“História do Brasil – Volume I” – Robert Southey
Resenha Livro - “História do Brasil – Volume I” – Robert Southey –
Edições do Senado Federal – Volume 133-A.
Robert Southey (1774 – 1943) foi historiador e poeta inglês, ligado ao
movimento literário romântico britânico.
Entre 1810 e 1819 o escritor lançou a sua “História do Brasil” em três volumes,
que contêm cerca de 2000 páginas e que tratam dos primeiros contatos dos colonizadores
na costa do Brasil (Séc. XV) até a chegada da Família Real Portuguesa à América,
no ano de 1808.
Trata-se do primeiro livro de História do Brasil escrito de acordo com
formas e técnicas modernas de pesquisa, ou seja, conforme análise de
documentação primária, cartas e crônicas de viagem, obtidas especialmente entre
1800 e 1801, quando Southy esteve viajando em Portugal.
Para se ter uma ideia do pioneirismo do escritor britânico e sua
importância para a cultura nacional, basta dizer que a obra de Varnhagen, considerada
quase consensualmente como o ponto de partida da historiografia brasileira,
data de 1854, quando do lançamento de “História Geral do Brasil”. Quase cinco décadas
após o lançamento da História do Brasil de Southey, portanto.
A importância da intervenção britânica no desenvolvimento da história do
Brasil ao longo do século XIX explica em certa medida o interesse dos ingleses
no estudo da evolução histórica brasileira, nossa trajetória, nossas
instituições políticas e nossa estrutura econômica. Foi no contexto das Guerras
Napoleônicas que uma esquadra militar britânica viabilizou a transferência da
sede do Império Português para o Rio de Janeiro. O fim do exclusivismo
comercial, com a abertura dos portos no ano de 1808, favoreceu particularmente
a Inglaterra, que passou a ser a principal credora e fiadora dos negócios
portugueses (e brasileiros) até a nossa independência em 1822. E após a
independência política, pouca dúvida há sobre a dependência econômica brasileira
em relação aos ingleses, bem como a intervenção britânica em torno de questões
internas brasileiras, como as medidas para compelir o fim do tráfico de
escravos, com objeto de viabilizar um mercado de consumo para produtos
britânicos. É neste contexto de maior participação inglesa nas questões
brasileiras que surge a obra em análise.
Para escrever a sua história, Southey contava com um acervo de 14.000
livros e documentos relacionados à Portugal, Espanha e a América
luso-hispânica. Sua pretensão seria, na verdade, compor uma grande História de
Portugal, envolvendo volumes específicos tratando das colônias em Ásia, África
e América. Nunca chegou a concluir a tarefa, mas legou aos brasileiros a sua
primeira História escrita de acordo com métodos de pesquisa modernos.
De sua própria obra, diz o historiador:
“Seria faltar à sinceridade que vos devo, esconder que minha obra,
daqui a longos tempos, se encontrará entre as que não são destinadas a perecer;
que me assegurará ser lembrado em outros países que não o meu; que será lida no
coração da América do Sul e transmitirá aos brasileiros, quando eles se tiverem
tornado uma nação poderosa, muito da sua história que de outra forma teria
desaparecido ficando para eles o que é para a Europa a obra de Heródoto”.
Não deixa de ser curioso ler uma história rica de detalhes acerca das condições
de vida dos primeiros colonizadores, confrontados com tribos indígenas
antropofágicas, suas guerras e suas alianças militares, seus hábitos
alimentares e suas crenças religiosas, tendo em vista se tratar de um escritor
que nunca colocou os seus pés no Brasil.
Em todo o caso, pelo fato de pioneiramente ter tido acesso a uma série de
fontes primárias, como as crônicas dos
escrivãos das primeiras expedições da América, Southey, um historiador romântico,
nos apresenta uma história profundamente realista. Ou, ao menos, mais realista do
que muitos livros escritos por pesquisadores contemporâneos, que, sob o pretexto
de se “criticar” tais fontes primárias como parte de uma história “oficial”,
criam em contrapartida uma história ideológica, cheia de maniqueísmos, baseada
em preconceitos que dizem ser a civilização brasileira o fruto do estupro e da violência
pura e simples de brancos contra pretos e índios.
