terça-feira, 3 de março de 2020

“Contos Essenciais” – Machado de Assis


“Contos Essenciais” – Machado de Assis 



Resenha Livro - “Contos Essenciais” – Machado de Assis – Martin Claret –Seleção e Apresentação Jean Pierre Chauvin – Notas Djalma Lima

Machado de Assis transitou por todos os gêneros literários, ainda que tenha ficado em maior relevo os seus contos e romances. Ainda jovem, aos 21 anos, após ter publicado alguns versos na imprensa fluminense, Machado de Assis foi convidado por Quintino Bocaiúva para trabalhar como repórter e jornalista do “Diário do Rio de Janeiro”. Escreveu crônicas jornalísticas igualmente no “Jornal das Famílias” e na “Semana Literária”, por meio de pseudônimos.

Estas crônicas de jornal com o seu contato com o cotidiano da cidade fluminense foi uma espécie de laboratório de ensaio para os trabalhos posteriores.

“Crisálidas”, uma coletânea de poesias, foi publicada em 1864. Foi o primeiro trabalho autoral lançado por Machado de Assis. Já a primeira coletânea de contos é de 1870 (“Contos Fluminenses”). Foi dois anos antes do primeiro romance, de cunho romântico, “Ressurreição” .

Portando, podemos situar os anos de 1964-1972 como o ponto de partida da produção literária machadiana, marcada pela variedade dos gêneros, do romance, do conto, da novela, da poesia, do teatro e da crônica de jornal. Neste ponto de partida ainda não se cogita a maturidade artística plena do escritor – o marco de transição mais comentado pela crítica deu-se com a publicação do “Memórias Póstumas de Brás Cubas” em 1881, obra que abriu as portas para a escola realista de literatura no Brasil.

É verdade que esta subdivisão entre uma fase romântica (3ª Fase do Romantismo Literário) e uma fase plenamente madura e realista em Machado de Assis tem sido relativizada pela crítica literária especializada. Contudo, parece claro que existem diferenças importantes em trabalhos como “A Mão e a Luva” (1874) e “Helena” (1876) e obras que se tornaram verdadeiros clássicos universais da literatura, como o já mencionado “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o “Dom Casmurro” (1899) e o “Quincas Borbas” (1891)

As obras do romantismo em sua terceira fase se situam de maneira geral nos ambientes urbanos, retratando os tipos sociais burgueses e abordando o tema amoroso sem descuidar-se de um tom ainda preso às convenções, à moralidade vigente e à visão social de mundo de uma elite letrada de um país dependente e atrasado, além de escravocrata.

Contudo, a terceira geração romântica tem maior preocupação social, passa a prestar atenção à questão da escravidão e tem uma percepção mais ampla dos problemas sociais, sendo mesmo descrita como geração condoreira, remetendo ao Condor, ave que sobrevoa nas mais amplas altitudes. No que se refere àquelas primeiras obras machadianas, verifica-se que a idealização amorosa, tão presente na anterior geração byronista, perde seu vigor, sem contudo, romper-se com a moralidade do tempo – em geral, o amor surge relacionado com o interesse e o egoísmo, mas prevalece ainda uma tonalidade um pouco superficial em que os personagens mal intencionados costumam ter um destino de derrota, como numa história moralista.

Um bom exemplo aqui é o conto de Luís Soares (Contos Fluminenses - 1870) em que o interesse amoroso é claramente identificado com a preocupação de se levar vantagem financeira – no caso, estabelecer-se um arranjo matrimonial com vistas a obter benefícios pecuniários:

“Amara-o com todo o vigor e calor de sua alma; mas já então o rapaz iniciava os seus passos em outras  regiões e ficou indiferente aos afetos da moça; Um amigo que sabia do segredo perguntou-lhe um dia por que razão não se casava com Adelaide, o que o rapaz respondeu friamente:

- Quem tem a minha fortuna não se casa; mas se casa é sempre com quem tem mais. Os bens de Adelaide são a quinta parte dos meus; para ela é negócio da China; para mim é um mau negócio”.

O realismo literário também remete aos cenários e ambientes urbanos, suscitando uma visão social de mundo de uma burguesia incipiente, que convive com a sociedade escravocrata e a permanência de um regime político monárquico. Os autores tanto do realismo como posteriormente do naturalismo literário reproduzem uma série de correntes filosóficas em voga em fins do séc. XIX: o positivismo, o evolucionismo e o determinismo social e geográfico. Spencer, August Comte e Darwin. Há um esforço em se reproduzir a realidade de forma objetiva, sem idealizações. Um viés mais cientificista caracterizaria especificamente a literatura de tipo naturalista. O que há em comum, em todo caso, entre o romantismo, o realismo e o naturalismo é a orientação artística decorrente da importação de escolas literárias estrangeiras, particularmente francesas. Seria só com o movimento modernista, com destaque para a Semana da Arte Moderna de 1922, que, conforme o conceito da antropofagia, se postularia uma arte efetivamente nacional, não só nos temas, mas na forma.

