldades com a sua sogra Olímpia, que desde o pedido de casamento, impõe uma série de condições para a consumação do enlace: o casal não deveria residir na mesma casa; as visitas teriam, mesmo após o casamento, a periodicidade controlada pela sogra; o casal não dividiria o quarto; o sexo não poderia se consumar nos momentos da menstruação; e, com a gravidez do primeiro filho, se impunha que Leandro se afastasse durante a gestação por completo de sua esposa, sendo imposto que passasse uma temporada na Europa.

 

Posteriormente, com a morte de Olímpia, Leandro descobre o “diário de sua sogra”, escrito para ser lido após a morte da velha, em que ela explica a razões daquelas regras inusitadas.

 

A maior parte do romance corresponde, assim, à reprodução deste diário que corresponde a uma caricatura de tese naturalista do amor conjugal.

 

Movida por sua experiência de mulher (desilusão do casamento) e pelo amor a sua filha, a sogra estabelece um programa do casamento, buscando elencar os requisitos de um bom marido para Palmira: um homem que vive exclusivamente para a sua família e para o lar doméstico; alguém que teme acima de tudo o escândalo, ainda que seja aquele decorrente de um sucesso pessoal. Aliás, opondo-se nitidamente ao romantismo, para quem o homem surge aos olhos da mulher amada como uma espécie de herói, na visão de Olimpia, o melhor marido é o homem medíocre, que não se destaca socialmente, para, assim, não desviar o seu foco de sua mulher e de sua família:

 

“Para ser um bom marido, não pode o indivíduo ser um “homem de ação”, como não pode ser um “contemplativo”. Não pode ser um conquistador, um revolucionário ou um grande empreendedor, como não pode ser um poeta, um artista ou um sábio. E como são essas as duas únicas ordens em que se divide a humanidade produtora, da soma de cujo esforço de ação ou de pensamento tira a evolução histórica a sua grande força de impulso e de aperfeiçoamento geral, segue-se que o “Bom Marido”, na comunhão da vida inteligente e na obra do progresso do mundo, não tem lugar como homem, mas só como animal, e seu esforço só poderá ser aproveitado como passivo instrumento da vontade alheia.

 

Por isso um bom marido deve ser única e exclusivamente um bom marido, e nisso limitar a sua aspiração.”.

 

O maior problema do casamento, para a Sogra, é o tédio decorrente da convivência diária. Com a rotina, vem a tendência do desencanto do amor sexual: a mulher suporta com sacrifício as carícias do homem e, com hipocrisia, as retribui. O segredo da felicidade conjugal assim é a separação intermitente dos cônjuges, estimulando-se assim o desejo de união.

 

Os instintos garantidores da vida são o amor (para a reprodução) e a fome (para a sobrevivência). Da mesma forma que comer o seu prato favorito todos os dias gerará náuseas, a convivência diuturna implicará na desilusão amorosa:

 

“Não há estômago que resista a faisão-dourado todos os dias; o melhor acepipe, se não for discretamente servido, enfastiará no fim de algum tempo. O mesmo acontece no matrimônio: os cônjuges acabam invariavelmente por se enfararem um do outro, não pelo uso que fazem do amor, mas pelo abuso mútuo da convivência e da ternura.”.

 

Considerando-se que se trata do último romance escrito por Aluísio Azevedo, o “Diário de uma Sogra” se revela, ironicamente, como uma sátira das produções anteriores de caráter naturalistas: talvez, o livro já sinalizasse um desencanto do escritor diante dos rumos do país e dos limites de sua geração literária, que lutou o bom combate pela modernização do país por intermédio da crítica social e de costumes, desde a denúncia do provincianismo e do racismo em “O Mulato” até a exposição pioneira das mazelas e opressão do povo pobre em “O Cortiço”.  O acerto de contas fez-se através da ironia, da sátira e do humor, ou seja, da forma como o escritor começou a sua carreira artística, fazendo suas caricaturas de jornal.  

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

“História do Brasil – Volume I” – Robert Southey

 “História do Brasil – Volume I” – Robert Southey




 

Resenha Livro - “História do Brasil – Volume I” – Robert Southey – Edições do Senado Federal – Volume 133-A.

 

Robert Southey (1774 – 1943) foi historiador e poeta inglês, ligado ao movimento literário romântico britânico.

 

Entre 1810 e 1819 o escritor lançou a sua “História do Brasil” em três volumes, que contêm cerca de 2000 páginas e que tratam dos primeiros contatos dos colonizadores na costa do Brasil (Séc. XV) até a chegada da Família Real Portuguesa à América, no ano de 1808.

