domingo, 25 de agosto de 2019

“Mao – O Processo da Revolução” – Márcio Bilharinho Naves


“Mao – O Processo da Revolução” – Márcio Bilharinho Naves



Resenha Livro - “Mao – O Processo da Revolução” – Márcio Bilharinho Naves – E. Brasiliense

"Na sociedade socialista continuam a existir as classes e a luta de classes, a luta entre a via socialista e a via capitalista. Não é suficiente a revolução socialista apenas na frente econômica, relativamente à propriedade dos meios de produção, o que não permite assegurar as suas conquistas. E preciso também uma Revolução Socialista conseqüente na frente política e ideológica" MAO TSÉ TUNG.

Um aspecto que certamente diferencia a revolução chinesa das demais experiências revolucionárias socialistas ao longo do século XX é o seu aspecto de longa duração. Entre 1921 quando da fundação do Partido Comunista Chinês em Xangai e a vitória final do exército vermelho sobre o Koumitang em 1949 com a proclamação da República Popular da China em Pequim por Mao passaram-se 28 anos. Praticamente três décadas de guerra civil e de mobilização geral do povo chinês contra a intervenção imperialista japonesa que vai de 1931 até 1945 com a derrota dos japoneses.

Neste contexto, este livro, dedicado ao relato da trajetória de vida e das ideais de Mao Tsé Tung, chama atenção para aquela que seria a principal contribuição do processo revolucionário chinês. Contribuição no sentido de suscitar lições históricas de seus feitos e derrotas: o problema da teoria da transição socialista que na China assumiu contornos dramáticos, particularmente diante da Revolução Cultural.

Mao Tsé Tung nasceu em 1893 na província de Hunan, no sul da China. Veio de uma família de camponeses dentro de uma estrutura familiar rígida e patriarcal, dentro da qual o pai era autoridade incontestada, muitas vezes surrando os filhos, privando-lhes de dinheiro e comida. Consta que a mãe de Mao, por outro lado, era uma pessoa amável e generosa. Costumava doar arroz aos pobres escondida do marido que não aceitava tal comportamento. Mao trabalhava nos campos desde o 6 anos de idade, tarefa que acumulou com os estudos aos 8 anos. Aos 16 anos o futuro revolucionário deixou sua casa definitivamente matriculando-se na escola primária de XiangXiang.

Em 1919 já em Pequim Mao Tsé Tung consegue um cargo de bibliotecário na Universidade. O futuro dirigente faz cursos e integra um grupo de estudos marxistas fundado por Lin Dazhao. Em 1921 dá-se a o primeiro congresso do Partido Comunista Chinês – apenas um ano anos antes da fundação do nosso PCB aqui no Brasil.

Compareceram ao congresso 13 militantes, entre os quais Mao Tsé Tung e representantes do Komitern. Num primeiro momento o programa do partido recusa a colaboração de classes com a burguesia nacional defendendo assim a independência política e de classe do partido. Tal orientação seria alterada já no 3º Congresso do PCC sob a influência da III Internacional. Havia uma política que poderíamos chamar de etapista no horizonte da internacional segundo a qual os modos de produção suceder-se-iam, do feudalismo, ao capitalismo, do capitalismo, ao socialismo. Países semi-coloniais com heranças feudais como a China deveriam defender não a revolução socialista mas a revolução democrático-burguesa, estabelecendo aliança com a burguesia nacional para aniquilar as classes feudais que na China efetivamente se revelavam na classe dos senhores de terra e da burguesia compradora. Este política orientada no sentido da revolução democrático-burguesa teria como resultado a defesa de uma aliança política com o partido nacionalista Koumitang.

Os dirigentes do Koumitang pertencem às classes dos proprietários, à burguesia nacional, aos bancários e aos industriais. Em 12.4.1927 ocorre o massacre de Xangai das tropas nacionalistas de Chiang Kai Shek sobre os comunistas. É importante salientar que a China tinha uma particularidade que de certa forma possibilitou a articulação do Partido Comunista e sua mobilização de milhões de camponeses e trabalhadores. A China fora alvo de uma disputa interimperialista desde tempos remotos e seu território é disputado pelo imperialismo inglês e japonês – do ponto de vista militar, os comunistas deveriam tirar proveito das divisões do campo inimigo para avançar. É a própria divisão do campo imperialista que permite a aliança do Koumitang com o PCC na luta patriótica contra o invasor Japonês.

