quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

“Cacau” – Jorge Amado


“Cacau” – Jorge Amado



Resenha Livro - “Cacau” – Jorge Amado – Editora Companhia das Letras

Como prefácio desta novela, Jorge Amado lança a seguinte nota:

“Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário?”

Redigido entre os anos de 1932-1933 e publicado no ano de 1934, “Cacau” é o segundo trabalho lançado pelo escritor Jorge Amado.

Foi escrito quando o romancista baiano tinha 20 anos de idade. O tom político da história dos trabalhadores do cacau no sul da Bahia certamente não implicará numa narrativa improvável, meramente panfletária: os personagens são reais e provavelmente oriundos da experiência pretérita do escritor, ele próprio, filho de um fazendeiro de cacau em Itabuna, sul da Bahia.

Como se sabe, Jorge Amado aderiu ao comunismo na juventude, tendo sido inclusive deputado federal pelo PCB em 1946, durante a curta existência legal do partido no Governo Dutra. Poderíamos suscitar uma primeira fase dos escritos do autor mais próximos da ideologia igualitária, como este “Cacau” e “Capitães de Areia” (1937).

Os antecedentes históricos da obra “Cacau” de alguma forma dão pistas quanto à orientação proletária e realista da narrativa. O livro foi publicado alguns anos após a reação constitucionalista paulista de 1932 e pouco antes da eclosão do levante comunista pejorativamente apelidado de “Intentona Comunista” em 1935.  

Talvez mais importante ainda, o “Cacau” foi escrito dois anos após a Revolução da Aliança Liberal de 1930, movimento que colocou abaixo as antigas elites oligárquicas que dirigiram o país desde a proclamação da republica, suscitando a emergência dos setores médios urbanos, das baixas patentes das forças armadas, dos funcionários públicos e seus amanuenses e da burguesia nacional, incluindo frações marginalizadas no contexto da Primeira República.

Dez anos antes da redação de “Cacau”, no ano de 1922, houve a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a Semana de Arte Moderna em São Paulo, esta última propugnando uma ruptura com as antecedentes escolas de arte e a operação antropofágica de se suscitar uma arte verdadeiramente nacional, apenas assimilando as ideias exógenas e não as copiando.  

A busca da especificidade nacional irá ser uma preocupação de toda uma geração de artistas e intelectuais do período. Jorge Amado e seu “Cacau” se situa num mesmo contexto de pensadores como Gilberto Freire, Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Mário de Andrade e Graça Aranha: a busca da especificidade brasileira reside nas nossas origens, no nossa passado desde a colônia, na confluência das raças portuguesa, africana e indígena, no sentidos da colonização que informam contradições do presente e sinalizam a necessidade de mudanças radicais para o futuro. Do marxismo revolucionário ao fascismo integralista.  

Evidentemente, se o propósito de buscar a especificidade nacional no passado uniam estes pensadores, o meio ou se quisermos a metodologia, os pressupostos teóricos são distintos, às vezes antagônicos. Sérgio Buarque de Holanda segue uma orientação culturalista e weberiana. Gilberto Freire segue a orientação antropológica, influenciado pelos estudos de Franz Boas que levou a cabo em sua estada pelos EUA. Caio Prado Júnior e Jorge Amado seguem o materialismo histórico e dialético, dando menos ênfase às acomodações sociais  observadas nas análises do autor de “Casa Grande e Senzala”, e mas no conflito e na luta de classes.

Por sinal, a luta de classes é um aspecto que informa toda a narrativa de “Cacau”, sempre desde um ponto de vista poético e às vezes mesmo heroico, ainda que sem cair numa narrativa improvável.

É o caso da relação entre o trabalhador braçal José Cordeiro e a filha do coronel Mariá. A moça se interessa pelo rapaz ante sua sagacidade, oferece a possibilidade de se casar com ela desde que “se torne patrão” e renuncie a sua condição de proletário. José Cordeiro apenas aceitaria a moça na condição de que ela, filha de coronel, renunciasse sua classe e vivesse uma vida modesta. José Cordeiro prefere evadir-se do amor conjugal do que trair a sua classe. O que pode parecer uma opção pouco provável será, contudo, razoável ao leitor atento às condições cotidianas da vida dos trabalhadores e, particularmente, ao ódio que acumulam em face dos que vivem e gozam uma vida de privilégios. Os ricos são gordos, arbitrários, covardes. O filho do coronel deflora impunemente as meninas do campo, que virarão prostitutas. A escravidão por dívida grassa nas fazendas de cacau. Não é possível, ante estas circunstâncias, qualquer conciliação ou compromissos entre as classes antagônicas.  

“Éramos muitos na imensidade da roça. As folhas secas dos cacaueiros tapetavam o chão, onde as cobras esquentavam sol após longas chuvas de junho. Os frutos amarelos pendiam das árvores como lâmpadas antigas. Maravilhosa mistura de cor que tornava tudo belo e irreal, menos o nosso trabalho estafante. Às sete horas já estávamos a derrubar os cocos de cacau, depois de haver afiado nossos facões jacaré, na porta da venda. Às cinco horas da manhã o gole de pinga e o prato de feijão nos davam forças para o trabalho do dia”. (Pg 49).

Para além das questões políticas, o livro retrata aspectos da vida cotidiana e da cultura do povo. Os meninos da fazenda se iniciam no sexo junto a cabras e ovelhas. Nas festas de São João, bebe-se a cachaça, come-se pratos de milho e os homens dirigem-se à Rua da Lama em busca das mulheres de vida fácil. O alimento cotidiano é a jaca extraída diretamente do pé, a carne seca e o feijão. Os trabalhadores odiavam e temiam o Coronel bem como o próprio Cacau – tinham uma consciência de classe embrionária, os trabalhadores sentiam na pele as contradições da exploração econômica sem saber traduzir sua angústia em palavras. O filho do coronel é estudante de Direito na Bahia enquanto a filha Mariá julga os trabalhadores da fazenda como “animais estúpidos”. 

Este comprometimento com a objetividade e o realismo na literatura de Jorge Amado possibilitam a criação efetiva de um “romance proletário” que não se limita a maniqueísmos superficiais, diversos do real e da história de nosso povo.

“Fumavam cigarrões de fumo picado, e bebiam grandes tragos de cachaça desde a mais tenra infância. Aprendiam a temer o coronel e o capataz, e assimilavam aquela mistura de amor e ódio dos pais pelo cacau. Rolavam com os porcos pela lama e tomavam a bênção a todo mundo. Possuíam uma ideia vaga de Deus, um ser assim como o coronel, que premiava os ricos e castigava os pobres. Cresciam cheios de superstições e de feridas. Sem religião, sentiam um inimigo no padre. Odiavam-no naturalmente, como odiavam as cobras venenosas e os filhos pequenos dos fazendeiros. Aos doze anos os trabalhadores os levavam a Pirangi, à casa de rameiras (prostitutas). Com a doença feia, viravam homens. Em vez de quinhentos réis, passavam a ganhar mil e quinhentos”. (Pg. 88)

 (*) Quadro de Cândido Portinari.

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