sexta-feira, 8 de março de 2019

“Na Capitania de São Vicente” – Washington Luiz


“Na Capitania de São Vicente” – Washington Luiz 



Resenha livro - “Na Capitania de São Vicente” – Washington Luiz – Edições do Senado Federal Volume 24 – Brasília – 2004

Washington Luiz deverá ser primeiramente lembrado como o último presidente da chamada República Velha (1889-1930). Era chefe da nação quando da crise econômica de 1929 e foi no contexto de sua transição e da crise da chamada política do café com leite que se engendrou o movimento revolucionário vitorioso de 1930 dirigido por Getúlio Vargas e sua Aliança Liberal. O que porém poucos devem saber é que o presidente autor da famosa frase “governar é abrir estradas” foi também um profícuo historiador, particularmente das coisas paulistas.

Washington Luiz formou-se em Direito na Faculdade do Largo de São Francisco e desde os arquivos de São Paulo trabalhou nos primeiros anos do séc. XX pesquisando o passado colonial da cidade bandeirante, escrevendo partes de suas pesquisas no Jornal do Comércio e na revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro da qual foi colaborador.

Ao assumir os cargos de prefeito e presidente do estado de São Paulo teve de se ocupar menos dos estudos da história. Contudo, deve-se ao ex-presidente a expansão do conhecimento do nosso passado com a publicação de documentos por meio do Arquivo do Estado – são as fontes do historiador que dizem respeito a testamentos, inventários, missivas e atas da Câmara Paulista.  Há muitas lacunas nesta documentação, há papeis ilegíveis e comidos pelas traças. Na São Paulo colonial onde a educação é reduzida a alguns agrupamentos jesuíticos com o analfabetismo reinante, a redação dos escrivãos é dificilmente legível pelo historiador de hoje.

Este trabalho foi publicado em 1956: após o exílio do Brasil diante da revolução de 1930, Washington Luiz esteve em Portugal durante alguns anos onde pôde complementar suas pesquisas acerca do passado paulista em Coimbra. Este ensaio trata da capitania de São Vicente durante os 1500 e 1600, quando se estabelece nas vilas de São Vicente, de Santos, de Santo André e de São Paulo pequenas povoações cercadas por todos os lados de índios bravios, de corsários ingleses e franceses. É reinante a pobreza  material e cultural que grassava mesmo dentre os elementos nobres da população.

São Paulo estando a 70 km do litoral e a 750 metros de altitude em relação ao mar seria oficialmente fundada em janeiro de 1554, pouco após a expedição demarcatória de Martim Afonso de Souza (1530), da distribuição das terras do Brasil para capitães e donatários e a divisão do território brasileiro em capitanias hereditárias (1532).

Considerando as dificuldades de acesso e comunicação ao planalto de Piratininga, era extremamente difícil a autoridade real impor sua política: apenas um navio por ano fazia o trajeto de São Vicente à metrópole. Diante das notícias de ouro descobertos nos territórios espanhóis, os reis de Portugal a começar por D. João III buscaram estabelecer na medida do possível a ocupação territorial do Brasil, a defesa de suas fronteiras diante de franceses, ingleses e corsários e a busca através de entradas do ouro, da prata e da mão de obra escrava indígena, esta última predominante na capitania de São Vicente.

Foi justamente a busca pelo ouro e por escravos gentios que motivaram as bandeiras que estenderam o conhecimento dos territórios e criavam arraias e povoações desde o litoral até o interior por Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais. Ainda nos anos de 1600, quando apenas algumas faíscas de ouro haviam sido descobertas no Jaraguá em São Paulo há notícias de bandeiras paulistas que atingem o São Francisco onde se relata a existência da prata. A existência das riquezas minerais esteve presente durante todo o período em exame incentivando a vinda de todo tipo de aventureiros. Os bandeirantes então chamados de sertanistas mobilizavam o povo, formavam tropas de índios aliados como os tupis (dos quais fizeram parte Tibiraçá e o português João Ramalho que, não se sabe se degredado ou fugitivo de navio, foi dos primeiros elementos brancos a se estabelecer no planalto paulista, casando-se com a filha do chefe indígena e pavimentando a articulação entre colonizadores e os índios). Declarava-se a guerra justa contra índios carijós e tupinambás (estes frequentemente aliados dos franceses).