Seja como for, foi o exército comunista que suportou o grosso das batalhas contra o invasor japonês, particularmente entre 1941-1942. De modo que no término da guerra patriótica com a derrota do Japão verificou-se que o exército comunista saiu fortalecido. Havia uma diferença mesmo de concepção do exército que fora propugnado por Mao e pelos marxistas chineses. O exército deveria ser a expressão armada dos interesses e aspirações do povo. A libertação territorial do exército vermelho era acompanhada da abolição da prostituição, fim da escravização de crianças e do comércio e consumo de ópio. Mao defendia inclusive uma política de clemência com relação aos prisioneiros de guerra japoneses. Estes não eram humilhados e mortos: eram antes convencidos pela persuasão a se integrar a tropas internacionalistas contra os japoneses ou então eram simplesmente liberados. Os japoneses explicitamente tinham a orientação de aniquilar, destruir e matar. E o Koumitang intervinha de forma arbitrária, perpetrando a violência e opressão contra as massas camponesas.  

No que se refere às ideias e formulações teóricas de Mao Tsé Tung, três temas parecem ser mais salientados, conforme a etapa da própria luta revolucionária na China. Os temas de política e da arte militar; os temas da filosofia como expressão da luta de classes na teoria, destacando-se os problemas da contradição e da dialética; e a teoria da transição que surge no contexto da Revolução Cultural.

Não estamos de acordo com de Márcio B. Naves com relação ao problema da transição na China não ter sido levado até as últimas consequenciais, por exemplo, através da política de disseminação das comunas, ignorando, assim, a natureza política da ditadura de classe desde a orientação leninista, que não prescinde do partido, do estado e do controle social dos meios de produção. Também não parece apropriado caracterizar a China de 1950 como país cuja forma social é a do capitalismo de estado.

A possibilidade da restauração capitalista através de movimentos supostamente “democráticos” foram, como demonstra os exemplos do leste europeu, nada mais do que contra-revoluções de veludo, na expressão de Ludo Martens. Contudo, parece certo que a Revolução Chinesa efetivamente levou a níveis talvez não antes vistos o problema da transição socialista, a relação entre a propriedade dos meios de produção e o partido, a questão da divisão social do trabalho e as necessidade objetiva de desenvolvimento das forças produtivas para o alcance de novas relações de produção socialistas.       




quarta-feira, 21 de agosto de 2019

“O Trotskysmo A Serviço da CIA Contra Os Países Socialistas” – Ludo Martens


“O Trotskysmo A Serviço da CIA Contra Os Países Socialistas” –Ludo Martens



Resenha – “O Trotskysmo A Serviço da CIA Contra Os Países Socialistas” –
Ludo Martens – 20 de Outubro de 1992 – Para a História do Socialismo – Tradução: Fernando A. S. Araújo



O problema da restauração capitalista na URSS e outros países do leste europeu como a Polônia e a Hungria, bem como o significado de mobilizações supostamente “democráticas” apoiadas pelo imperialismo ainda gera muita confusão nas fileiras da esquerda. Neste momento, uma onda de protestos em Hong Kong, articulada por estudantes financiados e apoiados pelo imperialismo britânico e norte-americano, é vista com simpatia por setores da esquerda pequeno-burguesa que veem os protestos como uma luta política, democrática e anti-burocrática. O PSOL lançou uma carta pública apoiando as manifestações. Considerando ser um partido de diversas tendências, subtende-se que todas as correntes internas do partido têm a mesma opinião.



Não faz muito tempo e estes mesmos setores viam com simpatia as mobilizações de rua na Ucrânia, atos que culminaram na ascensão da extrema direita naquele país e no assassinato em praça pública de militantes de esquerda. Setores mais tresloucados como o Movimento Esquerda Socialista (MES) e a Corrente Socialista dos Trabalhadores (CST), ambos do PSOL, apostaram na frente única com os movimentos de rua articulados por provocadores financiados pelos EUA para desestabilizar Maduro na Venezuela.



