segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

“Vidas Secas” – Graciliano Ramos


“Vidas Secas” – Graciliano Ramos



Resenha Livro - “Vidas Secas” – Graciliano Ramos – Editora Record

Já foi dito que os limites do mundo dos homens são os limites de sua linguagem. Talvez esta afirmativa traduza um dos aspectos que mais tem sido destacado neste romance do escritor alagoano Graciliano Ramos.

Muito já foi dito sobre a forma como as brutais condições da seca e da opressão sócio-econômicas incidindo sobre os retirantes nordestinos do romance vão implicar numa espécie de animalização das pessoas. De fato, a comunicação entre Fabiano, sua esposa Sinhá Vitória e as duas crianças dá-se por gruídos, interjeições. Às vezes os personagens ficam até impacientes, revelando uma ansiedade ante a incapacidade de comunicar.

Por outro lado, a cachorra Baleia que apenas se comunica com latidos, com o balanço de seu rabo e com mordidas, parece, sob a descrição de um narrador onisciente, um ser complexo, eivado de sentimentos humanos como compaixão e senso de responsabilidade.

Como os seres humanos não falam, o papagaio nada fala, pois só sabe imitar.

A linguagem é a consciência imediata do homem: a consciência exsurge desde a descrição do narrador, ainda que os personagens estejam incapacitados de falar pelo desconhecimento da palavra.

A grande vantagem aqui é que Graciliano consegue dar voz e atribuir estatuto humano, com as sua complexidades, aos personagens da mais baixa escala social do Brasil: miseráveis trabalhadores camponeses, retirantes da seca. Vai além de uma literatura pré-moderna, por exemplo, de origem naturalista em que estes elementos do povo surgem pela primeira vez: contudo, surgem de um modo superficial, paisagístico, ainda muito condicionado pelo meio geográfico, social e pelas paixões naturais. É o caso dos tipos populares do “Cortiço” de Aluísio de Azevedo (1890), que acabam descambando, em sua superficialidade, para a caricatura.

Sobre o problema da linguagem e da reificação, vejamos o que diz o crítico Hermenegildo Bastos:

“A linguagem é, como se tem observado, um problema em “Vidas Secas”, a linguagem como a consciência imediata do homem. Os personagens de “Vidas Secas”, em sua existência quase “natural”, ganham a sua sobrevivência na luta direta com os elementos naturais, num estágio dir-se-ia primitivo das forças produtivas. Apesar disso, recebem o seu soldo, fazem parte da economia capitalista de que a fazenda, o seu proprietário, os outros trabalhadores, os habitantes da vila – dentre eles, o soldado amarelo, o dono da venda, o fiscal etc. – integram-se ao processo de exploração do capitalismo em sua vertente colonial. Próximos à natureza, mas ao mesmo tempo dela afastados por uma relação de trabalho alienado, os personagens de “Vidas Secas” parecem ser símbolos do ser social em seu processo de evolução histórica”.

Antecedentes

Graciliano Ramos nasceu em 27 de outubro de 1892 na pequena cidade de Quebrangulo, em Alagoas. Seu pai fora um pequeno comerciante numa vila no interior do nordeste. Desde pequeno, Graciliano Ramos foi tendo contato na fazenda com  personagens que seriam suscitados posteriormente nos seus romances: dizia conservar lembrança de Amaro Vaqueiro, Rosenda Lavadeira, padre José Ignácio, cabo José da Luz, entre outros.

Aos 18 anos Graciliano Ramos vai residir em Palmeira dos Índios-AL, onde cuida da casa comercial do seu pai. A vida de comerciante não o atrai, começando a atuar no jornalismo. É eleito prefeito de Palmeira dos Índios, cargo que renuncia em 1930, dois anos após a posse.

Em 1936 Graciliano Ramos é preso, sob a falsa acusação de ser comunista: da experiência na prisão no nordeste e posteriormente no Rio de Janeiro saiu o livro “Memória do Cárcere[1]”. Na cadeia, Graciliano Ramos releva alguns trejeitos de sua personalidade: consta que fumava muito, sofria muito com a falta do cigarro e da cachaça quando esteve na prisão. Era reservado mas se solidarizava e confraternizava com os demais presos.