Há aqui a necessidade de um parênteses. Uma certa orientação de tipo culturalista tem entrado em voga na análise da história brasileira ressaltando o protagonismo do índio enquanto elemento constitutivo da sociedade colonial – e isto é até certo ponto correto, considerando desde os primeiros escambos entre navegadores e índios antes do esforço de ocupação do território brasileiro com as capitanias hereditárias e o governo geral; também é exato diante da incorporação do índio ao mundo de tipo medieval que informa a visão social de mundo portuguesa especialmente com a intervenção dos jesuítas. Sabe-se que os índios eram decisivos nas entradas, conhecedores que eram dos afluentes dos rios e dos melhores meios de transporte pelo interior. Mas estes dados não devem nos fazer perder de vista que os índios brasileiros ainda se constituíam nos primeiros anos da colônia em situação de barbárie: a antropofagia era uma prática disseminada e não foram poucos aventureiros do sertão que terminaram digeridos por tribos que eram do tipo nômade, sem o desenvolvimento sequer da agricultura, vivendo da pesca e da caça, e bebendo o cauim, a bebida alcoólica fermentada da mandioca que dava naturalmente. Consta inclusive que estas práticas de canibalismo não eram exatamente uma forma de vingança diante de um rival em guerra. A carne humana era apreciada pelos índios, o ritual de antropofagia envolvia toda a tribo quando as mulheres anciãs eram responsáveis pela retirada das tripas e a divisão da caça ao grupo.

Como uma matilha de lobos, portanto.

De outra monta, esta vertente culturalista alimenta uma versão da história segundo a qual os bandeirantes seriam meros vilões que oprimiram os índios para impor sua cultura e seus interesses sócio-econômicos. Mais uma vez aqui a versão dos fatos parece ser parcial. As entradas não foram exatamente dirigidas pela alta aristocracia portuguesa que comandava indiretamente a guerra justa desde posição privilegiada, livre de riscos pessoais e pecuniários. Quem se mobilizava para as entradas eram antes de tudo os mamelucos, filhos de índios com brancos e habituados à condições de existência de extrema pobreza e penúria, sem saber quando e o que irá comer, suscetível ao calor extremo, às chuvas e inundações dos rios do planalto e aos ataques dos carijós, tupinambás e corsários.  Há relatos de pessoa da terra que quando instada a obedecer os ditames da Inquisição responde em tom de ameaça: “acabarei com a inquisição a flechadas”. (pg. 124).

Isto significa dizer que as entradas e a busca pelo ouro e gentio no sertão envolvia uma mobilização militar das pessoas da terra (colonos mamelucos) e índios aliados – muitas das mobilizações são mesmo defensivas e buscam socorrer povoados e arraiais atacados pelo gentio. Com o ouro o mameluco busca mercês e títulos de nobreza. Com o ouro os reis de Espanha e Portugal buscavam equiparar-se para a guerra.  

“A obediência dos bandeirantes a seus cabos não era imposta pela força ou em virtude de regras pré-estabelecidas; mas aceita voluntariamente por todos como condição para o bom êxito da empresa, na qual todos eram interessados, tendo em vista a existência individual e a própria existência coletiva. Uma espécie desse instinto coletivo que une todos, quando todos sentem que trabalham perigosamente para o interesse comum.


Quando entravam pelo sertão, iam armados de arcabuzes, escopetas, mosquetes, espadas, como armas ofensivas, as melhores da época; e, como armas defensivas, iam com alcochoados de algodão, com que se revestiam, úteis contra as setas indígenas que neles se amorteciam. Os índios auxiliares só dispunham de arco e flechas e muitos deles só serviam para transportar pequenas cargas, como ferramentas, e, talvez, alguns poucos mantimentos para os primeiros dias. Levavam também grilhões para aprisionamento do índio vencido”. (pg. 228).        

Os índios assim estão associados aos colonos através de uma relação de extermínio, escravidão e cruzamento. Uma diferente ordem de interesses reside na relação do índio com o jesuíta que se posiciona contra a escravidão e frequentemente se mobiliza para evitar as entradas que se destinam não só à busca do ouro, mas à escravização dos indígenas. Acerca dos jesuítas suas origens remontam a 1540:

“Os jesuítas faziam votos de pobreza, de castidade e de obediência e se organizaram para defender e revigorar a fé católica, então extremamente abalada pela reforma e robuster os princípios cristãos por todos os meios honestos, com o desprendimento dos bens terrestres e principalmente com o desprezo da vida. Organizou-se com um Superior Geral – Inácio de Loyola – em Roma e com diversos provinciais nas diferentes regiões do mundo”.