 

Trata-se do primeiro livro de História do Brasil escrito de acordo com formas e técnicas modernas de pesquisa, ou seja, conforme análise de documentação primária, cartas e crônicas de viagem, obtidas especialmente entre 1800 e 1801, quando Southy esteve viajando em Portugal.

 

Para se ter uma ideia do pioneirismo do escritor britânico e sua importância para a cultura nacional, basta dizer que a obra de Varnhagen, considerada quase consensualmente como o ponto de partida da historiografia brasileira, data de 1854, quando do lançamento de “História Geral do Brasil”. Quase cinco décadas após o lançamento da História do Brasil de Southey, portanto.

 

A importância da intervenção britânica no desenvolvimento da história do Brasil ao longo do século XIX explica em certa medida o interesse dos ingleses no estudo da evolução histórica brasileira, nossa trajetória, nossas instituições políticas e nossa estrutura econômica. Foi no contexto das Guerras Napoleônicas que uma esquadra militar britânica viabilizou a transferência da sede do Império Português para o Rio de Janeiro. O fim do exclusivismo comercial, com a abertura dos portos no ano de 1808, favoreceu particularmente a Inglaterra, que passou a ser a principal credora e fiadora dos negócios portugueses (e brasileiros) até a nossa independência em 1822. E após a independência política, pouca dúvida há sobre a dependência econômica brasileira em relação aos ingleses, bem como a intervenção britânica em torno de questões internas brasileiras, como as medidas para compelir o fim do tráfico de escravos, com objeto de viabilizar um mercado de consumo para produtos britânicos. É neste contexto de maior participação inglesa nas questões brasileiras que surge a obra em análise.

 

Para escrever a sua história, Southey contava com um acervo de 14.000 livros e documentos relacionados à Portugal, Espanha e a América luso-hispânica. Sua pretensão seria, na verdade, compor uma grande História de Portugal, envolvendo volumes específicos tratando das colônias em Ásia, África e América. Nunca chegou a concluir a tarefa, mas legou aos brasileiros a sua primeira História escrita de acordo com métodos de pesquisa modernos.

 

De sua própria obra, diz o historiador:

 

“Seria faltar à sinceridade que vos devo, esconder que minha obra, daqui a longos tempos, se encontrará entre as que não são destinadas a perecer; que me assegurará ser lembrado em outros países que não o meu; que será lida no coração da América do Sul e transmitirá aos brasileiros, quando eles se tiverem tornado uma nação poderosa, muito da sua história que de outra forma teria desaparecido ficando para eles o que é para a Europa a obra de Heródoto”.

 

Não deixa de ser curioso ler uma história rica de detalhes acerca das condições de vida dos primeiros colonizadores, confrontados com tribos indígenas antropofágicas, suas guerras e suas alianças militares, seus hábitos alimentares e suas crenças religiosas, tendo em vista se tratar de um escritor que nunca colocou os seus pés no Brasil.

 

Em todo o caso, pelo fato de pioneiramente ter tido acesso a uma série de fontes primárias,  como as crônicas dos escrivãos das primeiras expedições da América, Southey, um historiador romântico, nos apresenta uma história profundamente realista. Ou, ao menos, mais realista do que muitos livros escritos por pesquisadores contemporâneos, que, sob o pretexto de se “criticar” tais fontes primárias como parte de uma história “oficial”, criam em contrapartida uma história ideológica, cheia de maniqueísmos, baseada em preconceitos que dizem ser a civilização brasileira o fruto do estupro e da violência pura e simples de brancos contra pretos e índios.

 

Ao se confrontar estas narrativas mais recentes com os documentos primários, cartas e crônicas do século XV e XVI, verificamos se tratar o empreendimento colonial de situação muito mais complexa e contraditória do que a mera dominação de um povo pelo outro. A superioridade militar dos europeus pelo uso da pólvora não raro era suplantada pelo conhecimento geográfico e melhor adaptação dos índios às condições locais, incluindo alimentação, clima e recursos da natureza para subsistência e cuidados com saúde. Houve igualmente momentos em que conflitos foram substituídos por alianças, sem prejuízo do desenvolvimento de um comércio que era promovido mesmo em tempos de guerra.  Não se tratou, obviamente, de um “genocídio indígena” perpetrado por europeus imbuídos de má fé, mas de um longo processo histórico de assimilação, diálogo e conflito, tendo como eixo a intervenção de elementos mediadores das duas civilizações representados na figuras de degredados e náufragos que se alinhavam às tribos locais e delas aprendia a língua e o costume para posterior auxílio dos colonizadores. Foi de particular destaque no empreendimento colonial não o genocídio mas a  miscigenação e a conformação de um novo povo mameluco, que andava descalço, falava tupi, dormia em redes e se configurada como ponto de partido daquilo que hoje se entende como povo brasileiro.