Apenas no ano de 1945, por convite de Luís Carlos Prestes, Graciliano Ramos se filiaria ao Partido Comunista do Brasil. Como se sabe, talvez o comunismo nunca teve tanto prestígio no mundo como no período do pós II Guerra Mundial, quando o exército vermelho destruiu militarmente o nazi-fascismo, com todas as implicações que este fato teve para os destinos da humanidade. Ainda assim, no Brasil, o PCB já seria colocado na ilegalidade no ano de 1946, ainda que tivesse participação direta na constituinte no governo Dutra.

“Vidas Secas” foi publicado no ano de 1938. O livro descreve cenas de uma família de retirantes que enfrentam a seca, refugiando-se finalmente numa fazenda semiabandonada, prestando trabalho ao patrão proprietário que engambela o trabalhador na remuneração com cálculos indecifráveis, juros que mascaravam a roubalheira do proprietário. Uma nota interessante é que o proprietário reside na cidade e não frequenta sua fazenda, em abandono. Diferente dos tempos coloniais, o Brasil mudava com suas cidades, seus bacharéis, seus soldados amarelos.

Neste romance não tem tanta relevância a história, os fatos, o enredo – a trajetória dos retirantes parece cíclica como as mudanças do tempo, da seca, da fuga a melhores paragens, do encontro sempre provisório com novas terras, nos tempos de chuva, local onde a família pudesse temporariamente recolher os seus cacos, alimentar-se de preás, raízes de imbu e sementes, e partir novamente, ante um novo período das secas. Da nova seca, uma nova fuga.  

As Palavras

A condição humana  em “Vidas Secas” embaralha-se com a condição animal. A cachorra baleia apenas se comunica latindo, movimentando o seu corpo. Mas tem sensações complexas. A baleia tem sonhos, delírios com muitos preás, com os quais poderia alimentar a si e a família. Eventualmente, sente e sofre a carícia excessiva, sem reclamar, para não magoar seus donos. Olha com desaprovação as brincadeiras das crianças, temendo que se machuquem, como uma mãe que cuida.

“Sentindo a deslocação do ar e crepitação dos gravetos, Baleia despertou, retirou-se prudentemente, receosa de sapecar o pelo, e ficou observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com um movimento de cauda aquele fenômeno e desejou expressar a sua admiração à dona. Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras, imitando gente. Mas sinhá Vitória não queria saber de elogios.
- Arreda!”

Seria uma simplicação, contudo, estabelecer que na história a cachorra se humaniza e os seres humanos se brutalizam ao ponto de serem animais. De fato, as possibilidades de comunicação são limitadas diante dos próprios limites da linguagem – neste aspecto a ironia de um papagaio que não fala já aparece no começo do livro.

Contudo, o efeito de um narrador onisciente que lança luz às cogitações íntimas de cada personagem revela as complexidades da alma. Da cachorra Baleia, de Fabiano, de Sinhá Vitória e das duas crianças.

O que ocorre é que o não domínio da palavra implica num não domínio do mundo: é o governo, as autoridades e o patrão proprietário quem domina a palavra, quem conhece os juros e a matemática que rouba o trabalho de Fabiano, quem define o que pode ou não pode ser dito, sob pena de prisão, como no evento envolvendo o Soldado Amarelo e Fabiano.

A palavra aqui é poder.    

A cachorra baleia sonha com ossos e preás. Sinhá Vitória sonha não mais dormir numa cama de varas de pau, mas numa cama de couro. Já os sonhos de Fabiano parecem uma espécie de nostalgia, uma volta ao passado quando estavam sob a dependência de seu Tomás da Bolandeira.

Este último, em que pese dominasse a palavra, também se viu vítima da seca, teve o mesmo destino trágico da família retirante. Parece ser a representação do intelectual burguês que submerge ao mundo popular, como os escritores modernistas do período, como Jorge Amado, Mário de Andrade, José Lins do Rego, entre outros.

A palavra agrega poder mas o conhecer a palavra ainda não é o suficiente para enfrentar e mudar aquela realidade.

Esta inadaptação da família à cidade, às autoridades, o problema da violência e da arbitrariedade do soldado amarelo e do governo revelam a forma contraditória e conflituosa com que a modernidade surge no Brasil no contexto da primeira republica. Este mundo em transição, com a decadência da opulência rural dos senhores de engenho que remetia ao período colonial: este descenso parece ser uma constante nos trabalhos do escritor alagoano.