Ao se confrontar estas narrativas mais recentes com os documentos
primários, cartas e crônicas do século XV e XVI, verificamos se tratar o
empreendimento colonial de situação muito mais complexa e contraditória do que
a mera dominação de um povo pelo outro. A superioridade militar dos europeus
pelo uso da pólvora não raro era suplantada pelo conhecimento geográfico e melhor
adaptação dos índios às condições locais, incluindo alimentação, clima e
recursos da natureza para subsistência e cuidados com saúde. Houve igualmente
momentos em que conflitos foram substituídos por alianças, sem prejuízo do
desenvolvimento de um comércio que era promovido mesmo em tempos de guerra. Não se tratou, obviamente, de um “genocídio
indígena” perpetrado por europeus imbuídos de má fé, mas de um longo processo histórico
de assimilação, diálogo e conflito, tendo como eixo a intervenção de elementos
mediadores das duas civilizações representados na figuras de degredados e
náufragos que se alinhavam às tribos locais e delas aprendia a língua e o
costume para posterior auxílio dos colonizadores. Foi de particular destaque no
empreendimento colonial não o genocídio mas a miscigenação e a conformação de um novo povo
mameluco, que andava descalço, falava tupi, dormia em redes e se configurada
como ponto de partido daquilo que hoje se entende como povo brasileiro.
OS PRIMEIROS CONTATOS
“1502 - Belo era o país e abundante de quanto podia desejar o coração
humano: a brilhante plumagem das aves deleitava os olhos dos europeus; exalavam
as árvores inexprimíveis fragrâncias, destilando todas as virtudes destas
plantas, nada impediria o homem de gozar de vigorosa saúde até à extrema
velhice. Se o paraíso terrestre existe em algum lugar, não podia ser longe dali”
O ponto de partida desta História do Brasil dá-se através da descrição
dos primeiros contatos da costa do Brasil na expedição de Yanez Pizon, que já acompanhara
Colombo na sua primeira viagem à América, como Comandante e Capitão. Desta
viagem chegaram-nos os relatos das primeiras entrevistas de europeus com os
indígenas, na região de Cabrália, ao sul do estado da Bahia.
À meia légua da praia, os viajantes europeus puderam observar cerca de
vinte indígenas que se haviam reunidos armados de arco e flecha, apercebidos
para a defesa, mas sem intenção de procederem como inimigos, salvo vendo-se em
perigo.
Efetuou-se amigável troca de presentes: os europeus ofereceram uma carapuça
vermelha, um capuz de linho e um chapéu preto recebendo a seu turno dois
adornos de cabeça feitos de pena, e um enorme fio de continhas, que pareciam pérolas
de inferior qualidade. Os europeus, por acharem que estavam nas índias do
oriente, tentaram se comunicar de acordo com a língua daquelas paragens, razão
pela qual não foram compreendidos.
Desde os fins do século XIV, os portugueses lançavam-se do expediente de
remeter degredados para a costa da África, Ásia e, posteriormente, América, com
a finalidade de viabilizar o empreendimento colonial. Lançados à praia, estes
degredados, quando tinham a sorte de sobreviver, aprendiam a língua dos nativos
e conheciam a geografia local, servindo posteriormente como guias em favor de
futuras embarcações.
Decisivo foi a intervenção destes pioneiros: não seria possível à Martim
Afonso de Souza viabilizar a fundação da colônia de São Vicente sem os auxílios
de João Ramalho, um degredado português que em terras paulistas casou-se com a
filha do chefe indígena Tibiriçá e tornou-se ele próprio uma das lideranças tupis.
Dos muitos filhos mestiços de João Ramalho e a índia Bartira conformou-se as primeiras
populações do futuro Estado de São Paulo.
Papel semelhante foi desempenhado na Bahia pelo Caramuru ou Diogo Álvares
Correia. Consta que era um náufrago de embarcação francesa que se envolveu com tribos
tupinambás ao ponto de se tornar um chefe indígena, tal qual João Ramalho.