 

OS PRIMEIROS CONTATOS

 

“1502 - Belo era o país e abundante de quanto podia desejar o coração humano: a brilhante plumagem das aves deleitava os olhos dos europeus; exalavam as árvores inexprimíveis fragrâncias, destilando todas as virtudes destas plantas, nada impediria o homem de gozar de vigorosa saúde até à extrema velhice. Se o paraíso terrestre existe em algum lugar, não podia ser longe dali”

 

O ponto de partida desta História do Brasil dá-se através da descrição dos primeiros contatos da costa do Brasil na expedição de Yanez Pizon, que já acompanhara Colombo na sua primeira viagem à América, como Comandante e Capitão. Desta viagem chegaram-nos os relatos das primeiras entrevistas de europeus com os indígenas, na região de Cabrália, ao sul do estado da Bahia.

 

À meia légua da praia, os viajantes europeus puderam observar cerca de vinte indígenas que se haviam reunidos armados de arco e flecha, apercebidos para a defesa, mas sem intenção de procederem como inimigos, salvo vendo-se em perigo.

 

Efetuou-se amigável troca de presentes: os europeus ofereceram uma carapuça vermelha, um capuz de linho e um chapéu preto recebendo a seu turno dois adornos de cabeça feitos de pena, e um enorme fio de continhas, que pareciam pérolas de inferior qualidade. Os europeus, por acharem que estavam nas índias do oriente, tentaram se comunicar de acordo com a língua daquelas paragens, razão pela qual não foram compreendidos.

 

 

Desde os fins do século XIV, os portugueses lançavam-se do expediente de remeter degredados para a costa da África, Ásia e, posteriormente, América, com a finalidade de viabilizar o empreendimento colonial. Lançados à praia, estes degredados, quando tinham a sorte de sobreviver, aprendiam a língua dos nativos e conheciam a geografia local, servindo posteriormente como guias em favor de futuras embarcações.

 

Decisivo foi a intervenção destes pioneiros: não seria possível à Martim Afonso de Souza viabilizar a fundação da colônia de São Vicente sem os auxílios de João Ramalho, um degredado português que em terras paulistas casou-se com a filha do chefe indígena Tibiriçá e tornou-se ele próprio uma das lideranças tupis. Dos muitos filhos mestiços de João Ramalho e a índia Bartira conformou-se as primeiras populações do futuro Estado de São Paulo.

 

Papel semelhante foi desempenhado na Bahia pelo Caramuru ou Diogo Álvares Correia. Consta que era um náufrago de embarcação francesa que se envolveu com tribos tupinambás ao ponto de se tornar um chefe indígena, tal qual João Ramalho. Conhecedor dos costumes, da língua e da geografia local, facilitou o contato entre os primeiros missionários e colonizadores europeus e os povos indígenas da Bahia.

 

“O primeiro, que na Bahia se estabeleceu, foi Diogo Álvares, natural de Vianna, mancebo e fidalgo, que com o espírito empreendedor, que então caracterizava os seus conterrâneos, embarcara, buscando fortuna em terras estrangeiras. Naufragara ele nos baixos do banco da Bahia, que os naturais chamam Mairagiqui. Parte da gente se perdera, e o resto só escapara àquela morte, para sofrer outra, mais horrível: os selvagens os comeram. Viu Diogo que outra esperança não lhe restava se salvar a vida, senão tornando-se para estes selvagens o mais útil que pudesse. Trabalhou pois em salvar coisas do casco naufragado, e com elas lhes granjeou as boas graças. Entre outros objetos teve a felicidade de trazer para a terra alguns barris de pólvora e um mosquete, que ele na primeira ocasião que teve, pôs em estado de servir, depois que seus senhores voltaram à aldeia, e um dia, que se lhe ofereceu favorável oportunidade, na presença deles matou uma ave. Mulheres e crianças clamariam: Caramuru, Caramuru! que seria dizer homem de fogo (...)”.  

 

Por óbvio, as tribos indígenas variavam entre alguma hospitalidade e a mais decidida oposição violenta ao empreendimento colonial europeu. A conquista do novo território encontrava a oposição de tribos ciosas de manter íntegro o seu território e suas fontes de subsistência, especialmente quando os europeus demandavam por abastecimento de água e alimentos, se não por meio do escambo, por intermédio da violência e destruição.