[1] Publicado postumamente em 1953.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

“Cacau” – Jorge Amado


“Cacau” – Jorge Amado



Resenha Livro - “Cacau” – Jorge Amado – Editora Companhia das Letras

Como prefácio desta novela, Jorge Amado lança a seguinte nota:

“Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário?”

Redigido entre os anos de 1932-1933 e publicado no ano de 1934, “Cacau” é o segundo trabalho lançado pelo escritor Jorge Amado.

Foi escrito quando o romancista baiano tinha 20 anos de idade. O tom político da história dos trabalhadores do cacau no sul da Bahia certamente não implicará numa narrativa improvável, meramente panfletária: os personagens são reais e provavelmente oriundos da experiência pretérita do escritor, ele próprio, filho de um fazendeiro de cacau em Itabuna, sul da Bahia.

Como se sabe, Jorge Amado aderiu ao comunismo na juventude, tendo sido inclusive deputado federal pelo PCB em 1946, durante a curta existência legal do partido no Governo Dutra. Poderíamos suscitar uma primeira fase dos escritos do autor mais próximos da ideologia igualitária, como este “Cacau” e “Capitães de Areia” (1937).

Os antecedentes históricos da obra “Cacau” de alguma forma dão pistas quanto à orientação proletária e realista da narrativa. O livro foi publicado alguns anos após a reação constitucionalista paulista de 1932 e pouco antes da eclosão do levante comunista pejorativamente apelidado de “Intentona Comunista” em 1935.  

Talvez mais importante ainda, o “Cacau” foi escrito dois anos após a Revolução da Aliança Liberal de 1930, movimento que colocou abaixo as antigas elites oligárquicas que dirigiram o país desde a proclamação da republica, suscitando a emergência dos setores médios urbanos, das baixas patentes das forças armadas, dos funcionários públicos e seus amanuenses e da burguesia nacional, incluindo frações marginalizadas no contexto da Primeira República.

Dez anos antes da redação de “Cacau”, no ano de 1922, houve a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a Semana de Arte Moderna em São Paulo, esta última propugnando uma ruptura com as antecedentes escolas de arte e a operação antropofágica de se suscitar uma arte verdadeiramente nacional, apenas assimilando as ideias exógenas e não as copiando.  

A busca da especificidade nacional irá ser uma preocupação de toda uma geração de artistas e intelectuais do período. Jorge Amado e seu “Cacau” se situa num mesmo contexto de pensadores como Gilberto Freire, Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Mário de Andrade e Graça Aranha: a busca da especificidade brasileira reside nas nossas origens, no nossa passado desde a colônia, na confluência das raças portuguesa, africana e indígena, no sentidos da colonização que informam contradições do presente e sinalizam a necessidade de mudanças radicais para o futuro. Do marxismo revolucionário ao fascismo integralista.  

Evidentemente, se o propósito de buscar a especificidade nacional no passado uniam estes pensadores, o meio ou se quisermos a metodologia, os pressupostos teóricos são distintos, às vezes antagônicos. Sérgio Buarque de Holanda segue uma orientação culturalista e weberiana. Gilberto Freire segue a orientação antropológica, influenciado pelos estudos de Franz Boas que levou a cabo em sua estada pelos EUA. Caio Prado Júnior e Jorge Amado seguem o materialismo histórico e dialético, dando menos ênfase às acomodações sociais  observadas nas análises do autor de “Casa Grande e Senzala”, e mas no conflito e na luta de classes.

Por sinal, a luta de classes é um aspecto que informa toda a narrativa de “Cacau”, sempre desde um ponto de vista poético e às vezes mesmo heroico, ainda que sem cair numa narrativa improvável.

É o caso da relação entre o trabalhador braçal José Cordeiro e a filha do coronel Mariá. A moça se interessa pelo rapaz ante sua sagacidade, oferece a possibilidade de se casar com ela desde que “se torne patrão” e renuncie a sua condição de proletário. José Cordeiro apenas aceitaria a moça na condição de que ela, filha de coronel, renunciasse sua classe e vivesse uma vida modesta. José Cordeiro prefere evadir-se do amor conjugal do que trair a sua classe. O que pode parecer uma opção pouco provável será, contudo, razoável ao leitor atento às condições cotidianas da vida dos trabalhadores e, particularmente, ao ódio que acumulam em face dos que vivem e gozam uma vida de privilégios. Os ricos são gordos, arbitrários, covardes. O filho do coronel deflora impunemente as meninas do campo, que virarão prostitutas. A escravidão por dívida grassa nas fazendas de cacau. Não é possível, ante estas circunstâncias, qualquer conciliação ou compromissos entre as classes antagônicas.  

