sábado, 22 de fevereiro de 2020

“Lampião” – Rachel de Queiroz


“Lampião” – Rachel de Queiroz

Resenha - “Lampião” – Rachel de Queiroz – Drama em Cinco Quadros – Livraria José Olympio Editora - 1953

“Ele matava de brincadeira

Por pura perversidade

E alimentava os famintos

Com amor e caridade”

(Cordel sobre Lampião)





Esta peça de teatro sobre passagens da vida de Lampião foi publicada em 1953 pela escritora cearense Rachel de Queiroz.

A autora é uma das representantes da nossa segunda geração de artistas do movimento modernista, de cunho regionalista, envolvendo autores como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado e José Américo de Almeida. Trata-se de uma literatura que explora as mazelas e a opressão social de setores sociais marginalizados. como sertanejos, retirantes, trabalhadores do campo de da cidade. Contudo, a literatura destes autores não envolve uma narrativa meramente panfletária, com personagens eivados de superficialidade, ou mesmo se assemelhando a caricaturas do real. Do particular ou do regional as histórias destes escritores despontam às questões atemporais, a dilemas sentimentais que fazem desta literatura não só atual, mas universal no sentido de que dialoga com leitores do Brasil e do mundo, em todos os tempos.

Neste Lampião, a autora informa que redigiu a história partindo de uma pesquisa de campo e entrevistando até pessoas que conheceram de perto Virgulino Ferreira Lampião, o “interventor do sertão”.

Informa Rachel na abertura da sua história:

“Esta peça não se pode presumir de histórica: contudo, procurou acompanhar o mais perto possível a lenda, o anedotário, o noticiário de jornal – a tradição oral e escrita relativa ao mais famoso de nossos cangaceiros”.

Como não poderia deixar de ser, Lampião, sendo um personagem que permeia todo um imaginário popular do povo camponês do nordeste brasileiro, criou sua fama nos limites da história e do mito. Por sinal, a situação de banditismo social dos cangaceiros brasileiros é mencionada no livro pioneiro dedicado ao tema do historiador inglês Eric Hobsbwam, “Bandidos”.

Hobsbawm inaugura os estudos de uma nova categoria social, os bandidos sociais. Não são delinquentes comuns que cometem crimes para seu próprio proveito. O banditismo social é um fenômeno relacionado às sociedades camponesas pré-capitalistas e que costumam se acentuar em momentos de desagregação, como guerras, rivalidades locais relacionadas a disputas familiares, a fome ocasionada por má colheitas ou mesmo o próprio desenvolvimento do capitalismo com a consolidação de Estados Nacionais e a modificação forçada de modos de vida milenares, incluindo a desintegração familiar. Diante de tais condições objetivas o fenômeno do banditismo social tem o condão de surgir e, o que é particularmente interessante, tal tipo ideal vai aparecendo ao longo da história em todos os cantos do mundo. Nesta obra marcante do historiador britânico, verificamos que o banditismo social é um fenômeno que permeia culturas populares em todos os cantos do mundo – dos cossacos russos aos cangaceiros brasileiros, passando talvez pelo mais famoso de todos eles, Robin Hood.

Consta da história divergências sobre a origem de Lampião. Uma versão suscitada é a de que Virgulino Ferreira vivera como um jovem normal até os 16 anos quando policiais do governo (chamados pelos cangaceiros de “macacos”) assassinaram o seu pai. A partir de então, Virgulino passaria para a vida do cangaço, enfrentando tropas do governo, castigando os ricos e aqueles que colaboram com as autoridades. Simbolizando ainda assim uma espécie de resistência embrionária contra os poderes constituídos: basta aqui lembrar do personagem Fabiano de “Vidas Secas[1]”. Depois do retirante ser surrado e preso arbitrariamente pelo “soldado amarelo” deseja vingança se alistando no cangaço, não o fazendo segundo suas cogitações pessoais porque tem mulher e dois filhos para cuidar.

O nome Lampião é justificado pelo protagonista como uma espécie de título: o nome não foi dado, mas conquistado pelo cangaceiro, tratando a si como imperador do sertão e exigindo dos outros o mais completo respeito e temor a si e à sua autoridade sobre o grupo.

Quanto à psicologia do personagem, ela não desmente a fama que Lampião deixou junto à cultura do povo brasileiro: um homem forte e corajoso, extremamente confiante de si mesmo, e ao mesmo tempo desconfiado de todos que o cercam. Acima de Lampião apenas deus e seu padrinho Padre Cícero. Coragem, virilidade e combatividade são valores exaltados pelos cangaceiros e permanecem como um contraponto necessário à propaganda ideológica globalista que fala hoje em dia em “desconstrução do gênero”, “masculinidade tóxica”, “machismo” e outras bobagens do tipo.



[1] Romance de Graciliano Ramos publicado em 1938.

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