 

A antropofagia é tema reiterado nos documentos, variando a forma como era praticada de tribo para tribo. Quando da chegada dos Jesuítas, junto com o primeiro governador geral o Brasil Thomé de Souza (1549), puderam os missionários apurarem que os índios não se opunham tanto a mudar suas convicções religiosas pagãs tanto quanto os hábitos de comer gente. Em geral, a antropofagia era associada a rituais festivos, associados à guerra entre as tribos e era promovida dentro de um espírito de vingança:

 

“Tinham os selvagens aprendido a olhar a carne humana como a mais preciosa das iguarias. Por mais delicioso porém que se reputassem estes banquetes, o maior sabor vinha-lhes sempre da vingança satisfeita; era este sentimento, e o pundonor a ele ligado, que os jesuítas acharam mais difícil de extirpar. Da vingança tinham os indígenas brasileiros feito sua paixão predominante, exercendo-a pelo mais mesquinho motivo, para com os que davam pasti e força a uma propensão já por si assaz forte. Comiam o réptil que os molestava, não brincando, como o macaco, mas confessadamente pelo gosto de vingança. Se um dava uma topada em uma pedra, enfurecia-se contra ela, e mordia-lhe como um cão; se uma seta o vinha ferir, arrancava-a e trocava-lhe a haste”.

 

Outros aspectos da vida dos índios são mencionados de forma pormenorizada no livro: os hábitos alimentares predominando a mandioca dentre os índios da américa portuguesa e o milho dentro os da américa espanhola; a divisão sexual do trabalho e o papel das mulheres, em geral relacionados ao cultivo da terra e cuidados domésticos enquanto a caça, a pesca e a guerra eram atividades masculinas; os mitos e as crenças religiosas, que eram muito frequentemente relacionadas a superstições que justificavam práticas bárbaras, como o assassinato de parentes de caciques e pessoas importantes, sob o entendimento de que estes entes fariam companhia ao falecido na dimensão dos mortos.

 

Neste primeiro Volume da História do Brasil, Robert Southey trata dos primeiros contatos dos europeus com a costa brasileira até a expulsão dos holandeses de Pernambuco em meados do Século XVII.

 

Trataremos numa próxima resenha dos demais volumes da obra do historiador britânico.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

“Viagem ao Céu” – Monteiro Lobato

 “Viagem ao Céu” – Monteiro Lobato




 

Resenha Livro - “Viagem ao Céu” – Monteiro Lobato – Ed. Biblioteca Azul

 

José Bento Renato Monteiro Lobato desde criança desenvolveu a atividade literária. Nascido na cidade de Taubaté/SP em 18 de abril de 1882, ainda na escola se dedicava a escrever histórias e criar jornais.

 

É provável que seu trabalho mais conhecido do público tenha sido o da literatura infantil, a criação da Turma do Sítio do Pica Pau Amarelo, da boneca Emília, dos primos Narizinho e Pedrinho, do Visconde de Sabugosa, do porquinho Marquês de Rabicó, da Dona Benta e da Tia Nastácia.

 

Além da literatura infantil, Monteiro Lobato produziu artigos, críticas literárias, crônicas e um único romance, denominado o “Presidente Negro”, publicado em 1926.

 

Também teve participação pessoal em movimentos políticos nacionalistas, em especial na defesa na nacionalização do Petróleo – neste caso foi pioneiro, tendo sido preso em março de 1941 durante o Estado Novo por ter enviado carta a Getúlio Vargas e ao general Góis Monteiro, chamando atenção para  “displicência do sr. Presidente da República, em face da questão do petróleo no Brasil, permitindo que o Conselho Nacional do Petróleo retarde a criação da grande indústria petroleira em nosso país, para servir, única e exclusivamente, os interesses do truste Standard-Royal Dutch”.

  

A literatura lobatiana dedicada ao público infantil surge após o escritor de Taubaté já ter sido consagrado como crítico de arte, jornalista e autor de livros para o público adulto. Seu primeiro livro de contos, denominado Urupês (1918), foi ao mesmo tempo bem recebido pela crítica e por um público extenso: foi um sucesso de vendas. Certamente, este escritor foi dos poucos que souberam articular beleza estética na sua descrição do interior paulista e do caipira e uma simplicidade de linguagem que fizeram de seus livros também conhecidos do grande público.

 

“Viagem ao céu” foi publicado no ano de 1933, logo após o lançamento de “Reinações de Narizinho” (1932), havendo uma continuidade entre as histórias perceptível através do personagem Visconde de Sabugosa.