Conhecedor dos costumes, da língua e da geografia local, facilitou o contato
entre os primeiros missionários e colonizadores europeus e os povos indígenas
da Bahia.
“O primeiro, que na Bahia se estabeleceu, foi Diogo Álvares, natural
de Vianna, mancebo e fidalgo, que com o espírito empreendedor, que então caracterizava
os seus conterrâneos, embarcara, buscando fortuna em terras estrangeiras.
Naufragara ele nos baixos do banco da Bahia, que os naturais chamam Mairagiqui.
Parte da gente se perdera, e o resto só escapara àquela morte, para sofrer outra,
mais horrível: os selvagens os comeram. Viu Diogo que outra esperança não lhe
restava se salvar a vida, senão tornando-se para estes selvagens o mais útil
que pudesse. Trabalhou pois em salvar coisas do casco naufragado, e com elas
lhes granjeou as boas graças. Entre outros objetos teve a felicidade de trazer
para a terra alguns barris de pólvora e um mosquete, que ele na primeira
ocasião que teve, pôs em estado de servir, depois que seus senhores voltaram à
aldeia, e um dia, que se lhe ofereceu favorável oportunidade, na presença deles
matou uma ave. Mulheres e crianças clamariam: Caramuru, Caramuru! que seria
dizer homem de fogo (...)”.
Por óbvio, as tribos indígenas variavam entre alguma hospitalidade e a mais
decidida oposição violenta ao empreendimento colonial europeu. A conquista do
novo território encontrava a oposição de tribos ciosas de manter íntegro o seu
território e suas fontes de subsistência, especialmente quando os europeus
demandavam por abastecimento de água e alimentos, se não por meio do escambo,
por intermédio da violência e destruição.
A antropofagia é tema reiterado nos documentos, variando a forma como era
praticada de tribo para tribo. Quando da chegada dos Jesuítas, junto com o
primeiro governador geral o Brasil Thomé de Souza (1549), puderam os
missionários apurarem que os índios não se opunham tanto a mudar suas
convicções religiosas pagãs tanto quanto os hábitos de comer gente. Em geral, a
antropofagia era associada a rituais festivos, associados à guerra entre as
tribos e era promovida dentro de um espírito de vingança:
“Tinham os selvagens aprendido a olhar a carne humana como a mais
preciosa das iguarias. Por mais delicioso porém que se reputassem estes
banquetes, o maior sabor vinha-lhes sempre da vingança satisfeita; era este
sentimento, e o pundonor a ele ligado, que os jesuítas acharam mais difícil de
extirpar. Da vingança tinham os indígenas brasileiros feito sua paixão predominante,
exercendo-a pelo mais mesquinho motivo, para com os que davam pasti e força a
uma propensão já por si assaz forte. Comiam o réptil que os molestava, não
brincando, como o macaco, mas confessadamente pelo gosto de vingança. Se um
dava uma topada em uma pedra, enfurecia-se contra ela, e mordia-lhe como um
cão; se uma seta o vinha ferir, arrancava-a e trocava-lhe a haste”.
Outros aspectos da vida dos índios são mencionados de forma pormenorizada
no livro: os hábitos alimentares predominando a mandioca dentre os índios da
américa portuguesa e o milho dentro os da américa espanhola; a divisão sexual
do trabalho e o papel das mulheres, em geral relacionados ao cultivo da terra e
cuidados domésticos enquanto a caça, a pesca e a guerra eram atividades
masculinas; os mitos e as crenças religiosas, que eram muito frequentemente
relacionadas a superstições que justificavam práticas bárbaras, como o
assassinato de parentes de caciques e pessoas importantes, sob o entendimento
de que estes entes fariam companhia ao falecido na dimensão dos mortos.
Neste primeiro Volume da História do Brasil, Robert Southey trata dos
primeiros contatos dos europeus com a costa brasileira até a expulsão dos
holandeses de Pernambuco em meados do Século XVII.
Trataremos numa próxima resenha dos demais volumes da obra do historiador
britânico.
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