As transformações decisivas de São Paulo que faria da capitania, posteriormente da província imperial e do  estado republicano uma metrópole mundial viriam muito depois. A descoberta do ouro e o ciclo mineiro na verdade engendrou o esvaziamento da cidade e o encarecimento da vida. Foi com o desenvolvimento do café a partir de meados do século XIX que a então província viria a ter um novo papel protagonista. São Paulo foi pioneira na introdução da mão de obra livre através de colonos italianos, alemães, espanhóis e portugueses e o alto valor do café no mercado mundial garantiu a acumulação capitalista para a industrialização, para instalação pioneira de ferrovias[1] e bondes, para o desenvolvimento cultural com o importante papel da escola de direito no Largo de São Francisco. Hoje o Estado de São Paulo tem um PIB maior do que o de toda a Argentina[2], é o estado mais industrializado do Brasil, com os maiores batalhões de trabalhadores de todo o país. Estudar e compreender o desenvolvimento histórico paulista bem como afastar alguns mitos pós-modernos que cercam a história regional são tarefas essenciais para uma análise mais profícua da chamada questão nacional.

Imagem - ANTIGO Pátio do Colégio. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: . Acesso em: 08 de Mar. 2019. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7


[1] A São Paulo Railway Company (SPR) foi a primeira ferrovia construída em São Paulo, e a segunda no Brasil. Financiada com capital inglês, sua construção foi iniciada em 1860, enfrentando muitas dificuldades técnicas durante a implantação, principalmente no trecho da Serra do Mar.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

“A Abolição do Comércio de Escravos No Brasil” Parte II – Leslie Bethell


“A Abolição do Comércio de Escravos No Brasil”  Parte II – Leslie Bethell

 Françoise Biard - Abolição da Escravidão nas Colônias Francesas em 1849

Resenha Livro - “A Abolição do Comércio de Escravos No Brasil”  Parte II – Leslie Bethell – Coleção Biblioteca Básica Brasileira – Senado Federal

Este estudo do pesquisador britânico Leslie Bethell exigiu-nos a divisão da resenha em duas partes. A primeira aborda questões mais gerais do problema do comércio de escravos, as razões de fundo sócio-econômicos que levaram a Grã-Bretanha a abolir o tráfico entre suas próprias colônias ocidentais (1807) e a divisão em que estava a classes proprietária brasileira quanto ao tema. (Ver: http://esperandopaulo.blogspot.com/2019/02/a-abolicao-do-comercio-brasileiro-de.html )

Nesta segunda parte discutiremos os aspectos de direito interno e internacional que implicaram gradualmente na contenção e extinção daquele comércio, as lutas políticas e as intervenções militares que culminaram na promulgação da lei Eusébio de Queirós em setembro de 1850 com a extinção efetiva do comércio negreiro no Brasil, sob a ameaça da força naval britânica de um lado e o risco da reação nacionalista brasileira que desde décadas observava de forma passiva a arbitrariedade inglesa intervindo em águas territoriais brasileiras. A Inglaterra chegou mesmo a tratar, conforme interpretação unilateral do tratado anglo-brasileiro de 1826, embarcações suspeita do comércio proibido como navios piratas, sujeitando súditos brasileiros aos tribunais ingleses e à busca e apreensão de navios em águas territoriais, rios e portos do Brasil.

“Esse influxo sem precedentes de mais de 175.000 escravos num período de três anos antes da abolição final (1831) despertou, numa forma mais extremada, uma emoção que sempre estivera presente no Brasil, ainda que, em geral, de forma latente: o medo da africanização. Num país em que os escravos negros formavam uma proporção tão grande da população total, o argumento de que a continuada importação maciça de africanos degradava e barbarizava um país já atrasado e – como os escravos eram os inimigos naturais dos seus senhores – constituía uma ameaça sempre crescente para a segurança interna e a dominação branca era muito mais efetiva do que os argumentos abolicionistas convencionais sobre a imoralidade do comércio de escravos ou a superioridade do trabalho livre e das máquinas sobre a mão de obra escrava”. 

Em que pese à existência de um movimento abolicionista tanto na Inglaterra quanto no Brasil, neste último caso ainda muito incipiente, a divisão da classe dirigente quanto ao problema do tráfico dizia respeito muito menos às razões humanitárias do que aos interesses de curto, médio e longo prazo dos países envolvidos. Havia setores que bem lembravam a insurreição de escravos de São Domingos  do Haiti (1791)  e mesmo da revolta dos malês na Bahia (1835) como sinais dos grandes riscos por que passava o Brasil face à entrada anual de dezenas de milhares de negros de África, especialmente desde os portos da Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.