Lendo esta seleção de contos de Machado de Assis organizada pelo professor da ECA-USP Jean Pierre Chauvin, verifica-se que a divisão supracitada  de um “jovem” e de um “maduro” Machado de Assis tem seus méritos para fins didáticos, desde que não se omita um ponto fundamental. Já nos primeiros contos verifica-se ainda que de forma embrionária os traços das obras mais geniais de Machado de Assis: uma ironia refinada, um humor subjacente, tiradas filosóficas, além de temas que são reiterados na obra Machadiana. Os limites da sanidade e da loucura, a morte, os efeitos da passagem do tempo no espírito humano, aos lances da sorte e do azar a decidir os destinos dos personagens, muito mais do que os esforços e diligencias pessoais.

O que se percebe na seleção dos contos é que a partir dos “Papeis Avulsos” de 1882, Machado de Assis propõe histórias de tipo mais experimental ou mesmo de cunho fantástico como “O Nariz de Bonzo” que de forma metafórica retrata a credulidade do povo brasileiro ou “A Sereníssima República”, em que se narra os arranjos políticos de uma república de aranhas, história redigida nos anos de 1880 e que perfeitamente se enquadra em dilemas políticos do Brasil atual:

“Nesse ínterim, senhores, faleceu o primeiro magistrado, e três cidadãos apresentaram-se candidatos ao posto, mas só dois importantes, Hazeroth e Magog, os próprios chefes do partido retilíneo e do partido curvilíneo. Devo explicar-vos estas denominações. Como eles[1] são principalmente geômetras, é a geometria que os divide em política. Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios retos, é o partido retilíneo; outros pensam, ao contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios curtos – é o partido curvilíneo. Há ainda um terceiro partido, misto e central, com este postulado: as teias devem ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido reto-curvilíneo, e finalmente, uma quarta divisão política, o partido antirreto-curvilíneo, que faz tábua rasa de todos os princípios litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não há linhas de espécie alguma. Como a geometria apenas poderia dividi-los, sem chegar a apaixoná-los, adotaram uma simbólica. Para uns, a linha reta exprime os bons sentimentos, a justiça, a probidade, a inteireza, a constância, etc., ao passo que os sentimentos ruins ou inferiores, como a bajulação, a fraude, a deslealdade, a perfídia, são perfeitamente curvos. Os adversários respondem que não, que a linha curva é a da virtude e do saber, porque é expressão da modéstia e da humildade; ao contrário, a ignorância, a presunção, a toleima, a parlapatice, são retas, duramente retas. O terceiro partido, menos anguloso, menos exclusivista, desbastou a exageração de uns e de outros, combinou os contrastes, e proclamou a simultaneidade das linhas como a exata cópia do mundo físico e moral. O quarto limita-se a negar tudo”.

Verifica-se nestes contos de “maturidade” que mesmo a narrativa fantástica e experimental não exclui uma crítica social subjacente e um realismo inusitado entre o conto e a sociedade brasileira, sua cultura e sua política de partidos do II Império.

Machado de Assis estudou a vida inteira em colégios públicos, não frequentou a universidade, veio de origem social humilde, e era mulato, tendo vivido os últimos momentos do regime escravocrata do Brasil.

Fica bastante claro ao leitor que Machado de Assis possuía um vasto repertório cultural, assombroso para a época e circunstâncias – como disse um crítica, é de fato um mestre na periferia do capitalismo. Além de citações recorrentes de passagens bíblicas e da história universal, podemos ver personagens, ambientações e reflexões que remetem a escritores da literatura francesa, alemã e norte-americana, citação de filósofos e pensadores que vão de Aristóteles, a Thomas Morus, Campanella e Erasmo de Roterdã.

Reconhecido em vida, Machado de Assis teve um destino diferente de Lima Barreto, este último igualmente de tez escura, mas excluído socialmente, culminando por um lado na radicalização da crítica social e por outro no alcoolismo e na marginalização. Machado de Assis foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Em vida, Lima Barreto teve seu ingresso vetado na instituição. Ambos, por meio de formas literárias diferentes, retrataram o  Brasil com a crítica, possibilitando aos leitores de hoje melhor conhecer o país.  

(*)

Esta resenha baseou-se na reunião dos contos de Machado de Assis organizada pelo professor Jean Pierre Chauvin. Para a redação desta resenha, foram lidos os seguintes contos: Miss Dolar, Luís Soares, O Segredo de Augusta, Frei Simão, O Parasita Azul, As Bodas de Luís Duarte, Ernesto de Tal, O Relógio de Ouro, Teoria do Medalhão, D. Benedita, O Segredo de Bonzo, O Anel de Polícrates, A Sereníssima República, Verba Testamentária e A Igreja do Diabo.






[1] Isto é, as aranhas.

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