Efetivamente, o sábio morrera no livro anterior, dele restando um toco que Emília cuidadosamente guardou em sua canastrinha. Desta vez, Tia Nastácia inova, ao refazer o Visconde com sabugo de milho vermelho. Por causa da cor ruiva do novo personagem, as crianças passam a chamá-lo de Doutor Livingstone, que foi um explorador britânico que se embrenhou pelo interior da África no século XIX.

 

A Viagem ao Céu se passa no mês de abril, quando o clima agradável da fazenda faz com que as crianças instituam o mês das “férias do lagarto”:

 

“Já que o mês de abril é o mais agradável de todos, escolheram-no para o grande ‘repouso anual’ – o mês inteiro sem fazer nada, parados, cochichando como lagarto ao sol! Sem fazer nada é um modo de dizer, pois que eles ficavam fazendo uma coisa agradabilíssima: vivendo! Só isso. Gozando o prazer de viver”.

 

Este clima de “férias de lagarto” se torna o momento perfeito para contemplar as estrelas e os planetas do céu, vistos com nitidez nas noites de ócio na Fazenda do Pica Pau Amarelo.

 

Após ouvir as explicações de Dona Benta sobre o nome e a origem das constelações estelares e sistemas planetários, as crianças se mobilizam para elas próprias se dirigirem ao espaço e conhecer estrelas, planetas e cometas pessoalmente.

 

Para isso, servem-se do pó de pirlimpimpim.

 

Bastava uma simples aspirada naquela poeira mágica para num instante se deslocarem para os cantos mais remotos do universo.

 

Da aventura participa até Tia Nastácia, que fora ludibriada pelas crianças, ao aspirar o pó de pirlimpimpim pensando se tratar de rapé. Assustada após sua viagem à Lua, resmunga os seus credos e faz o “pelo sinal” a todo instante.   

 

Da viagem participa também o Burro Falante, personagem que destoa por completo daquilo que se costuma pensar sobre burros. Chama as pessoas pelo nome completo, usa palavras difíceis, fala com gravidade e de maneira sentenciosa, ou seja, com a mesma solenidade com que o juiz profere uma sentença. Por isso é apelidado de Conselheiro pelas crianças.

 

Integram, por fim, a aventura a boneca Emília, sempre disposta a gazetear, dando frequentes sinais de bravura, como no Planeta Marte, onde se dispõe a observar de perto os marcianos e os seus “crocotós”; Pedrinho, que lidera o  grupo por ter ouvido com atenção as lições de astronomia de sua avó; Narizinho e o Visconde, convertido a Doutor Livingston.

 

O primeiro destino do grupo é a Lua, ou aquilo que as crianças convencionam chamar de Lua, após uma votação dos viajantes para se decidir aonde o pó mágico primeiro os havia levado.

 

Lá se deparam com São Jorge e o seu Dragão. O santo, que viveu em Capadócia nos tempos de Diocesano, é convocado pelo Rei da Líbia a salvar sua filha das garras do animal feroz. Posteriormente, é convertido ao cristianismo e por isso é morto e transformado em santo. Desde a sua morte, vive na Lua acompanhado do Dragão já velhinho e inofensivo, mas nem por isso menos assustador aos olhos de Tia Nastácia.

 

Da Lua, as crianças viajam para Marte onde conhece os marcianos, pequenos seres que são incapazes de ver, mas captam a realidade através de uma anteninha.

 

Extraterrestres mais evoluídos, os viajantes conhecerão no Planeta Saturno:

 

“- Mas continue. Como são os habitantes de Saturno?

- Ninguém sabe ao certo, mas os homens da ciência imaginam. Acham que devem ser criaturas tão diferentes de nós que nem podemos compreendê-las. Uns seres gelatinosos, transparentes, adiantadíssimos, com órgãos diferentes. Devem alimentar-se de fluidos e não de coisas líquidas ou sólidas, como nós. E terão muitos mais órgãos dos sentidos do que nós. Nós não passamos de coitadinhos. Só temos cinco sentidos. Cinco, imagine que pobreza! Eles lá devem ter dez, vinte, cem... Para saber as coisas, nós precisamos estudar. Eles vibram no ar “órgão da ciência” e já ficam sabendo”

 

As reinações (palavra que significa bagunça) das crianças chamam atenção dos mais renomados astrônomos do mundo, que se surpreendem vendo de seus telescópios um burro viajar na calda de um cometa, um sabugo de milho vermelho girando como um satélite ao redor da Lua e manchas nos anéis de Saturno deixadas pelas crianças, após lá brincarem de escorregar.

 

Os sábios montam uma comitiva ao Sítio de Dona Benta para indicar que as perturbações do sistema planetário decorrem das estripulias de dois meninos, uma boneca, um burro e um sabugo de cartola, todos pairando no éter do espaço.