Além disso, já desde as primeiras décadas do século XIX era perceptível à classe dominante brasileira que o comércio de escravos estavam com os dias contados. A Grã-Bretanha entabularia tratados com Portugal, Espanha e posteriormente com os EUA para o combate do comércio. Navios de busca britânicos atuavam constantemente nas costas da África e América e tribunais mistos anglo-brasileiros e anglo-portugueses agiam condenando as embarcações, destruindo-as ou incorporando-as à frota naval inglesa e, eventualmente, liberando os escravos que sobreviviam ante os meses que iam da captura das embarcações às decisões finais dos tribunais. Os ingleses buscavam sempre levar as embarcações capturadas ao tribunal misto de Serra Leoa: não se deve negligenciar as dificuldades àquela época de manter um tribunal marítimo em terras africanas onde grassam a malária e a febre amarela. De outro lado, a regra sempre era que nos tribunais mistos, o voto brasileiro tendia à absolvição e o voto britânico tendia à condenação. Ocorre que por dificuldades tanto políticas quanto logísticas os brasileiros na maior parte das vezes não conseguiam manter seu representante no tribunal misto de Serra Leoa facilitando a condenação.

De outro lado havia os interesses diretos dos proprietários rurais que tinham hegemonia nas câmaras municipais e nos juízos locais. Invariavelmente quando barcos suspeitos de tráfico eram remetidos aos juízos municipais os mesmos eram absolvidos e não há razões para duvidar que muito do comércio ilegal sobreviveu ante o suborno e a propina.

O comércio de tráficos no Brasil foi abolido formalmente através de uma lei interna em 1831. Estabeleceu-se um prazo de 3 anos para que o país se preparasse para obter sua mão de obra através de outros meios. Imigrantes e colonos de fato começaram a aparecer no Brasil tendo como movimento pioneiro a criação da Fazenda Angélica do senador Vergueiro (1840-50). Mas ainda eram iniciativas muito limitadas, longe de atender à demanda de um país todo ele apoiado na produção rural em larga escala voltada ao comércio externo mediante o trabalho escravo. De qualquer forma, nestes três anos o número de escravos introduzidos no país aumentou espantosamente, e, após alguma vacilação nos anos posteriores à proibição, o comércio, agora ilegal, voltou a subir. Em 1840 entraram no Brasil provavelmente 30.000 escravos. Durante a década de 1940 o número só aumentou culminando em 60.000 em 1848 para, após a lei Eusébio de Queiróz, reduzir-se para 3.287, extinguindo-se o tráficos cerca de 2 ou 3 anos depois. Certamente a lei foi fruto de uma situação de impasse criado pelos artifícios com que os contrabantistas burlavam o cerco sobre o comércio e o crescente endurecimento inglês.  

Começou na Grã-Bretanha a fazer-se sentir opiniões em jornais e no parlamento colocando-se contra a estratégia de força imposta pela marinha inglesa no combate ao tráfico: além do policiamento do atlântico revelar-se custoso, a intervenção britânica causou mais de uma vez conflitos com um país que tinha desde a sua independência ou mesmo antes quando da abertura dos portos em 1808 uma relação comercial privilegiada com os ingleses. Estas críticas contra o sistema britânico tiveram na prática um resultado inverso: para garantir o abolição do comércio, diante da renitência do Brasil adotar um novo tratado que substituísse o pacto de 1826 fazia-se necessário um endurecimento ainda maior. A cláusula de equipamento que persistia ao menos formalmente fora dos tratados permitia que os navios que carregassem qualquer equipagem relacionada ao comércio de escravos poderia ser condenado. A cláusula de direito de busca que na verdade já vinha estabelecida no tratado de 1817 (incorporado pelo Brasil independente) também deveria ser ampliada, principalmente diante da bandeira americana que não permitia a intervenção sumária de busca e apreensão dos navios ingleses. De qualquer forma, em 1850 foi o recrudescimento da pressão militar britânica que compeliu o Brasil a adotar uma lei efetiva contra o comércio. 

Se o Brasil não agisse imediatamente, poderia ver a sua soberania nacional e independência flagrantemente violados. 

Por outro lado, uma guerra com a Inglaterra naquele momento era duplamente arriscado: não só face ao poderio militar inglês mas devido aos eventos envolvendo o ditador Rosas. A Guerra do Prata  também envolveu risco a soberania do Brasil na região meridional e no conflito que envolveu Brasil, Argentina e Uruguai, o apoio naval inglês era imprescindível.