Já o PSTU em pleno regime de estado de exceção no Brasil hesita em caracterizar os acontecimentos políticos de 2016 como um golpe de estado perpetrado pela direita e pela extrema direita, já que PT e PSDB seriam irmãos siameses, representantes ocasionais dos mesmos interesses da burguesia nacional e do imperialismo.



Toda a mistificação em torno da luta “democrática” e “anti-burocrática” da esquerda pequeno-burguesa, revisionista e trotskysta encontra explicação na própria tradição. Daí o vivo e atual interesse na leitura deste artigo do comunista belga Ludo Martens. O que há como denominador comum, neste caso, é a orientação política anti-comunista, de combate ao que se caracteriza como “stalinismo” por meio de uma frente que historicamente envolveu todos os elementos mais interessados na restauração capitalista e na aniquilação do marxismo-leninismo: do imperialismo ao nacionalismo e fascismo. A frente única com forças políticas da burguesia e da reação contra o que chamam de estados operários degenerados. A defesa de movimentos pró-imperialistas como a mobilização dos estudantes Tian Na Men no ano de 1989, a defesa pelos trotskystas (como Mandel) da Glasnost de Gorbatchov, passando pela apologia do multipartidarismo com a liberdade de criação de partidos burgueses anti-comunistas.



É interessante destacar que já nos anos de 1930, Joseph Stálin chamava atenção para o fato de que a luta de classes persiste como uma realidade objetiva e concreta na construção do socialismo, sendo possível a restauração capitalista, seja por meios violentos, seja por meios paulatinos e graduais. Trótsky posicionou-se de forma oportunista afirmando ser impossível a restauração capitalista na URSS sem um nível de violência dez vezes mais contundente do que a revolução de outubro. Os fatos da história dariam razão a Stálin: o socialismo na URSS foi sendo minado paulatinamento por dentro a partir de 1956, num processo que Ludo Martens caracteriza como contra-revolução de veludo. A Glasnost de Gorbatchov preparou de forma sistemática os espíritos para a restauração integral do capitalismo e, sintomaticamente, é no período da chamada abertura que nomes como Trótsky, Zinoviev e Bukharin são reabilitados na URSS.  Em 1989 no momento do assalto final da contra revolução na URSS os trotskystas da IV Internacional dirigidos por Mandel lançam a palavra de ordem de “solidariedade com a revolução que começa no leste”.



O trotskysta Mandel defende o solidariedade da Polônia, instrumento político que engendrou a aniquilação do socialismo e a restauração do capitalismo naquele país, tudo sempre sob a fraseologia esquerdista típica dos oportunistas, tratando o movimento como uma luta “anti-burocrática”, ou de jovens contra velhos, etc. O mesmo apoio foi dado à chamada primavera de praga de 1968 que nada mais foi do que uma contra-revolução de caráter social democrata. Vale dizer que Fidel Castro apoiou a repressão soviética, revelando sua coragem e coerência nos momentos difíceis.



Não é preciso salientar que o multipartidarismo defendido já pelos trotskystas nos anos de 1930-40 vai em sentido contrário da experiência soviética ao tempo de Lênin:



“Sim, é verdade que Lénine proibiu os partidos sociais-democratas, isto é, os mencheviques e os socialistas-revolucionários. Isto porque, na guerra civil, eles combateram ao lado do tsarismo, da burguesia e das forças intervencionistas; e porque foram esmagados juntamente com as forças feudais e burguesas. Lénine sublinhou várias vezes que um representante inteligente da grande burguesia, como Miliukov, compreendia perfeitamente que, numa primeira fase, só um partido de «esquerda», social-democrata, teria possibilidades de arrastar as massas para a luta antibolchevique. É por isso que Miliukov contentar-se-ia com mera legalização de um partido social-democrata...”



Mais recentemente, segundo Ludo Martens, trotskystas buscaram infiltrar-se em organizações como a Frente Sandinista e o Partido Comunista Cubano, denunciado sempre aqueles que são seus inimigos principais: não os fascistas que apoiaram desde a Ucrânia, nem os interesses multi-milionários do imperialismo britânico e norte americano na China, mas ao movimento comunista internacional.