 

Após o retorno das crianças ao Sítio, o confronto entre o mundo da imaginação das crianças e o mundo da realidade dos adultos se vê instaurado: o chefe da comissão de cientista não acredita na história contada pelas crianças, gerando a revolta da boneca Emília, que diz:

 

- Estou vendo que os senhores marmanjos não acreditam em nossa história. Estamos pagos. Nós também não acreditamos nas suas “hipóteses” muito sem jeito...

 

Os astrônomos não esperavam por aquela resposta, de modo que abriram de novo as bocas. Uma boneca que falava quem nem gente e sabia o que era hipótese! Maior assombro era impossível. Mas em vez de apenas assombrar-se, só sem mais nada, o maioral caiu na asneira de sorrir de novo, com superioridade ariana e de dizer, como que ofendido:

 

- Bravos! Com que então não acredita em nossas hipóteses? Muito bem. E que vem a ser hipótese, senhora bonequinha impertinente?

Emília pôs as mãos na cintura.

 

- Hipótese são as petas que os senhores nos pregam quando não sabem a verdadeira explicação duma coisa e querem esconder a ignorância, está ouvindo, seu cara de coruja? Pouco se me dá que os senhores acreditem ou não que estivemos ou não estivemos na Via Láctea. Estivemos e acabou-se. E estivemos também em Marte e Saturno, e até brincamos de escorregar naqueles anéis. E na Lua conversamos com um santo muito bom, que ouvia tudo quanto dizíamos sem esses sorrisos que estamos vendo nessas reverendíssimas caras cheias de crocotós dos ruins...”

 

Esta clivagem entre o mundo da realidade e da fantasia é representativo de toda a literatura infantil de Monteiro Lobato. A forma lúdica com que as crianças encaram o mundo é frequentemente tratada pelos adultos como algo sem importância, especialmente para aqueles que já se esqueceram das suas próprias fantasias infantis. Em se tratando do fantástico, há o acréscimo de que, na opinião do escritor de Taubaté, este mundo da fantasia não deixa de ser realidade, já que efetivamente existe na imaginação de milhões e milhões de crianças.

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

O Picapau Amarelo – Monteiro Lobato

 O Picapau Amarelo – Monteiro Lobato




 

Resenha Livro - O Picapau Amarelo – Monteiro Lobato – Ed. Biblioteca Azul.

 

“O Sítio de Dona Beta foi se tornando famoso tanto no Mundo da Verdade como no chamado Mundo de Mentira. O Mundo de Mentira, ou Mundo da Fábula, é como a gente grande costuma chamar a terra e as coisas do País das Maravilhas, lá onde moram os anões e os gigantes, as fadas e os sacis, os piratas como o Capitão Gancho e os anjinhos como Flor das Alturas. Mas o Mundo da Fábula não é realmente nenhum mundo de mentira, pois o que existe na imaginação de milhões e milhões de crianças é tão real como as páginas deste livro. O que se dá é que as crianças logo se transformam em gente grande e fingem não mais acreditar no que acreditavam”.  

 

José Bento Renato Monteiro Lobato desde criança desenvolveu a atividade literária. Nascido na cidade de Taubaté/SP em 18 de abril de 1882, ainda na escola se dedicava a escrever histórias e criar jornais.

 

É provável que seu trabalho mais conhecido do público tenha sido o da literatura infantil, a criação da Turma do Sítio do Pica Pau Amarelo, da boneca Emília, dos primos Narizinho e Pedrinho, do Visconde de Sabugosa, do porquinho Marquês de Rabicó, da Dona Benta e da Tia Nastácia.

 

Além da literatura infantil, Monteiro Lobato produziu artigos, críticas literárias, crônicas e um único romance, denominado o “Presidente Negro”, publicado em 1926.

 

Também teve participação pessoal em movimentos políticos nacionalistas, em especial na defesa na nacionalização do Petróleo – neste caso foi pioneiro, tendo sido preso em março de 1941 durante o Estado Novo por ter enviado carta a Getúlio Vargas e ao general Góis Monteiro, chamando atenção para  “displicência do sr. Presidente da República, em face da questão do petróleo no Brasil, permitindo que o Conselho Nacional do Petróleo retarde a criação da grande indústria petroleira em nosso país, para servir, única e exclusivamente, os interesses do truste Standard-Royal Dutch”.