“Éramos muitos na imensidade da roça. As folhas secas dos cacaueiros tapetavam o chão, onde as cobras esquentavam sol após longas chuvas de junho. Os frutos amarelos pendiam das árvores como lâmpadas antigas. Maravilhosa mistura de cor que tornava tudo belo e irreal, menos o nosso trabalho estafante. Às sete horas já estávamos a derrubar os cocos de cacau, depois de haver afiado nossos facões jacaré, na porta da venda. Às cinco horas da manhã o gole de pinga e o prato de feijão nos davam forças para o trabalho do dia”. (Pg 49).

Para além das questões políticas, o livro retrata aspectos da vida cotidiana e da cultura do povo. Os meninos da fazenda se iniciam no sexo junto a cabras e ovelhas. Nas festas de São João, bebe-se a cachaça, come-se pratos de milho e os homens dirigem-se à Rua da Lama em busca das mulheres de vida fácil. O alimento cotidiano é a jaca extraída diretamente do pé, a carne seca e o feijão. Os trabalhadores odiavam e temiam o Coronel bem como o próprio Cacau – tinham uma consciência de classe embrionária, os trabalhadores sentiam na pele as contradições da exploração econômica sem saber traduzir sua angústia em palavras. O filho do coronel é estudante de Direito na Bahia enquanto a filha Mariá julga os trabalhadores da fazenda como “animais estúpidos”. 

Este comprometimento com a objetividade e o realismo na literatura de Jorge Amado possibilitam a criação efetiva de um “romance proletário” que não se limita a maniqueísmos superficiais, diversos do real e da história de nosso povo.

“Fumavam cigarrões de fumo picado, e bebiam grandes tragos de cachaça desde a mais tenra infância. Aprendiam a temer o coronel e o capataz, e assimilavam aquela mistura de amor e ódio dos pais pelo cacau. Rolavam com os porcos pela lama e tomavam a bênção a todo mundo. Possuíam uma ideia vaga de Deus, um ser assim como o coronel, que premiava os ricos e castigava os pobres. Cresciam cheios de superstições e de feridas. Sem religião, sentiam um inimigo no padre. Odiavam-no naturalmente, como odiavam as cobras venenosas e os filhos pequenos dos fazendeiros. Aos doze anos os trabalhadores os levavam a Pirangi, à casa de rameiras (prostitutas). Com a doença feia, viravam homens. Em vez de quinhentos réis, passavam a ganhar mil e quinhentos”. (Pg. 88)

 (*) Quadro de Cândido Portinari.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

“A Normalista” – Adolfo Caminha


“A Normalista” – Adolfo Caminha 




Resenha Livro - “A Normalista” – Adolfo Caminha – Iba Mendes Editor Digital – www.poeteiro.com

“A Normalista” foi o primeiro romance publicado pelo escritor naturalista cearense Adolfo Ferreira dos Santos Caminha (1867 – 1897). O livro data de 1893 – posteriormente, em 1895, seria publicado o “Bom Crioulo[1]”, obra pioneira na abordagem do amor homossexual numa época em que tal orientação era vista como uma espécie de perversão sexual.

Consta que o “Bom Crioulo” foi pessimamente recepcionado pela crítica da época, em que pese o fato de a obra ainda se situar nos marcos do naturalismo/realismo literário, escola comprometida com a descrição objetiva da realidade numa operação semelhante a de um cientista que observa fenômenos de maneira isenta.

Costuma-se situar o naturalismo literário como uma espécie de desdobramento ou mesmo radicalização da escola realista – se o comprometimento com a objetividade, a crítica social e o afastamento da idealização do amor, visto mais como uma convenção ou comunhão de interesses egoístas, já estão presentes nas obras de maturidade de Machado de Assis e Eça de Queirós, no naturalismo há o ingrediente adicional das escolas cientificistas em voga em fins do século XIX.

O evolucionismo, o darwinismo social e o determinismo irão engendrar, no naturalismo, histórias em que a trajetória das personagens estão de certa forma antecipadamente condicionadas pelo meio em que vivem, pela situação social, pelos instintos e impulsos sexuais e, em alguns casos, até pela raça.