Durante o primeiro trimestre de 1851, só foram reportados dois desembarques de escravos bem sucedidos ao longo de toda a costa do Brasil, do Pará ao Rio Grande do Sul: um no Rio de janeiro e outro em Pernambuco. Com a abolição o preço dos escravos no país aumentou substancialmente de modo que os fazendeiros do sudeste, desde o Rio de Janeiro e São Paulo, passaram a adquirir escravos das antigas regiões associadas ao comércio de açúcar, agora já em decadência. Todavia, a próxima medida no sentido de se assegurar a liberdade do negro só ocorreria com a Lei do Vente Livre (1871), a Lei dos Sexagenários (1885) e a abolição total dos escravos no ano de 1888, quase 40 anos após a lei Eusébio de Queiróz.   

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

“A Abolição do Comércio Brasileiro de Escravos” – Leslie Bethell


“A Abolição do Comércio Brasileiro de Escravos” – Leslie Bethell

                                                    Navio Negreiro - Rugendas - 1830


Resenha Livro – “A Abolição do Comércio Brasileiro de Escravos: a Grã-Bretanha, o Brasil e a Questão do Comércio de Escravos – 1807 - 1869” – Leslie Bethell – Coleção Biblioteca Básica Brasileira – Senado Federal

“É impossível calcular com qualquer grau de precisão a população total do Brasil em 1800 ou a sua composição racial ou a proporção entre pessoas livres e escravos. Entretanto, uma estimativa razoável da população (excluídos os indígenas não convertidos, em número, talvez, de uns 800.000) pareceria situar-se entre 2 e 2,5 milhões. Dois terços, talvez três quartos, da população era de cor e entre um terço e metade eram escravos. Nas áreas de maior concentração – Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro – os escravos eram maioria”.

O problema da escravidão assumiu no processo de evolução histórica brasileiro um caráter específico, sui generis, que diz respeito à importância do braço escravos durante 300 anos de colonização diante de um economia baseada na monocultura para exportação de produtos agrícolas altamente dependentes do mercado mundial. Uma colônia e um império que se apoia sobre a produção do açúcar, do algodão, do tabaco e a partir do século XIX e, em constante expansão, do café. 

Os negros trazidos da África advinham de colônias portuguesas: em sua maioria eram angolanos, congoleses e moçambicanos. O comércio de escravos era dominado principalmente por comerciantes portugueses e o trabalho bruto do escravo, seja na agricultura seja na exploração das jazidas de ouro e diamantes a partir de fins do XVII, teve importância decisiva para estabelecer recursos para as finanças do estado, para ocupação territorial e a interiorização da própria metrópole no país. A escravidão gerou não só a opulência da classe senhorial mas uma acumulação que criaria condições para o desenvolvimento do comércio externo e de um incipiente mercado consumidor.

No Brasil colonial não eram só os grandes proprietários rurais que detinham a posse de escravos: havia negros escravos servindo igrejas, mosteiros e hospitais, sem contar o estado que contava com o braço escravo para a construção de obras públicas e melhoramentos urbanos. Muitos trabalhavam para viúvas e indivíduos nas cidades e eram alugados para a prestação de serviços esporádicos. É certo que em diversos pontos do país predominou o trabalho escravo indígena em termos parecidos com as encomendas espanholas: é o caso da capitania de São Vicente e os estados meridionais. Mas maiores dificuldades houvera com a escravização do índio, seja por sua inadaptação ao labor, seja pela intervenção dos inacianos em constante conflito com colonos e bandeirantes, até a expulsão dos jesuítas do Brasil no reinado de D. José (1759).

Estima-se que ao longo do período que vai das primeiras décadas do XVI com o assentamento dos primeiros colonos no país até a abolição da escravatura no Brasil em 1888 tenham sido trazidos ao Brasil algo em torno de 3 milhões de escravos. Nosso país foi o último país das Américas a abolir a escravidão em 1888, dois anos após Cuba e trinta e cinco anos depois da Argentina.

Este estudo de Leslie Bethell retrata um capítulo desta história, qual seja, a luta política e diplomática pela abolição do comércio de escravos no Atlântico, luta tendo como protagonista a Grã-Bretanha que, ainda em 1807, determinou a proibição aos súditos ingleses de comercializar escravos. Não obstante a iniciativa inglesa de abolir aquele comércio, seria necessária uma mobilização diplomática e mesmo militar para sustar o comércio de escravos em todo o mundo. A leitura atenta deste livro revela como os sentimentos abolicionistas que certamente moveu alguns súditos ingleses de boa fé, inclusive através da criação de diferentes associações abolicionistas, não pode, todavia, imputar à iniciativa britânica razões  essencialmente humanitárias para abolição.