Contudo, a prática é o critério da verdade e a vida vai ensinando os desavisados que o trotskysmo efetivamente continua sendo aquilo que Stálin o caracterizou há mais de meio século: “o trotskysmo é a socialdemocracia de direita, adornada com um fraseado de esquerda”.  

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

“O Menino Grapiúna” – Jorge Amado


“O Menino Grapiúna” – Jorge Amado



Resenha Livro - “O Menino Grapiúna” – Jorge Amado – Ed. Companhia das Letras

O Menino Grapiúna foi livro publicado em 1981 quando Jorge Amado já era um escritor consagrado no país e no estrangeiro. Vinte anos antes o escritor baiano assumira a cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras (1961).

Jorge Amado é provavelmente o escritor brasileiro mais conhecido e lido fora do país – no ano de 1971, por exemplo, o autor é convidado para acompanhar um curso sobre sua obra na Universidade de Pensilvânia nos EUA. O que é notável, neste caso, é a forma como o autor consegue suscitar obras tanto reconhecidas pela crítica especializada quanto pelo público: em que pese as nuanças que marcam a evolução de sua obra, há sempre uma abordagem de pessoas e ambientes que realçam aspectos da cultura popular.

No caso uma narrativa não só sobre o povo, mas para o povo: “Gabriela, Cravo e Canela” de 1958 e “Tieta do Agreste” de 1977 foram retratadas na forma de novela televisiva, possibilitando um vínculo raro entre arte popular amplamente acessível, sem, com isso, redundar em narrativas improváveis, em personagens superficiais antes parecidos com caricaturas. Aliás, se há algo a ser reiterado nos livros de Jorge Amado é um certo realismo regionalista que o escritor tivera como referência a partir da geração modernista nordestina… No caso, geração crítica dos modernistas paulistas de 1922 – tendo como expoente Gylberto Freire[1] na sociologia, além de Rachel de Queiróz, Graciliano Ramos e José Américo de Almeida. Aliás, consta que o “A Bagaceira” de José Américo marcaria profundamente Jorge Amado.

É comum situar a evolução da produção literária de Jorge Amado em duas etapas. A primeira fase dialoga explicitamente com o envolvimento pessoal do escritor com o Partido Comunista Brasileiro.  Ainda muito jovem o escritor se aproxima do partido e, em 1936, é preso sob a acusação de ter participado da chamada “intentona comunista” um ano antes. Com o advento do Estado Novo em 1937 é detido mais uma vez e consta que seus livros teriam sido queimados em praça pública em Salvador.

Nos anos de 1940, Jorge Amado viaja à Argentina e Uruguai, dedicando-se à pesquisa sobre a vida de Luís Carlos Prestes, pesquisa que resultará no livro “A vida de Luís Carlos Prestes”, posteriormente rebatizado como “O cavaleiro da esperança”. Em 1946 é eleito deputado pelo Partido Comunista – em 1947 seu mandato é cassado pouco após o PCB ser colocado na ilegalidade no Governo Dutra.

Como relataria posteriormente, Jorge Amado assumiria as tarefas político-partidárias antes como uma imposição da situação do que por uma vocação pessoal. Consta que o escritor afastou-se definitivamente da militância político-partidária em 1954, dois anos antes do fatídico XX Congresso do PC soviético quando Kruschev levou adiante a política liquidacionista de “denúncia contra os crimes de Stálin”. A verdade é que o escritor baiano abandonou a militância para poder dedicar-se com exclusividade à literatura – mas o certo é que a tonalidade política das obras mudam. É o caso de cotejar Gabriela, Cravo Canela de 1956 com obras que tinham entre seus aspectos decisivos a denúncia das iniquidades sociais, como a dura vida das crianças de rua em “Capitães de Areia” (1937) e a situação dos trabalhadores das fazendas de cacau em “Cacau” (1933).

“Menino Grapiúna” corresponde a lembranças de infância do escritor. Nascido em 1912 em Itabuna na Bahia, uma das primeiras imagens que lhe exsurge foi uma tentativa de emboscada de jagunços quase perpetrando o assassinato do pai. A vida no sul da Bahia valia pouco, muito menos do que um torrão de terra ou uma aposta no baralho.  