 

A literatura lobatiana dedicada ao público infantil surge após o escritor de Taubaté já ter sido consagrado como crítico de arte, jornalista e autor de livros para o público adulto. Seu primeiro livro de contos, denominado Urupês (1918), foi ao mesmo tempo bem recebido pela crítica e por um público extenso: foi um sucesso de vendas. Certamente, este escritor foi dos poucos que souberam articular beleza estética na sua descrição do interior paulista e do caipira e uma simplicidade de linguagem que fizeram de seus livros também conhecidos do grande público.

 

O Picapau Amarelo foi publicado no ano de 1939, tendo como subtítulo “O Sítio de Dona Benta, um mundo de verdade de mentira”.

 

Certo dia, Dona Benta recebe uma carta do Pequeno Polegar, que lhe diz da intenção dos habitantes do Mundo da Fábula de se mudarem para o Sítio do Picapau Amarelo.

 

Do Mundo das Maravilhas vêm os personagens que universalmente marcam o imaginário infantil: Peter Pan e o Capitão Gancho; Branca de Neve e os Sete Anões; a Gata Borralheira; Aladim e a famosa Alice do País das Maravilhas. Ao grupo se juntam outros personagens que expressam o aspecto didático e educativo dos livros infantis de Monteiro Lobato. Da mudança participam Dom Quixote, e seu escuteiro Sancho, e personagens da mitologia grega: a Medusa com os seus cabelos de cobra; os Centauros, meio homens e meios cavalos; as sereias; os sátiros pés de bode e as ninfas.

 

E como recepcionar todas estas pessoas no Sítio?

 

Dona Benta decide comprar as fazendas de seus vizinhos, não sem antes contar com a esperteza de Emília que, junto com o Visconde de Sabugosa, ludibriam os proprietários gananciosos (que queriam vender os terrenos a preços exorbitantes) dizendo que Dona Benta faria a maior criação de feras, com duzentos rinocerontes ferocíssimos, cento e cinquenta tigres de bengala, conquanto todos sabem que animais caseiros como burros, bois e cavalos, têm verdadeiro horror pelas grandes feras. O medo da desvalorização dos terrenos faz os vizinhos gananciosos deixarem de querer vender suas propriedades a preços injustos.

 

Para não transformar o Sítio do Pica Pau Amarelo num verdadeiro hospício, fica combinado que as terras das fábulas ficariam nestes terrenos recém adquiridos, com a divisão entre os lotes com cercas de seis fios de arame farpado e uma porteira com cadeado, cuja chave ficaria aos cuidados do sapiente Visconde de Sabugosa. E, de resto, Quindim, o rinoceronte, ficaria responsável por fazer a guarda do Sítio, indo e voltando em torno da linha divisória, fazendo guarda com o seu ameaçador chifre.

 

Esta oposição entre o mundo real e o mundo da fantasia, como é de se esperar, é logo rompida. A todo momento, ocorre, “causos” no mundo da Fantasia que exigem a atuação de Pedrinho, Emília e sua turma.

 

A começar por Dom Quixote, que de tanto procurar moinhos de vento, esquece de trazer uma casa e pede hospedagem no sítio. Sancho, seu escudeiro e conhecido pelo amor pela comida, vai se deliciando com os bolos e frangos de Tia Nastácia e acaba com os mantimentos da dispensa: gula igual ao do escudeiro, só a do porquinho Marquês de Rabicó.

 

“Nesse momento Tia Nastácia entrou com a bandeja de café com mistura – bolinhos, torradas, pipocas. Dom Quixote tomou três xicaras de café, comeu doze bolinhos, seis torradas e uma peneirada de pipocas. Estava verdadeiramente faminto, o coitado. Aquilo fez-lhe bem, porque logo em seguida cruzou as pernas, abriu os braços e, com as mãos seguradas nos punhos da rede, disse, correndo os olhos pela varanda:

- Não há dúvida, não há dúvida. A vidinha aqui é bem boa...”

 

O desfazimento da linha demarcatória entre o mundo da realidade e o mundo da fantasia, na história infantil, é representativo do mundo imaginativo e lúdico das crianças. E, além disso, possibilita encanto de  adultos que teimam em continuar acreditando no mundo imaginário ou ao menos se sensibilizam com suas lembranças de criança.

 

Logo no início do livro, Lobato chama atenção para o fato de que os crescidos também têm as suas “fantasias”. Enquanto dizem para as crianças que o mundo de fábulas não existe e que só acreditam no que é possível de se ver com os olhos, ao mesmo tempo acreditam em abstrações como “Justiça”, “Civilização” e “Bondade”. Por que não, então, também não acreditar em sereias, em cavalos voadores, em sacis pererês e personagens como Branca de Neve e os Sete Anões?

