“Contos
Essenciais” – Machado de Assis
Resenha
Livro - “Contos Essenciais” – Machado de Assis – Martin Claret –Seleção e
Apresentação Jean Pierre Chauvin – Notas Djalma Lima
Machado
de Assis transitou por todos os gêneros literários, ainda que tenha ficado em
maior relevo os seus contos e romances. Ainda jovem, aos 21 anos, após ter
publicado alguns versos na imprensa fluminense, Machado de Assis foi convidado
por Quintino Bocaiúva para trabalhar como repórter e jornalista do “Diário do
Rio de Janeiro”. Escreveu crônicas jornalísticas igualmente no “Jornal das
Famílias” e na “Semana Literária”, por meio de pseudônimos.
Estas
crônicas de jornal com o seu contato com o cotidiano da cidade fluminense foi
uma espécie de laboratório de ensaio para os trabalhos posteriores.
“Crisálidas”,
uma coletânea de poesias, foi publicada em 1864. Foi o primeiro trabalho
autoral lançado por Machado de Assis. Já a primeira coletânea de contos é de
1870 (“Contos Fluminenses”). Foi dois anos antes do primeiro romance, de cunho
romântico, “Ressurreição” .
Portando,
podemos situar os anos de 1964-1972 como o ponto de partida da produção
literária machadiana, marcada pela variedade dos gêneros, do romance, do conto,
da novela, da poesia, do teatro e da crônica de jornal. Neste ponto de partida
ainda não se cogita a maturidade artística plena do escritor – o marco de
transição mais comentado pela crítica deu-se com a publicação do “Memórias
Póstumas de Brás Cubas” em 1881, obra que abriu as portas para a escola realista
de literatura no Brasil.
É verdade
que esta subdivisão entre uma fase romântica (3ª Fase do Romantismo Literário)
e uma fase plenamente madura e realista em Machado de Assis tem sido relativizada
pela crítica literária especializada. Contudo, parece claro que existem
diferenças importantes em trabalhos como “A Mão e a Luva” (1874) e “Helena” (1876)
e obras que se tornaram verdadeiros clássicos universais da literatura, como o
já mencionado “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o “Dom Casmurro” (1899) e o “Quincas
Borbas” (1891)
As
obras do romantismo em sua terceira fase se situam de maneira geral nos
ambientes urbanos, retratando os tipos sociais burgueses e abordando o tema
amoroso sem descuidar-se de um tom ainda preso às convenções, à moralidade
vigente e à visão social de mundo de uma elite letrada de um país dependente e
atrasado, além de escravocrata.
Contudo,
a terceira geração romântica tem maior preocupação social, passa a prestar
atenção à questão da escravidão e tem uma percepção mais ampla dos problemas
sociais, sendo mesmo descrita como geração condoreira, remetendo ao Condor, ave
que sobrevoa nas mais amplas altitudes. No que se refere àquelas primeiras
obras machadianas, verifica-se que a idealização amorosa, tão presente na
anterior geração byronista, perde seu vigor, sem contudo, romper-se com a
moralidade do tempo – em geral, o amor surge relacionado com o interesse e o
egoísmo, mas prevalece ainda uma tonalidade um pouco superficial em que os
personagens mal intencionados costumam ter um destino de derrota, como numa história
moralista.
Um bom
exemplo aqui é o conto de Luís Soares (Contos Fluminenses - 1870) em que o
interesse amoroso é claramente identificado com a preocupação de se levar
vantagem financeira – no caso, estabelecer-se um arranjo matrimonial com vistas
a obter benefícios pecuniários:
“Amara-o
com todo o vigor e calor de sua alma; mas já então o rapaz iniciava os seus
passos em outras regiões e ficou
indiferente aos afetos da moça; Um amigo que sabia do segredo perguntou-lhe um
dia por que razão não se casava com Adelaide, o que o rapaz respondeu
friamente:
-
Quem tem a minha fortuna não se casa; mas se casa é sempre com quem tem mais.
Os bens de Adelaide são a quinta parte dos meus; para ela é negócio da China;
para mim é um mau negócio”.
O
realismo literário também remete aos cenários e ambientes urbanos, suscitando
uma visão social de mundo de uma burguesia incipiente, que convive com a
sociedade escravocrata e a permanência de um regime político monárquico. Os
autores tanto do realismo como posteriormente do naturalismo literário
reproduzem uma série de correntes filosóficas em voga em fins do séc. XIX: o
positivismo, o evolucionismo e o determinismo social e geográfico. Spencer,
August Comte e Darwin. Há um esforço em se reproduzir a realidade de forma
objetiva, sem idealizações. Um viés mais cientificista caracterizaria
especificamente a literatura de tipo naturalista. O que há em comum, em todo
caso, entre o romantismo, o realismo e o naturalismo é a orientação artística
decorrente da importação de escolas literárias estrangeiras, particularmente
francesas. Seria só com o movimento modernista, com destaque para a Semana da
Arte Moderna de 1922, que, conforme o conceito da antropofagia, se postularia uma
arte efetivamente nacional, não só nos temas, mas na forma.