O relato tem a forma de momentos e não uma narrativa com começo, meio e fim. Os momentos são descritos sob a forma de imagens, luzes sobre o passado que vão sugerindo a formação do homem dentro daquelas condições sociais desde o sul interiorano da Bahia. 

A infância de Jorge Amado dá-se em meio aos matutos, coronéis, padres do seminário e prostitutas que acolhiam a criança nos seus seios como se suas mães fossem.

“Entre jagunços, aventureiros, jogadores, o menino crescia e aprendia. Aprendeu a ler antes de ir à escola, nas páginas do jornal A Tarde"

O livro remete aos aspectos culturais do Brasil colonial retratado por Gyberto Freire e que ficariam conhecidos como o sistema da democracia racial: a religião tendo forma doméstica, os santos nos interiores das casas, o catolicismo misturado com crendices, a miscigenação racial, o poder patriarcal vinculado ao domínio da terra, a aparente lhaneza no trato e cordialidade convivendo com a violência arbitrária dos coronéis. Um retrato comovente, mas parcial, na medida em que omite, mais ou menos intencionalmente, as lutas sociais, sob pena de se incorrer num relato ideológico:

“Não serão as ideologias por acaso a desgraça do nosso tempo? O pensamento criador submergido, afogado pelas teorias, pelos conceitos dogmáticos, o avanço do homem travado por regras imutáveis?

Sonho com uma revolução sem ideologia, onde o destino do ser humano, seu direito a comer, a trabalhar, a amar, a viver a vida plenamente não esteja condicionado ao conceito expresso e imposto por uma ideologia, seja ela qual for. Um sonho absurdo? Não possuímos direito maior e mais inalienável do que o direito ao sonho. O único que nenhum ditador pode reduzir ou exterminar”.  

A violência relacionada à luta pela terra surge na memória da criança como uma fatalidade: a ausência de uma teoria implica com frequência na naturalização da arbitrariedade.


[1] Em 1926, o Congresso Regionalista, encabeçado por Gilberto Freyre, condena o modernismo paulista por “imitar inovações estrangeiras”

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

“Caminho de Pedras” – Rachel de Queiroz


“Caminho de Pedras” – Rachel de Queiroz



Resenha Livro - “Caminho de Pedras” – Rachel de Queiroz – Ed. Siciliano – 12ª Edição

“Repetiam toda hora os “camaradas”, afetavam uma simplicidade excessiva, que chocava os outros, os “de tamancos”, cheios de preconceitos e convenções. Pois a simplicidade, longe de ser um atributo dos humildes, é um artifício de requintados que a plebe desconhece. Depressa essa diferença cavou divergências. Os “tamancos” entraram a hostilizar os “gravatas”, a “desmascará-los”, a exigir que se proletarizassem. O preto Vinte-e-Um chefiava a “esquerda”, e os “gravatas” se fechavam num círculo aristocrático, que chegava a incluir o próprio Filipe, expulso do meio dos obreiros por “intelectual” e por “burguês”. Dos da rodinha, só Paulino, o ferroviário, tinha entrada entre os “tamancos”. Samuel também cortejava os operários e exagerava a sua proletarização. Deu até para andar de fundilhos rotos, de camisa de mescla”.

“Caminho de pedras” é o terceiro romance da escritora modernista Rachel de Queiroz. O livro foi publicado em 1937, tendo como antecessores “O Quinze” (1930) e “João Miguel” (1932).

Toda classificação tem algo de arbitrário e o enquadramento das obras literárias em determinadas escolas pode inviabilizar um exame completo e específico de cada publicação. Por outro lado, é certo que a leitura deste e de outros romances de Rachel de Queiroz remete aos trabalhos de outros autores situados mais ou menos no mesmo tempo e espaço. É o caso de Graciliano Ramos e sua narrativa acerca das coisas e gentes do nordeste brasileiro, num contexto de fragmentação do velho mundo de tipo colonial, com o advento das cidades, dos bondes e dos jornais, das profissões liberais e de um novo arranjo político-institucional em substituição às formas pessoais de poder[1]. As Alagoas de “Angústia”  tem paralelo com a fortaleza de “Caminho de Pedras”. Os personagens deixam de serem os tipos burgueses tão característicos da literatura do século XIX já a partir dos romances de Joaquim Manuel de Macedo e Machado de Assis.