Como se sabe a Inglaterra foi o berço da Revolução Industrial (1760-1860), do desenvolvimento da produção em escala industrial, e, o mais importante, da substituição do trabalho artesanal pelo trabalho assalariado com a utilização de máquinas. Era interesse da maior potência econômica do período o fim do protecionismo econômico que informavam o pacto colonial de até então. Era igualmente do interessa da Inglaterra a abolição da escravatura como forma de se criar as condições para o desenvolvimento de mercados consumidores das mercadorias inglesas. Ademais, a Inglaterra mantinha interesses em expandir seu comércio no continente africano: qual seja, a abertura da África para a agricultura, para a colonização e para o comércio, sob a direção inglesa. Em fins do séc. XIX a estas cogitações mais imediatas somariam ideias de tipo nitidamente racista que delegam ao homem branco colonizador o “fardo da civilização”: o imperialismo inglês em África e Ásia seria justificado também por bases ideológicas racistas, de superioridade racial, o que mais uma vez contrasta com as vozes minoritárias que buscaram abolir o comércio de escravos ou a própria escravidão pela injustiça inerente deste modo de produção.

Quanto aos interesses dos britânicos na África, válido citar passagem de uma carta de Lord Palmerston (ministro de Negócios Estrangeiros) de outubro de 1838:

“Queremos vender nossas mercadorias à África e as mandamos para lá. Os africanos que quiserem comprar nos pagarão o que desejarmos. Se insistirmos em termos escravos, eles produzirão escravos. Se...pudermos evitar que europeus tragam escravos da África, converteremos o comércio numa troca de mercadorias”.

A constituição de sujeitos de direito que viabilize as condições da compra e venda da força de trabalho assalariada é um imperativo oriundo da nova etapa industrial do capitalismo, etapa da qual a Inglaterra e França exercem um papel de vanguarda: a revolução industrial e a revolução francesa se enlaçam como movimentos que sujeitam a política mundial a mudanças decisivas, a começar pelo problema da escravidão.

É interessante observar nesta pesquisa extremamente bem documentada dos movimentos diplomáticos envolvendo as nações interessadas como as elites brasileiras estavam bastante divididas quanto ao tema. O tráfico implicava no despejo de dezenas de milhares de africanos anualmente no país, especialmente nos portos de Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Uma população de maioria escrava poderia engendrar uma insurreição de escravos negros ao estilo da rebelião de São Domingos no Haiti (1791). A revolta dos malês na Bahia em 1835 incrementou os receios e as hesitações de setores mais sensíveis aos inconvenientes da abolição.

Há inclusive uma obra do nosso primeiro grande romancista, Joaquim Manoel Macedo, denominado “Vítimas Algozes” (1869). O livro retrata de certa forma este receio de setores da classe proprietária na perpetuação da escravidão dado os seus inconvenientes: o maior deles, aparentemente, dizia respeito aos interesses econômicos dos proprietários considerando a baixa produtividade do trabalho escravo, a sabotagem deliberada na execução das tarefas, a negligencia e falta de cuidados no labor, a destruição das ferramentas e meios de produção, para não dizer dos movimentos de insubordinação que poderiam levar até ao assassinato do latifundiário e sua família, o envenenamento e a destruição das fazendas.

Mas as forças da inércia, representada especialmente por conservadores como Bernardo Pereira de Vasconcelos, acabavam tendo, paradoxalmente, um posicionamento objetivamente mais nacionalista e contestatório: durante a vigência dos tratados de 1815, 1817 e 1826, a Inglaterra manobrou no sentido de incrementar a repressão, violando normas do direito internacional, atuando sobre águas territoriais brasileiras, ocupando mesmo rios e portos do território nacional em busca de navios suspeitos de tráfico. Além disso, há uma interpretação unilateral do preambulo do tratado de 1826 pelos ingleses tratando os navios de comércio de escravos como piratas. A consequência aqui é que navios piratas não seriam levados aos tribunais mistos anglo-brasileiros de Serra Leoa ou Rio de Janeiro, mas aos tribunais marítimos britânicos, que passavam a ter jurisdição sobre súditos brasileiros. Foi em torno da pressão diplomática inglesa que se engendrou um sentimento nacionalista de setores mais conservadores da política nacional, diretamente vinculado aos tradicionais proprietários rurais, protestando contra a arbitrariedade inglesa. Escaramuças entre populares e marujos ingleses ocorreram de forma reiterada neste período entre 1815-1850.

Pelo menos desde a década de 1830 não se encontra uma defesa aberta do comércio de escravos pelo Atlântico. São cada vez mais raras as vozes que defendem o instituto da escravidão. O que se coloca é a necessidade de um prazo, maior ou menor, de transição entre o trabalho escravo e o trabalho livre.