Contudo, ao suscitarmos algumas datas chave, perceberemos que o naturalismo e o realismo embaralham-se, confundem-se na evolução da literatura brasileira do séc. XIX. O “Memórias Póstumas de Brás Cubas” de Machado de Assis, ponto de partido do realismo literário no país, data de 1881, mesmo ano do lançamento d’o Mulato, primeiro romance do maior expoente naturalista do Brasil, Aluísio Azevedo. “O Cortiço”, talvez o ponto máximo do escritor naturalista maranhense data de 1890, três anos antes da publicação do primeiro romance de Adolpho Caminha.

O fato é que o romance “A Normalista” foi publicado já num momento em que a escola literária do naturalismo já estava consolidada no Brasil – e de certa forma a obra antecipa mesmo temas da escola modernista, com sua ênfase na descrição dos tipos populares e uma ácida e irônica crítica da sociedade. Poderíamos sugerir uma comparação entre o romance do escritor cearense e obras como “Bruzundangas” e “O Triste Fim de Policarpo Quaresma” do romancista carioca Lima Barreto. Ambas fazem crítica social com humor e ironia de tipos populares urbanos. Mas há aqui uma diferença essencial: enquanto o cearense demonstrava um otimismo inequívoco com o advento da República, Lima Barreto ia em sentido diametralmente oposto, já que pudera vivenciar a frustração das expectativas de mudança com a mudança do regime político de 1889.

“A Normalista” conta a trajetória de Maria do Carmo, menina oriunda do sertão do Nordeste, órfã de pai e mãe e criada sob os cuidados do padrinho João da Mata e da madrinha D. Terezinha. O termo “normalista” refere-se às alunas da Escola Normal, espécie de magistério destinado exclusivamente às mulheres.

A crítica social dá o tom neste romance que tem como subtítulo “Cenas Do Ceará”. Tipos populares e urbanos de extratos mais baixos da sociedade como amanuenses, estudantes, professores, barbeiros, jornalistas e poetas boêmios são situados numa Fortaleza tida como atrasada, provinciana. Não bastasse a língua afiada do povo que não perdoa as supostas falhas morais da Normalista e seu namoro com o estudante Zuza, existiam mesmo pasquins e jornais que se incumbiam de disseminar a fofoca em tom de deboche. Todo este moralismo é também cínico e hipócrita já que a infidelidade conjugal (de ambos os lados) predomina em todo lugar. Consta que o tom ácido de Adolfo Caminha neste romance repercutia a sua experiência de vida, já que o escritor supostamente se relacionara com uma mulher que já fora casada e fora também vítima da chicana.

As passagens finais do romance são interessantes ao revelarem um certo otimismo com relação ao futuro republicano no país. Depois de uma gravidez indesejada, Maria do Carmo é remetida a uma casa de campo para ter a criança afastada do julgamento implacável da sociedade fortalezense. No campo, há uma espécie de revigoramento da protagonista, sugerindo uma interessante oposição entre a cidade e a aldeota:

“Provisoriamente instalada no seu bucólico e numeroso retiro da aldeota, longe de tudo que lhe arreliava o juízo, a um bom quilômetro das rabugices de D. Terezinha e do mal hálito de João da Mata, outra foi com efeito a vida de Maria do Carmo. O viver simples e sossegado de Mestre Cosme e da Tia Joaquina, o aspecto úmido da mata resplandecendo num fundo verde-claro e onde variados matizes da flora agreste punham efeitos surpreendentes, o bom leite puro e fresco bebido pela madrugada à porta do curral, e, à tardinha, quase ao anoitecer, o violão de mestre Cosme gemendo saudades de um país remoto e abençoado, a liberdade que se bebia ali na larga convivência da natureza, tudo isso robustecia-lhe o corpo e a alma, inoculando-lhe no sangue um conforto viril, ressuscitando lhe o quase extinto amor à vida, à alegria, à mocidade, e às apagadas reminiscências do bom tempo em que ela ainda inocente, em Campo Alegre, ia esperar o papai que voltava da vazante”.

Um nostálgico olhar de um passado perdido ante uma modernização sob as bases de uma monarquia católica engendraram uma sociedade falso-moralista, hipócrita e não solidária. A redenção num futuro republicano erigido sob as bases da ciência, sem com isso obscurecer as tradições de nosso povo. Esta parece ser a síntese sugerida na trajetória d’a Normalista.