 

As fantasias do mundo real e do mundo fantástico, de início cindidas pela linha demarcatória, pelo cadeado com chaves sob os cuidados do Sábio Visconde e com o policiamento de Quindim, vão se fundindo numa unidade, em que as aventuras e histórias de crianças, princesas e entes mitológicos comovem crianças e adultos.

sábado, 12 de novembro de 2022

“Oscarina” – Marques Rebelo

 “Oscarina” – Marques Rebelo




 

Resenha Livro - “Oscarina” – Marques Rebelo – Ed. José Olympio

 

“Na ficção de Marques Rebelo cumpre-se uma promessa que o Modernismo de 22 apenas começara a realizar: a da prosa urbana moderna. Com a diferença notável de que o escritor carioca não rompeu os liames com a tradição do nosso melhor realismo citadino. A sua obra insere-se, pelos temas e por alguns traços de estilo, na linha de Manuel Antônio de Almeida (de quem escreveu uma viva biografia), de Machado de Assis e Lima Barreto. Com eles, o autor de Oscarina aprendeu a manejar os processos difíceis do distanciamento, o que lhe permitirá contar os seus casos da infância e do cotidiano com uma objetividade tal que a ironia e a pena difusas não o arrastariam ao transbordo romântico.” (BOSI, Alfredo.)

 

Marques Rebelo (1907/1973) é o pseudônimo do escritor carioca Eddy Dias da Cruz. Nasceu no bairro de Vila Isabel, no subúrbio do Rio de Janeiro, mudando-se ainda criança para Barbacena/MG, onde fez o curso primário.

 

Terminado o preparatório, matriculou-se na Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro, sem, contudo, concluir o curso, partindo para o trabalho no comércio.

 

Os seus romances e contos mais importantes foram escritos entre 1930/1940, tendo sido eleito, em 1964, para a Academia Brasileira de Letras.

 

“Oscarina” é o seu primeiro livro, publicado no ano de 1931 e saudado positivamente pela crítica.

 

Trata-se de um livro de contos, cuja maior ênfase é a da descrição do mundo suburbano do Rio do Janeiro do início do século XX: da realidade de donas de casa, trabalhadores de empregos modestos, pequenos funcionários públicos, professoras, estudantes, moças solteiras atrás de casamento, crianças brincando na rua. Ainda que seja visível a modernização da cidade com seus bondes, jornais e comércio, o Rio de Janeiro, e especialmente o subúrbio, ainda tinhas aspectos rurais, parecidos com as cidades do interior. A revolução industrial e o frenesi imobiliário atacaram diretamente a orla das praias e a região central, mas só lentamente foram alterando a fisionomia da zona dos morros. Consta que Rebelo fora um nostálgico deste Rio de Janeiro ainda não fulminado pela modernidade, da qual ele retrata conforme suas lembranças da infância.

 

Ainda que tenha tido contato com modernistas de São Paulo e Minas Gerais, Rebelo parecer seguir uma trilha à parte do movimento de 1922. Há, antes, uma linha de continuidade de nosso autor e escritores como Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto. Poder-se-ia, todavia, situá-lo como escritor mais próximo da chamada Geração de 1930 da 2ª Fase do Modernismo Brasileiro. De uma certa forma, as descrições que Graciliano Ramos fazia dos elementos médios citadinos de Alagoas ou que Jorge Amado fazia do povo baiano  é parecida com as histórias do subúrbio carioca de Marques Rebelo. Ambas superam uma descrição estereotipada dos tipos populares da cidade.

 

No caso específico de Rabelo, os personagens são tratados de forma intimista, ainda que com uma certa objetividade e equidistância, segundo as quais o nosso escritor poderia ser caracterizado como um neorealista.

 

A reprodução da linguagem popular e a clareza da exposição se combinam com sondagens psicológicas dos personagens, cujos retratos já remetem à superação da forma com que a literatura do século XIX tratava os tipos do povo. Dentro da nova perspectiva modernista, o povo é retratado captando-se suas complexidades e contradições, nem sempre estando adaptados ao meio social em que estão inseridos. Há, aqui, uma superação da forma como os escritores naturalista tratavam os elementos oriundos do povo, qual seja, de uma forma ainda superficial, previsível,   às vezes caricatural e eventualmente pouco distinguindo as pessoais (e suas individualidades) e o meio social. Em livros como “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo, as personagens do subúrbio parecem formar uma unidade. Já no Rio de Janeiro de Rabelo, se verifica certamente uma harmonia entre as personagens e o meio carioca, com o acréscimo de retratar as cogitações íntimas de personagens, que aparecem mais humanos, ao se revelar  mais nitidamente suas contradições. E, por esta razão, é uma literatura mais realista.