Exsurgem agora tipos populares que se associam a setores empobrecidos do que chamaríamos hoje de “classe média”. Neste “Caminho de Pedras” é o caso de Roberto, um jornalista filiado a organização de esquerda que, a título de organizar uma célula revolucionária, muda-se para Fortaleza e encontra a desconfiança dos poucos operários que compõem o núcleo. Outros tipos populares e pequeno burgueses se envolvem em torno da mesma organização política: um tipógrafo, um ferroviário, um revisor de jornal e operários. Ocorre que mesmo havendo a divisão social do trabalho entre os trabalhos manuais e intelectuais, afere-se que mesmo os pequeno-burgueses trabalham de forma maquinal, seja como tipógrafo seja como revisora de fotografias.  

Contudo, a divisão interna da organização política expressa questões bastante discutidas no âmbito da tradição marxista, o que faz deste romance uma fonte de reflexão em torno de questões como as relações entre o partido político e a classe social proletária, as relações entre sujeito político e sujeito social. O enredo sugere que os operários têm o instinto revolucionário mas carecem da teoria revolucionária. São obreiristas, com destaque para o personagem Vinte-e-Um, que demonstra o mais alto grau de desconfiança contra os  “intelectuais” pequeno burgueses.

Lukács em seu “História e Consciência de Classe” sugere que a própria posição social ocupada pelo trabalhador nos quadros da sociedade capitalista engendra ao menos potencialmente a  consciência revolucionária. Já Lênin é partidário de uma organização política de vanguarda, que seja formada pelos quadros mais decididos, mais valentes e mais preparados, numa orientação de fazer avançar a consciência da classe – em Lênin, política não se confunde com pedagogia não havendo muito espaço para uma renúncia do horizonte estratégico diante de uma adequação ao nível de consciência dos elementos mais atrasados da classe. 

Em Lênin o sujeito social não se confunde necessariamente com o sujeito político.

O romance começa com o tema da política para posteriormente suscitar o tema do amor, este também policlassista. Roberto, de origem pequeno-burguesa, conquista o coração de Naomi, mulher identificada com o Bloco, de perfil proletário e casada com Jean Jaques. O amor extraconjugal revela uma experiência de culpa, de medo e de hesitação:

“Esquisito, o amor. Parece uma luta, a gente parece inimigos. Vontade de possuir, de mandar, de dominar. Desconfiança. Fiscalizando, esmiuçando nuanças de voz, entonações, olhares. Tudo fica intoxicado, doentio. Entre Roberto e ela já não havia mais hiatos de paz, de amizade, de camaradagem serena. Foi-se embora isso tudo, assim que se disseram as primeiras palavras de amor. Hoje era só aquela tensão, aquela necessidade recíproca e angustiosa de se verem, aquela força bruta que a atirava para os braços dele com os lábios trêmulos e o coração quase parando”.        

Aspectos não menos secundário e de interesse da obra é o realismo com que retrata as dificuldades da organização num contexto de repressão que o leitor supõe estar relacionada com o contexto da Era Vargas e do Estado Novo. As aulas de política são feitas de forma clandestina e as tentativas de realização de discursos em praça pública terminam em prisões. O baixo nível político-ideológico dos militantes, indistintamente quanto aos obreiros e os intelectuais, também é marca do propósito realista da obra: não poderia ser diferente, considerando as condições históricas do Brasil recém egresso da república velha, o baixo nível de organização das esquerdas naquele contexto e a repressão estatal.

O ser humano é eivado de contradições de modo que o exercício de apreensão das complexidades da alma decorreu de conquistas mais recentes da literatura. O realismo literário de Machado de Assis e mesmo as obras naturalistas demonstraram dificuldade em descrever os tipos mais simples do povo com a marca de sua complexidade humana. Será com os trabalhos de Graciliano Ramos, Rachel de Queiróz, José Lins do Rego e Guimarães Rosa que se possibilitará conhecer os meandros da vida e da alma dos tipos populares desde um viés regionalista.    

Resenha Literatura #1


[1] A melhor metáfora deste novo arranjo institucional é a figura do soldado amarelo de “Vidas Secas” (1938).