A classe dirigente brasileira manobrou sentindo que a abolição tanto do comércio quanto do instituto da escravidão eram uma questão de tempo. Era necessário estabelecer um equilíbrio entre forças sociais diferentes, do proprietário rural ao comerciante, dos livre-cambistas aos defensores do protecionismo, dos gabinetes liberais (mais tendentes a posições abolicionistas) aos gabinetes conservadores (que corroboraram para o aumento dos conflitos com a Grã-Bretanha). Era necessário pensar em formas alterativas para suprir as fazendas de mão de obra através do trabalho de colonos, o que só seria realizado com êxito a partir de 1870.  

Nesta primeira parte da resenha procuramos fazer um mapeamento geral dos temas abordados neste livro de Leslie Bethell. Numa segunda parte trataremos dos tratados de 1815, 1817, 1826 e da lei de 1831 que proibiu os súditos brasileiros de participarem do comércio de escravos, culminando na extinção do tráfico em 1850 com a Lei Eusébio de Queiróz.     

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

“História da Cidade de São Paulo” - Afonso de E. Taunay


“História da Cidade de São Paulo” -  Afonso de E. Taunay



Resenha Livro - “História da Cidade de São Paulo” -  Afonso de E. Taunay – Poeteiro Editor Digital

“Em ambiente tão singelo era natural que a vida dos primeiros paulistanos fosse a mais uniforme e tediosa.

A esta uniformidade só interrompiam, espaçadamente, os grandes acontecimentos familiares, nascimentos, esponsais, moléstias e falecimentos ou então a ocorrência de festas sacras.

Vivia a vila quase sempre erma. Nas vizinhanças das festividades públicas povoava-se com a chegada dos proprietários dos estabelecimentos agrícolas circunvizinhos.

A vida fazendeira daqueles pequenos agricultores e pequenos criadores corria no ramerrão quotidiano do plantio e da colheita, do pastoreio e da contenção do pessoal servil”.

Há alguns anos surgiu a notícia de que um grupo do provável quilate anarquista pichara um monumento de bandeirantes na região do Ipiranga em São Paulo. 

Tintaram de rosa a estátua de belo relevo com homens montados a cavalo em movimento. Talvez os nossos colegas não sabiam que o monumento foi idealizado por um artista ligado diretamente ao movimento modernista de 1922 que pode ser considerado sob diferentes pontos de vista exceto como conservador. Foi antes uma vanguarda de artistas que prenunciaram uma proposta de arte formalmente brasileira, não só com temas pitorescos do país. Arte nacional quanto ao conteúdo, mas buscando distinguir-se igualmente na forma, com um escopo mais amplo de busca das raízes do país e da identidade nacional. O artista em questão foi amigo de Paulo Prado e Mário de Andrade. Já os ataques ao monumento bandeirante revelaria o mesmo irracionalismo que o de queimar edições do Macunaíma sob o argumento da obra ser racista.

Seja como for, esta transloucada ação no Ipiranga deveria ao menos ser um bom pretexto para o estudo mais detido da história de São Paulo e, se quisermos, do problema dos bandeirantes. É certo que a coroa serviu-se dos trabalhos do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho para aniquilar o Quilombo dos Palmares. Mas os mesmos bandeirantes abriram caminho para a interiorização da ocupação do país, com frentes pioneiras desbravando Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso em busca do ouro e diamantes, isto a partir de fins do séc. XVII.

Na São Paulo colonial, ilhada como esteva diante da serra do mar, os colonizadores se serviram antes da mão de obra indígena do que da mão de obra africana que predominaria nos engenhos de açúcar de Pernambuco e Bahia. Houve aqui conflitos importantes entre colonizador e os jesuítas que buscavam assentar os índios em povoações e aldeamentos com regras que buscavam nem sempre com sucesso estabelecer normas de conduta ilibadas.

Quando o Papa Urbano VII determina a ilegalidade da escravidão os conflitos irão se avolumar até o ministro todo poderoso do monarca português D. José, o famoso Marques de Pombal, deliberar pela expulsão dos jesuítas do Brasil. Tal determinação culminaria nas chamadas Guerras Guaraníticas que unificaria jesuítas e índios de um lado e as coroas ibéricas de outro.

O que é certo é que os bandeirantes foram de certa forma retratados por uma certa historiografia mais tradicional ao patamar de entes representativos dos paulistas e paulistanos: varonis, corajosos, ambiciosos de aventura, ciosos de independência e autonomia. Esta interpretação tem algum fundo de verdade : foram muitos os momentos em que a gente da terra solenemente ignorava as determinações da coroa em benefício dos interesses locais.