Lendo
esta seleção de contos de Machado de Assis organizada pelo professor da ECA-USP
Jean Pierre Chauvin, verifica-se que a divisão supracitada de um “jovem” e de um “maduro” Machado de
Assis tem seus méritos para fins didáticos, desde que não se omita um ponto
fundamental. Já nos primeiros contos verifica-se ainda que de forma embrionária
os traços das obras mais geniais de Machado de Assis: uma ironia refinada, um
humor subjacente, tiradas filosóficas, além de temas que são reiterados na obra
Machadiana. Os limites da sanidade e da loucura, a morte, os efeitos da
passagem do tempo no espírito humano, aos lances da sorte e do azar a decidir
os destinos dos personagens, muito mais do que os esforços e diligencias
pessoais.
O
que se percebe na seleção dos contos é que a partir dos “Papeis Avulsos” de
1882, Machado de Assis propõe histórias de tipo mais experimental ou mesmo de
cunho fantástico como “O Nariz de Bonzo” que de forma metafórica retrata a
credulidade do povo brasileiro ou “A Sereníssima República”, em que se narra os
arranjos políticos de uma república de aranhas, história redigida nos anos de
1880 e que perfeitamente se enquadra em dilemas políticos do Brasil atual:
“Nesse
ínterim, senhores, faleceu o primeiro magistrado, e três cidadãos
apresentaram-se candidatos ao posto, mas só dois importantes, Hazeroth e Magog,
os próprios chefes do partido retilíneo e do partido curvilíneo. Devo
explicar-vos estas denominações. Como eles[1] são principalmente
geômetras, é a geometria que os divide em política. Uns entendem que a aranha
deve fazer as teias com fios retos, é o partido retilíneo; outros pensam, ao
contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios curtos – é o partido
curvilíneo. Há ainda um terceiro partido, misto e central, com este postulado:
as teias devem ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido
reto-curvilíneo, e finalmente, uma quarta divisão política, o partido
antirreto-curvilíneo, que faz tábua rasa de todos os princípios litigantes, e
propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não
há linhas de espécie alguma. Como a geometria apenas poderia dividi-los, sem
chegar a apaixoná-los, adotaram uma simbólica. Para uns, a linha reta exprime
os bons sentimentos, a justiça, a probidade, a inteireza, a constância, etc.,
ao passo que os sentimentos ruins ou inferiores, como a bajulação, a fraude, a
deslealdade, a perfídia, são perfeitamente curvos. Os adversários respondem que
não, que a linha curva é a da virtude e do saber, porque é expressão da
modéstia e da humildade; ao contrário, a ignorância, a presunção, a toleima, a
parlapatice, são retas, duramente retas. O terceiro partido, menos anguloso,
menos exclusivista, desbastou a exageração de uns e de outros, combinou os
contrastes, e proclamou a simultaneidade das linhas como a exata cópia do mundo
físico e moral. O quarto limita-se a negar tudo”.
Verifica-se
nestes contos de “maturidade” que mesmo a narrativa fantástica e experimental não
exclui uma crítica social subjacente e um realismo inusitado entre o conto e a
sociedade brasileira, sua cultura e sua política de partidos do II Império.
Machado
de Assis estudou a vida inteira em colégios públicos, não frequentou a
universidade, veio de origem social humilde, e era mulato, tendo vivido os
últimos momentos do regime escravocrata do Brasil.
Fica
bastante claro ao leitor que Machado de Assis possuía um vasto repertório
cultural, assombroso para a época e circunstâncias – como disse um crítica, é
de fato um mestre na periferia do capitalismo. Além de citações recorrentes de
passagens bíblicas e da história universal, podemos ver personagens,
ambientações e reflexões que remetem a escritores da literatura francesa, alemã
e norte-americana, citação de filósofos e pensadores que vão de Aristóteles, a
Thomas Morus, Campanella e Erasmo de Roterdã.
Reconhecido
em vida, Machado de Assis teve um destino diferente de Lima Barreto, este
último igualmente de tez escura, mas excluído socialmente, culminando por um
lado na radicalização da crítica social e por outro no alcoolismo e na
marginalização. Machado de Assis foi um dos fundadores da Academia Brasileira
de Letras. Em vida, Lima Barreto teve seu ingresso vetado na instituição.
Ambos, por meio de formas literárias diferentes, retrataram o Brasil com a crítica, possibilitando aos leitores
de hoje melhor conhecer o país.
(*)
Esta
resenha baseou-se na reunião dos contos de Machado de Assis organizada pelo
professor Jean Pierre Chauvin. Para a redação desta resenha, foram lidos os
seguintes contos: Miss Dolar, Luís Soares, O Segredo de Augusta, Frei Simão, O
Parasita Azul, As Bodas de Luís Duarte, Ernesto de Tal, O Relógio de Ouro,
Teoria do Medalhão, D. Benedita, O Segredo de Bonzo, O Anel de Polícrates, A
Sereníssima República, Verba Testamentária e A Igreja do Diabo.
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