“Em São Paulo escrevia o Governador-Geral, Câmara Coutinho, a D. Pedro II: “não só não se deu execução a baixa da moeda, mas não quiseram aceitar nem me responderam”. Em outra ocasião afirmou: “a vila de São Paulo já há muitos anos que é república de per si, sem observância de lei nenhuma assim divina como humana”.

Em que pese a escravização do índio, há de se constatar uma situação muito mais complexa do que a mera relação unilateral de opressão. Houve muita miscigenação entre brancos e índios na São Paulo colonial fazendo com que a vila (1560) e cidade (1711) tivessem como língua corriqueira o próprio Tupi. Os índios foram engajados em operações militares, principalmente na região sul, na Colônia do Sacramento. Os índios eram senhores dos domínios do interior e auxiliavam os colonizadores no desbravamento de novas rotas e na busca de riquezas – eram também protagonistas da história e jamais um mero elemento paisagístico.

Consta que o primeiro homem branco a estabelecer-se em São Paulo acima da serra do mar tenha sido João Ramalho por volta de 1515. Não se sabe se este era degredado, fugitivo ou um naufrago. Estabeleceu relações amistosas com os índios tupis, casou-se com a filha de um chefe indígena e contribuiu decisivamente para os primeiros assentamentos coloniais em São Paulo.

A história da cidade de São Paulo de Affonso Taunay ainda é tributária de um certo positivismo metodológico: suas fontes principais são as oficiais, as atas da câmara, os testamentos e os inventários. Isto não impede o autor de descrever aspectos não só político-administrativos da cidade, mas inventariar sobre a imprensa em São Paulo, os costumes, a educação jesuítica, a extraordinária  influência cultural da Faculdade de Direito sobre a cidade, entre outros.

Sua história percorre todo o período colonial, com virtual estagnação de uma cidade ilhada do mundo por seu relevo geográfico, passando pelos percalços relacionados ao aumento do custo de vida e a redução demográfica face à descoberta do ouro. Os costumes destas eras mais distantes revelariam um povo arredio a estrangeiros o que se mostra pelo pouquíssimo número de hospedarias até meados do séc. XIX. As mulheres muito raramente saiam às ruas, na maioria das vezes em razão de eventos religiosos, acompanhadas e conduzidas pelo homem da casa e sempre cobertas de pano escuro.

As coisas mudariam a partir da cultura do café em meados do XIX do Vale do Paraíba até São Paulo englobando cidades de importância até hoje como Campinas e Itu. Ao mesmo tempo, é em fins do séc. XIX que surge a iluminação pública, parques, cafés,  as melhorias da edilidade com a construção de viadutos, o melhoramento do caminho do mar facilitando as comunicações com o porto de Santos, o bonde elétrico que percorre bairros já então em consolidação como Santa Efigênia,  Brás e Luz. 

Em São Paulo o movimento abolicionista teve largo alcance, contando com o entusiasmado apoio da mocidade acadêmica da Faculdade de Direito e expoentes como Castro Alves e Luiz Gama. O mesmo pode se dizer do movimento republicano com a sua famosa Convenção de Itu de 1870. 

Mas certamente a base material que poderá explicar o grande desenvolvimento e protagonismo de São Paulo dentro da nação foi a iniciativa de vanguarda de atrair imigrantes estrangeiros para o trabalho livre em face das paulatinas leis da abolição do tráfico (1850) à abolição da escravatura (1888). Principalmente a partir de 1870 foram milhares e depois dezenas de milhares de imigrantes, na maioria italianos, alemães, espanhóis e portuguesas, que se direcionavam às lavouras de café. Naquele primeiro momento o café vivia um momento de alta valorização no mercado mundial possibilitando a acumulação de capital e o desenvolvimento da indústria que foi igualmente pioneira em São Paulo.  Após relativa desvalorização em fins do XIX a conhecida convenção de Taubaté buscou restaurar o valor do produto no mercado.

Gostaríamos que os nossos amigos pichadores do Monumento do Ipiranga ou da Igreja da Sé tivessem contato com a história da cidade de São Paulo principalmente para entenderem que o esquecimento e a aniquilação da memória (que se dá com a danificação dos monumentos) pavimentam a repetição das mesmas arbitrariedades que julgam estarem combatendo.
      
(*) Imagem - Bandeirantes combatendo índios botocudos no interior de São Paulo - 1827